Marcadores

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O cesto da gávea de onde observo o mundo - 3ª mirada: Natividade da Serra, simplicidade e a busca pelo prazer

Olá!


No meu texto anterior, mencionei o serviço de balsas que navega pela represa de Paraibuna, e que tive a oportunidade de conhecer. O ponto final daquela travessia se deu no município de Natividade da Serra, pequena cidade planejada, de ruas largas e que tem sua vida afetada pela mesma represa ainda mais que a cidade de Paraibuna.



Na verdade, a represa não influiu na vida de Natividade. Ela a decidiu. Quem vê a sua zona urbana não imagina o quanto a cidade é antiga. É que todo o seu centro e boa parte da área rural foram submersos pelo fechamento da barragem que deu origem à represa, em 1973. Em um dos bares da cidade, encontrei uma foto com a mancha urbana antiga, e que, não fossem casas em sua maioria feitas de pau-a-pique, constituiriam uma espécie de chaveirinho de Atlântida.



Evidentemente, as marcas de uma mudança tão drástica se espalharam não só por corações e mentes dos antigos habitantes, que, fazendo pouco mais de quarenta anos do fato, ainda tem recordações marcantes, como é o caso do Kaé, dono da pousada e restaurante abaixo...



(Suas refeições ainda seguem as tradições locais, que, basicamente, utilizam produtos pecuários, como a costelinha com quirera que estava disponível nesse dia, e os óbvios peixes, tão presentes na dieta de quem tem uma gigantesca represa na sua vizinhança)



... mas também no próprio ethos da cidade nova, que adotou, por exemplo, o lema Non e flammis sed ex undis surrexi, que quer dizer “Não das chamas, mas das águas ressurgi”. No pórtico de entrada da cidade, pode-se ver (mal na minha foto) o brasão e o lema, além da reprodução de um tucunaré, a vedete pescável das águas.



Como eu disse, a partir da submersão ocorrida na década de 70, uma nova cidade foi construída. É possível perceber a modernidade das linhas ao observar o conjunto arquitetônico da praça central, que contém a igreja matriz, chamada de Nossa Senhora da Natividade. Na foto abaixo, a presença do coreto dá um certo sabor discrepante de nostalgia.



O Centro Cultural, situado ao lado da igreja, é construído com o mesmo espírito eclético: tem o mesmo aspecto de casarão das casas antigas, mas copia o frontão da igreja, ao avançar o telhado do átrio de entrada em forma triangular. A destacar a presença de gente com reais informações no seu interior, algo a ser copiado por outras prefeituras.



Há na praça central uma curiosa estátua estilizada de São Francisco de Assis, situada logo à frente da sede do serviço social do município, um prédio octogonal que dá um espírito ainda mais variado à região.



Se ainda se quiser ver resquícios de um passado mais distante, é na zona rural que se deve ir. Alguns bairros como Pouso Alto e Bairro Alto, como o próprio nome já denuncia, ficaram a salvo da invasão da represa de Paraibuna, e mantiveram suas características originais. Além disso, há vários sítios que se especializaram em pecuária leiteira, como este aqui.



Neste local, muitos doces de frutas e de melado, além de leite, que é vendido fresco, para o meu desprazer. Não sei se cheguei a contar, mas eu DETESTO leite, desde meu nascimento. Minha mãe tinha as tetas explodindo de tanto leite, e eu, sem querer saber, ia vivendo na base do chazinho. Leite Ninho, leite condensado dissolvido, leite de bar, leite de cabra, nada... Até que o médico falou: “Sopa nele, e seja o que Deus quiser”. Pela minha gordura, deu certo.



Também da zona rural conseguimos algo que há muito tempo procurávamos (eu não, a patroa): uma colcha de retalhos legítima. O pessoal daqui também lança mão do artesanato para conseguir acumular mais alguns caraminguás.



Tirando tudo isso, é mesmo da represa que se tem o principal provimento de comida e de turismo. Muito próximo ao centro, há a Prainha, um braço de represa de onde se pode partir para as ilhas e as bordas mais remotas.



