K. não respondeu mais nada; pensou: será que eu preciso me deixar
confundir ainda mais pelo palavrório destes subalternos - eles mesmos admitem
que o são? Seja como for, falam de coisas que absolutamente não entendem. A
segurança deles só é possível por causa da sua estupidez – Franz Kafka, O
Processo
Olá!
Quando você está solto pelo mundo, é natural e mesmo
desejável que varie suas atividades para além daquilo que é necessário. O
problema são os tempos de pandemia, infinitos, que te deixam um bocado amarrado
(ao menos para quem tem vontade de preservar a si e aos seus). Dessa forma, não
tenho um campo de possibilidades muito aberto, e continuo fazendo as mesmas
coisas que fazia logo no início da desventura, há mais de sete meses. Isso
inclui explorar a internet em busca de bandas antigas, como já narrei aqui.
Claro que sou fã das sendas do bom e velho rock’n’roll, como conto para vocês há tempos, e
esse é o perfil de minhas buscas ainda hoje.
Em uma dessas, fui fazer uma maratona Black Sabbath, de quem
sou
fã. Não é nada muito original, mas é como o bom e velho arroz-com-feijão:
por mais que você tenha carnes e peixes do mundo todo ao seu dispor, tem
momentos em que tudo o que você quer é uma boa e simples comidinha caseira. A
comparação não é muito própria, mas é o que me ocorreu no momento. Só que eu
fui atrás de músicas específicas, ao invés de utilizar uma das muitas playlists
encontráveis na internet. Chamei Supertzar, chamei Electric Funeral, chamei
Sabbra Cadabra, chamei Fairies Wear Boots. Em todas elas, o algoritmo me
obedeceu perfeitamente, como se compreendesse minhas intenções. A coisa deu
chabu quando chamei The Warning. Ao invés de surgir a música do lado B do
primeiro álbum dos britânicos, aquele da bruxa, surge um vídeo de umas
menininhas. Menininhas mesmo, muito jovens, até um pouco desengonçadas, com uma
certa desproporção dos instrumentos que tangiam. Torci o nariz e rolei um pouco
a página, em busca da música procurada. Mas havia outros e mais outros vídeos
das mesmas garotas, e concluí que deveria descartar a preguiça e especificar um
pouco melhor minha busca. Entretanto, a curiosidade venceu a desesperança e,
sei lá por qual motivo, cliquei no vídeo das meninas, certo da decepção. Não e
não e não!!!
The Warning é o nome de uma banda mexicana, composta pelas
irmãs Daniela, Paulina e Alejandra, todas de 20 anos para baixo, e que faz um
som que vai no meio termo entre o Heavy Metal e o Grunge. Não
há nenhuma novidade crucial no som delas, mas uma qualidade surpreendente no
produto final, muito melhor do que vem sendo produzido nesses tempos
modorrentos. Embora não sejam virtuoses, são ótimas musicistas, especialmente
se levarmos em conta a pouca idade, e vem claramente evoluindo em seus
misteres, o que gera boas perspectivas. Algumas coisas em especial me trouxeram
encanto para o que vi:
1. A banda é um power
trio, formação que se consagrou nos anos de ouro do hard rock, com bandas
como Blue Cheer, Cream, Beck Bogert and Appice, ZZ Top, Jimi Hendrix
Experience, Rush, Triumph, Motorhead, Budgie, Mountain e muitos outros. É um
formato que eu adoro, talvez pelo fato de que minha
primeira banda tenha sido um desses, ou pelo reconhecimento de que os
membros do grupo precisam se desdobrar na função de vocalistas, que baixo e
bateria precisam segurar a peteca sozinhos na hora dos solos, o que as garotas
em questão fazem com a mesma qualidade conseguida pelas senhoritas do Rock
Goddess (outro power trio poderoso);
2. Todas as três componentes também cantam, o que permite a
formação de contrapontos e coros mais preenchidos, como acontece com Uriah
Heep, Birtha, Vanilla Fudge, Fanny e outras bandas;
3. Cada uma delas faz vocal solo. Isso não é só prova de habilidade,
mas dá uma possibilidade de variação na execução das composições. Entre três
irmãs, há uma inevitável variabilidade entre vozes, o que pode ser usado a
favor de seu trabalho: uma voz mais grave aqui, mais sussurrada lá, mais
gritada acolá, mais rascante para além. Tudo isso aumenta o espectro do que as
meninas podem fazer;
4. Usam teclados com parcimônia e sabedoria, já que a vida
musical delas começou exatamente dessa forma. Sabemos que há uma medida certa
para se usar tecladeiras nessa área do rock, e a dose me parece bastante justa –
bem pouca;
5. Elas crescem muito
em energia no palco. De fato, bandas aclamadíssimas como o Nirvana perdem demais
quando tocam ao vivo, pelos mais diferentes motivos. Algumas escancaram seus
limites técnicos, enquanto outras se limitam a reproduzir o que está em seus
álbuns. Quem vai a um show não quer ouvir uma reprodução, como se ouvisse um
disco na vitrola. Quer ver como uma música evoluiu a partir de sua gravação e
como a interação com o público a faz encorpar. Esse é o melhor sentido do
trabalho de The Warning: as gurias são muito boas de palco;
6. Ainda continuando no quesito “ao vivo”, elas fazem uma
mescla bem interessante de covers com músicas autorais; aliás, estas últimas
poderiam ser um ponto fraco, mas não. As canções próprias são bem redondinhas;
7. Mais uma referente a palco. Não consegui perceber
utilização de overdubs ou samples para disfarçar incorreções, especialmente
vocais. É garganta e braço. Posso estar enganado, nesses tempos em que verdades
digitais são criadas com dois cliques de mouse, mas sempre há uma maneira de
pegar o erro quando ele é escancarado;
8. Uma frescura minha: a baixista usa baixos de quatro
cordas*.
Resumo: as guriazinhas tocam prá caralho, não há outro termo.
Elas aparentemente têm um bom suporte financeiro, razoável sucesso e devem
continuar crescendo musicalmente. Isso tudo fez renascer em mim um fenômeno
muito frequente até metade da década de 90 e que se perdeu daí para frente: a
expectativa pelo lançamento de um álbum novo. Acho que o último trabalho que
esperei com alguma atenção foi o álbum Versus,
do Pearl Jam (aquele da ovelha), mas agora tenho acompanhado de perto as
notícias das gravações, que, nesses tempos de iutubes e feicebuques, são quase
diárias. Enquanto aguardo, ouço suas músicas disponíveis, no canal próprio e de
sua fanbase.
Mas eu fiz a bobagem imperdoável para um cara com minha
idade e vivência, enquanto cantarolava “... just
go with the flow of the river’s soul”. Em um vídeo qualquer, rolei a página
para baixo e cheguei ao subsolo do cemitério, ao porão do aterro, ao lençol
freático do chorume, ou, se for melhor uma conotação religiosa, desci à mansão
dos mortos, ao sheol, à geena, ao hades dos comentários. E lá encontrei aquilo
que já estamos carecas de encontrar.
O que você esperaria se fizesse um bolo de laranja para o
café da tarde? Que, para o bem ou para o mal, os convivas falassem do bolo, elogiando,
criticando, sugerindo, não está certo? Agora, seu sexo, cor, nacionalidade ou
religião não fariam diferença, ao que me consta. Acontece que as coisas não são
assim. Nos comentários, as coisas degringolam para temas indiretos que vão se
afastando cada vez mais do objeto de origem da discussão, e sempre caminhando
para a polarização e para a rudeza, como se fosse possível colocar
absolutamente tudo no plano político (vide aqui).
E não é só: é normalíssimo descambar para um debate moralizante, com aqueles
inúmeros ranços sexuais, ou tematizações de gênero e sexo, em um vídeo de três
meninas tocando músicas que não falam sobre nada disso. Quem não está a fim de
azedar o estômago, percebe a roubada e cai fora na primeira resposta mal dada,
e quem permanece é porque quer briga, seja para defender sua posição política,
ou para cumprir sua missão de cruzado, ou coisa que o valha.
Eu nem precisava explicar isso tudo. O tema das milícias virtuais é recorrente em
nossos infelizes dias atuais, e um cara que mantém um blog ao invés de um perfil
no Instagram é, certamente, alguém que não está na crista da onda das redes
sociais. Mas é preciso perceber como essa mecânica toda tem sua lógica, que é
baseada mais em uma guerra discursiva do que em pedras e paus físicos.