A prainha tem uma bica de água fresca, o que é normal de ocorrer em uma região de terra tão encharcada. O fluxo de gente que vem pegar água nos garrafões é admirável, comprovando que a galera confia mais na natureza do que na Sabesp.



A Prainha tem muitos barcos, que são utilizados para os mais diferentes propósitos: levar pessoas para os bairros mais distantes, conduzir pescadores para as ilhas e outros pontos bons para seu lazer, ou, como nós, para dar apenas um simples rolê pelas calmas águas da represa.



(Na cidade, há uma imensa rede de trilhas supervisionadas, em especial no Núcleo Santa Virgínia, que também agrega o município de São Luiz do Paraitinga. Como tenho planos de cumprir todas as trilhas do núcleo, vou deixar sua menção para tal oportunidade).

A cidade é imensamente tranquila. Estereótipo da cidade do interior onde tudo acontece mais devagar, talvez até pelo fato de que peguei lá o dia mais quente de nossa viagem, o marulhar manso da represa parece reboar por todos os cantos. Tudo aqui é muito simples, e apenas as ocasiões de festas parecem ser capazes de chacoalhar um pouco a calma. E, confrontados com o agito típico da cidade grande, passamos a debater sobre o que é uma vida prazerosa. E é inevitável que Epicuro entre nesta conversa.

Cabe fazer uma distinção importante, logo de cara. Epicuro, como relacionou sua ética fundamentalmente ao prazer, tem a fama de lascivo, de devasso. Não.

A confusão estabelecida se dá por conta do princípio ético do hedonismo (do grego hedoné, prazer), rapidamente vinculado à liberdade sexual. Quem navegou por esses mares foi Aristipo de Cirene, e, mais tarde, o Marquês de Sade. Para Epicuro, o prazer era coisa muito diferente, como se verá mais adiante.

Estamos em uma Grécia que já não vive o seu esplendor máximo. As conquistas de Alexandre Magno da Macedônia diminuíram a importância das cidades-estado e, consequentemente, da democracia direta. O período clássico, em que a Grécia era fonte de todo o saber, agora tinha se transmudado em helenismo, onde os gregos continuavam influenciando, mas também se deixavam influenciar. Neste contexto, aparece Epicuro de Samos. Assim como Platão tinha sua Academia, Aristóteles o seu Liceu e Zenão a sua Stoá, Epicuro funda uma espécie de escola, o Jardim. Retirado das proximidades dos centros urbanos, o Jardim era um horto onde imperava o silêncio e a reflexão, um lugar de onde brotavam as ideias da mesma forma que as flores (mais tarde, essa concepção de afloramento foi retomada por Friedrich Froebel para designar as crianças do jardim da infância).

Para Epicuro e seus seguidores, o princípio maior de uma vida que vale a pena é o prazer, como eu já disse. Mas esse prazer não é aquele vinculado à posse, às façanhas sexuais ou ao renome. O prazer epicurista está ligado especialmente à simplicidade.

Vou abrir um exemplo para as coisas ficarem bem claras. O brasileiro sempre foi conhecido por ser um apreciador de cerveja. Como bom brasileiro, eu também sou. Só que, ainda na década de 70, você tinha basicamente três opções: a predominante Pilsen, a adocicada Malzbier e a forte Stout, representada pela Caracu, que, no mais das vezes, era misturada a ovos crus para servir de “fortificante” (argh!). Ou seja, não era comumente aplicada como cerveja. 

Outros tipos de cerveja foram introduzidos paulatinamente – a München, a Bock, a Weiss. Mais recentemente, com o fenômeno das cervejarias artesanais, sabores ainda pouco conhecidos foram sendo introduzidos. As cervejas Ale, de alta fermentação, quase ausentes outrora, passaram a ser comuns. Cervejas do tipo Porter, Dunkel, Witbier, Red Ale, e a musa do momento: India Pale Ale, mais conhecida como IPA. É o que se chama de cerveja com sabor complexo. Realmente, seu sabor é impactante, e pode ser que cause um certo estranhamento ao primeiro gole. Pois bem.

Cervejas destes tipos são mais caras, e, portanto, menos acessíveis à rapaziada em geral. Eu confesso que tenho explorado cada vez mais as cervejas artesanais, sorvendo-as com um cuidado que eu não tinha ao tomar uma breja geral. Com isso, tenho desenvolvido uma certa resistência a tomar as marcas populares, povoadas de cereais não-maltados, com gosto de tudo, menos de malte lupulado. Por outro lado, se uma mocinha qualquer tomar uma IPA, provavelmente achará que há um toco de madeira torrada na garrafa de origem, produzindo esgares de rejeição.

Vamos relacionar tudo isso ao prazer. Se eu tiver vinte reais no bolso, tomarei a minha IPA e serei feliz. Idem para a mocinha, que tomará quatro latinhas de sua Pilsen pelo mesmo preço. Se eu tiver só cinco reais, minha IPA terá que ser deixada de lado, e precisarei tomar a tal breja. Para a mocinha, tudo bem. Ela comprará sua latinha e terá prazer. Eu, fresco que sou, terei uma redução significativa no prazer, se, por al, não o extinguir. Epicuro fecharia com a garota, não comigo.

Perceberam? O gosto menos complexo da mocinha acaba por lhe proporcionar um campo de prazer maior que o meu, que ficarei em busca de sofisticação. A mocinha age na base epicurista; eu, não. Quem se deu melhor?

Um outro exemplo mais rápido ainda: três pessoas têm, cada uma, um carro. O primeiro tem um Fusca, o segundo tem um Corolla e o terceiro, uma Ferrari F458. Vamos agora fazer intercâmbios. O dono do Fusca sentirá prazer ao guiar o seu próprio carro, adorará o Corolla e delirará com a Ferrari. O proprietário do Corolla vai se sentir satisfeito com seu carro, curtirá a Ferrari e sofrerá com o Fusca. Já o ferrarista vai querer chorar com o Corolla e entrará em colapso com o Fusca, só sentindo gosto se mantido com seu próprio carro.

Esse é o desafio de Epicuro: manter o gosto pela simplicidade. As coisas simples sempre estão ao nosso redor, independentemente de onde estejamos. O gosto por dar uma volta na praça, de molhar os pés na água mansa, de conversar com as pessoas sobre qualquer assunto que seja, tudo isso está ao alcance de todos, praticamente a qualquer momento. É preciso se livrar dos excessos das vontades e do olhar exterior, que tende a ridicularizar o dono do Fusca e enaltecer o da Ferrari, explicando os financiamentos impagáveis. É possível ter prazer com financiamentos nas costas?

E como Epicuro chega a essas conclusões? Vamos acompanhar a construção da sua lógica.

Epicuro, diferentemente do que pensava Platão, dá importância significativa às sensações. Enquanto Platão achava que as sensações eram deturpadoras do conhecimento real, porque podiam carregar consigo enganos e ilusões, Epicuro achava que as sensações eram as captações das emanações dos objetos. O objeto se apresentava a alguém transferindo fisicamente um simulacro de si mesmo, e é no momento em que esse simulacro nos penetra que se dá a sensação. Ou seja, a sensação tem o atributo de objetividade.

Ora, quais são os efeitos da sensação no organismo humano? Se ela é boa, temos o prazer; se é ruim, temos a dor. Esse é o eixo que faz com que se consiga distinguir o bem do mal, e, sendo assim, eticamente é um critério de escolha. Evidentemente, as nossas escolhas devem se pautar pelo prazer, ou seja, a sensação boa.

O prazer, para Epicuro, é menos algo ativo e mais uma ação negativa – a ausência. Ausência de dor e de perturbações no espírito, chamada de ataraxia (do grego a-taraktos, não perturbado). Não são, portanto, os excessos que propiciam um prazer sábio, porque se dissipam, mas uma opção pela sobriedade.

Mas o homem tende a sofrer por conta do medo. Os principais são o medo das divindades, o medo da dor e o medo da morte. Para tanto, Epicuro tinha a doutrina do tetrapharmakon, ou seja, dos quatro remédios:

1. Desprendimento com relação aos deuses;
2. Minimizar o medo da morte;
3. Noção de finitude do mal;
4. Educação dos sentidos para o prazer simples.

Trocando rapidamente em miúdos. Para o item 1, assim como os estoicos, Epicuro e seus seguidores achavam que os deuses tinham mais o que fazer além de ficar vigiando a vida dos reles mortais. Os deuses são absolutamente indiferentes ao que ocorre no planetinha, porque já vivem em sua perfeita harmonia. Não são ações humanas que produzirão a queda deste equilíbrio. Se os deuses não agem na vida humana, não há porque temê-los.

Item 2: é injustificado o medo da morte. Se há dor física, a morte representa seu término, portanto não é um mal; se há sofrimento psicológico, a perturbação que residia ainda no corpo não se transfere para a alma, porque a morte representa o fim de ambos, ou seja, dá fim às sensações.

Item 3: A dor não dura para sempre. Se é leve, é suportável; se é atroz, dura pouco, conduzindo à morte, que, como dissemos no item anterior, cessa todas as sensações, inclusive as más.

Finalmente, item 4: o prazer é muito fácil de ser obtido, como já disse acima. É apenas preciso saber dar ênfase e preparar o corpo para a simplicidade.

Com relação a esse último item, Epicuro dá a fórmula. Existem três tipos de desejos, que, de acordo com o seu atendimento, produz perenidade ou efemeridade ao prazer. Os primeiros são os desejos naturais e necessários, que devem ser atendidos para atingir a ataraxia. São os atos necessários à vida, como comer, repousar, beber. É a busca pelo essencial. Devem ser atendidos na medida em que acontecem. Os segundos são os desejos naturais e não necessários, aqueles que existem naturalmente, mas que não são imprescindíveis à sobrevivência. Epicuro inclui aí o sexo, as vestimentas e a superfluidade dos desejos necessários, como comer bem, dormir muito. São desejos guiados pelo que tem de agradável. Epicuro entende que se deve ser extremamente comedido com os excessos para que não se incorra em dano. Por fim, temos os desejos não-naturais e não-necessários, que são ligados à frivolidade: fama, riqueza, imortalidade. Esses desejos são os piores propulsores da dor, porque produzem um prazer momentâneo e que escraviza, afastando o homem da possibilidade de se satisfazer com pouco. O primeiro tipo de desejos deve ser atendido sempre; o segundo, com prudência e comedimento; o terceiro, nunca.

Dessa forma, podemos perceber como as doutrinas dos estoicos e dos epicureus são semelhantes. Há uma espécie de desprendimento do mundo e do desprezo às sensações, com a vital diferença de que, para os estoicos, o mal é algo a ser suportado resignadamente, enquanto para os epicuristas o bem é algo a ser buscado em sua simplicidade, nas pequenas coisas.

Seria tão bom ser epicurista no momento em que o médico nos prescreve uma dieta...

Mas é isso o que eu queria falar sobre Natividade da Serra. Uma cidade que, epicuristicamente, produz a sensação de simplicidade que seria necessária para uma vida menos crivada de preocupações. Nesses dias de estresse contínuo, isso vale muito, mesmo que eu ainda não esteja preparado para abandonar as opções culturais da cidade grande.

Um bom 2017 a todos. É necessário que esse ano seja melhor.

Recomendações:

Epicuro, como costuma acontecer com os filósofos pré-medievais, teve muito de sua obra perdida. Mesmo assim, sua doutrina pode ser encontrada nos aforismos do livro que abaixo recomendo:

EPICURO. Sentenças Vaticanas. Máximas Principais. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2016. Col. Folha Grandes Nomes do Pensamento.

E uma recomendação insólita: uma cerveja. Para quem gosta de sabores desafiadores, recomendo a cerveja IPA da Bières de la Madona, uma cerveja artesanal produzida em Ubatuba, verdadeiramente respeitável. É difícil de achar, mas, se encontrar, não perca a oportunidade de sentir as variações de lúpulo que produzem a estranha harmonia entre um sabor amargo e um aroma comedido. Vale a pena (mas é preciso gostar de cerveja).

Nenhum comentário:

Postar um comentário