Um dos principais exemplos é uma falácia a quem deram o nome
de Armadilha de Kafka, que é
utilizada especialmente nos confrontos de conservadores contra progressistas,
esse enjoativo ringue virtual contemporâneo. Foi proposta pelo desenvolvedor
Eric Raymond em 2010 para designar uma modalidade de discurso que imputa culpa
a uma pessoa pelo simples fato de não haver o reconhecimento desta mesma culpa.
Confuso? Vamos entender esse curioso nome, se essa é de fato uma falácia e como
funciona a mecânica do seu uso.
Vai ter um pouco de spoiler, não há como evitar. O livro O Processo é um grande clássico do realismo absurdo, com autoria do tcheco Franz Kafka. Nesta obra, Josef K é o protagonista da história, um homem que vive sua vida medíocre de bancário até que é citado para comparecer em juízo. Total desconhecedor do fato que origina o processo contra si movido, o infeliz é levado a passar por todo tipo de dificuldade nos enredos da burocracia judiciária, no qual não lhe é possível nem ao menos saber do que é acusado. O ambiente distópico é reforçado pelo olhar de todos ao seu redor, que parecem saber de seus delitos como ele próprio não sabe. Prova-se isso com o conselho geral de confissão, o que Josef se recusa a fazer. “Confessar o que, se nem sei do que sou acusado?” é a questão do protagonista. Ele termina mal: como não confessa seu crime, é condenado à morte, o que é feito através de uma facada no peito.
Pois bem. A armadilha de Kafka consiste em atribuir uma culpa
a alguém sem que o contribuinte saiba do que se trata a acusação, e a sua
negação seria, então, uma prova de seu “crime”. Esse formato de argumento tem
sido atribuído nos tempos atuais aos “justiceiros sociais”, maneira pejorativa
de denominar grupos e pessoas que sustentam pautas progressistas, notadamente a
defesa de minorias. Um exemplo muito famoso diz respeito ao feminismo. Vamos a
ele.
No meio daqueles comentários dirigidos aos vídeos da banda,
há algumas observações inconvenientes, dirigidas ao modo como as meninas se
apresentam ao público. De fato, a indumentária usada por elas não tem nada de
especial. Foge à indumentária pontiaguda dos metaleiros, aos andrajos dos grunges
ou ao diáfano das divas pop. Usam calça, camiseta, tênis, e é só. Alguém mais
saidinho reclama da falta de ousadia das suas roupas e lá vamos ladeira abaixo.
A culminância vem na forma daquilo que se convencionou chamar de “lacração”,
uma frase ou gesto que encerra a discussão, geralmente de forma agressiva. No
caso, vamos pegar a frase “todo homem é um estuprador em potencial”. É uma
assertiva forte e de alto poderio acusatório, porque coloca uma carga bastante
pesada nas costas de metade da humanidade.
É uma afirmação claramente falaciosa. Por um lado, há
aspectos físicos que desmentem a frase: homens castrados, com disfunções
eréteis, paralisias, tetraplegias e outras não são ameaças sexuais. Por outro,
há pessoas sem a menor disposição sexual para tanto. Há assexuais e
homossexuais estritos, que não apresentam nenhum tipo de tesão diante de uma
mulher. Mas tudo isso ainda é pouco: tem-se a impressão de que todo homem teria
não só a condição física para o estupro, mas uma predisposição em fazê-lo. A
violência sexual, dessa forma, parece um pressuposto de um determinado gênero,
e isso faz com que o mecanismo de culpa se instale, como se ser homem fosse
inerentemente ruim: há uma ferramenta do mal no próprio tipo físico. Creio que
poucas pessoas, a não ser que estejam em um polo MUITO extremo, acreditam na verdade
dessa afirmação.
Há uma explicação fácil nesse efeito psicológico. Desde
pequenos, em nossa sociedade ocidental, somos apresentados à noção de pecado. Lembrem-se
de Adão e Eva: sendo os pais originais de toda a humanidade, seu pecado de desobediência
(fortemente vinculado à questão sexual de se reconhecerem nus) torna-se algo
genético, transmitido a todo e qualquer vivente que lhes seja descendente. É o
pecado original, transmitido de geração em geração. É um pecado que carregamos
ainda que tenhamos sido as mais puras das criaturas. Com isso, desde a mais
tenra idade, o substrato da culpa nos ladeia, de maneira inevitável, por uma ação
de outrem realizada há milênios. Pelo menos é isso o que ensinam as religiões,
e isso vem no alicerce da construção de sociedades do nosso modelo, por mais
que se ache a história fabulesca. O fato, por conseguinte, é que temos uma via
traçada em nossa psique para esse sentimento de erro, ainda que imotivado.
Percebemos, portanto, que a armadilha de Kafka é uma falácia
que se move por essas peculiaridades. Ela é composta, e conjuga generalização
apressada, ao atribuir a toda uma classe uma característica que é própria
de alguns indivíduos; culpa
por associação, quando se inclui um comportamento indesejável ao grupo que
se pretende combater e raciocínio
circular, porque a carga que é colocada na recusa à pecha é posta como a
própria prova de culpa. Essa lógica pode ser aplicada a qualquer forma de
argumento que acuse alguma parte de ter um privilégio do qual deveria se
envergonhar, como é a questão do racismo,
da homofobia,
da xenofobia
, do sexismo
e da defesa
dos animais, só para citar uns exemplos.
Acontece que pau que dá em Chico, dá em Francisco. Claro que
classes com privilégios tendem a receber um volume maior de acusações, e também
é óbvio que não são todos os argumentos progressistas que são bons, sendo
alguns verdadeiramente exagerados, como pudemos ver. Entretanto, o âmbito
conservador pode utilizar a mesmíssima lógica de acusação genérica e
abrangência generalizada, com uma culpa consequente. Cito a questão do aborto,
onde o papel de justiceiro social se inverte e a defesa dos fetos é feita pela
esfera conservadora. Aliás, eu nunca compreendi muito bem essa troca de papéis,
como já disse neste
texto. Aqui, temos uma acusação de assassinato mesmo para quem nunca nem
sequer sonhou em ter um filho, com a única condição de se estar no polo oposto.
É a mesmíssima lógica. Cito também a acusação de que qualquer pessoa com ideias
progressistas convalida os genocídios perpetrados pelos regimes comunistas
espalhados pelo mundo no século XX. Mesmo quem vê Stalin, Mao, Pol Pot et magna comitante caterva como fumaça
nos olhos é taxado de comunista** se fizer qualquer tipo de objeção ao
moralismo dos costumes ou ao liberalismo da economia. Não, pessoas. Pautas
sociais não precisam ser defendidas por socialistas, mas por qualquer pessoa ou
posição que acredite que há gente que precisa de algum tipo de proteção, como
no caso de leis de acesso a deficientes.
Enfim... Acho triste que até mesmo fundamentos filosóficos
como a Lógica
tenham que ter partido hoje em dia. Apropriações de termos são coisas tão
comuns hoje em dia que automaticamente ficam politizados (aqui
e aqui),
como aconteceu infelizmente com a camisa da seleção, e isso só empobrece nossa
vida. Em essência, progressistas não são ruins, liberais não são ruins e conservadores
não são ruins. Eles só se tornam ruins quando vão a extremos, como ocorre
quando se apropriam de discursos e colocam uma etiqueta na testa de quem
discorda deles.
Penso que vou me arrepender deste post, mas agora já foi.
Bons ventos a todos.
Recomendações:
Já recomendei o ótimo livro de Kafka neste texto aqui.
Vão nele para pegar a referência.
Com relação à banda The Warning, elas possuem um site...
https://www.thewarningband.com/
... e um canal no YouTube:
https://www.youtube.com/user/luisvillarr
Seus dois álbuns lançados até o momento são os seguintes:
THE
WARNING. XXI Century Blood. México: Nada Más Records, 2017. 52:50.
THE WARNING. Queen at
the Murder Scene. México: Nada Más Records, 2018. 51:11.
* Mentira. Acabei de ver um vídeo onde Alejandra recebe um
baixo de cinco cordas para a gravação do novo álbum. Mas eu quis manter o texto
mesmo assim.
** Como se ser comunista fosse um crime por si só. Dizer que
alguém é nazista já embute na pessoa o racismo que é peculiar a este regime,
constituído em sua raiz. Qual crime semelhante há no comunismo? O desrespeito à
propriedade privada? Mas os bancos já não tomam bens dos outros? E, sim, eu não sou comunista, podem acreditar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário