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quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Pequeno guia das grandes falácias – 52º tomo: a armadilha de Kafka (uma falácia polêmica e perigosa)

K. não respondeu mais nada; pensou: será que eu preciso me deixar confundir ainda mais pelo palavrório destes subalternos - eles mesmos admitem que o são? Seja como for, falam de coisas que absolutamente não entendem. A segurança deles só é possível por causa da sua estupidez – Franz Kafka, O Processo

Olá!

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Quando você está solto pelo mundo, é natural e mesmo desejável que varie suas atividades para além daquilo que é necessário. O problema são os tempos de pandemia, infinitos, que te deixam um bocado amarrado (ao menos para quem tem vontade de preservar a si e aos seus). Dessa forma, não tenho um campo de possibilidades muito aberto, e continuo fazendo as mesmas coisas que fazia logo no início da desventura, há mais de sete meses. Isso inclui explorar a internet em busca de bandas antigas, como já narrei aqui. Claro que sou fã das sendas do bom e velho rock’n’roll, como conto para vocês há tempos, e esse é o perfil de minhas buscas ainda hoje.

Em uma dessas, fui fazer uma maratona Black Sabbath, de quem sou fã. Não é nada muito original, mas é como o bom e velho arroz-com-feijão: por mais que você tenha carnes e peixes do mundo todo ao seu dispor, tem momentos em que tudo o que você quer é uma boa e simples comidinha caseira. A comparação não é muito própria, mas é o que me ocorreu no momento. Só que eu fui atrás de músicas específicas, ao invés de utilizar uma das muitas playlists encontráveis na internet. Chamei Supertzar, chamei Electric Funeral, chamei Sabbra Cadabra, chamei Fairies Wear Boots. Em todas elas, o algoritmo me obedeceu perfeitamente, como se compreendesse minhas intenções. A coisa deu chabu quando chamei The Warning. Ao invés de surgir a música do lado B do primeiro álbum dos britânicos, aquele da bruxa, surge um vídeo de umas menininhas. Menininhas mesmo, muito jovens, até um pouco desengonçadas, com uma certa desproporção dos instrumentos que tangiam. Torci o nariz e rolei um pouco a página, em busca da música procurada. Mas havia outros e mais outros vídeos das mesmas garotas, e concluí que deveria descartar a preguiça e especificar um pouco melhor minha busca. Entretanto, a curiosidade venceu a desesperança e, sei lá por qual motivo, cliquei no vídeo das meninas, certo da decepção. Não e não e não!!!

The Warning é o nome de uma banda mexicana, composta pelas irmãs Daniela, Paulina e Alejandra, todas de 20 anos para baixo, e que faz um som que vai no meio termo entre o Heavy Metal e o Grunge. Não há nenhuma novidade crucial no som delas, mas uma qualidade surpreendente no produto final, muito melhor do que vem sendo produzido nesses tempos modorrentos. Embora não sejam virtuoses, são ótimas musicistas, especialmente se levarmos em conta a pouca idade, e vem claramente evoluindo em seus misteres, o que gera boas perspectivas. Algumas coisas em especial me trouxeram encanto para o que vi:

1. A banda é um power trio, formação que se consagrou nos anos de ouro do hard rock, com bandas como Blue Cheer, Cream, Beck Bogert and Appice, ZZ Top, Jimi Hendrix Experience, Rush, Triumph, Motorhead, Budgie, Mountain e muitos outros. É um formato que eu adoro, talvez pelo fato de que minha primeira banda tenha sido um desses, ou pelo reconhecimento de que os membros do grupo precisam se desdobrar na função de vocalistas, que baixo e bateria precisam segurar a peteca sozinhos na hora dos solos, o que as garotas em questão fazem com a mesma qualidade conseguida pelas senhoritas do Rock Goddess (outro power trio poderoso);

2. Todas as três componentes também cantam, o que permite a formação de contrapontos e coros mais preenchidos, como acontece com Uriah Heep, Birtha, Vanilla Fudge, Fanny e outras bandas;

3. Cada uma delas faz vocal solo. Isso não é só prova de habilidade, mas dá uma possibilidade de variação na execução das composições. Entre três irmãs, há uma inevitável variabilidade entre vozes, o que pode ser usado a favor de seu trabalho: uma voz mais grave aqui, mais sussurrada lá, mais gritada acolá, mais rascante para além. Tudo isso aumenta o espectro do que as meninas podem fazer;

4. Usam teclados com parcimônia e sabedoria, já que a vida musical delas começou exatamente dessa forma. Sabemos que há uma medida certa para se usar tecladeiras nessa área do rock, e a dose me parece bastante justa – bem pouca;

5.  Elas crescem muito em energia no palco. De fato, bandas aclamadíssimas como o Nirvana perdem demais quando tocam ao vivo, pelos mais diferentes motivos. Algumas escancaram seus limites técnicos, enquanto outras se limitam a reproduzir o que está em seus álbuns. Quem vai a um show não quer ouvir uma reprodução, como se ouvisse um disco na vitrola. Quer ver como uma música evoluiu a partir de sua gravação e como a interação com o público a faz encorpar. Esse é o melhor sentido do trabalho de The Warning: as gurias são muito boas de palco;

6. Ainda continuando no quesito “ao vivo”, elas fazem uma mescla bem interessante de covers com músicas autorais; aliás, estas últimas poderiam ser um ponto fraco, mas não. As canções próprias são bem redondinhas;

7. Mais uma referente a palco. Não consegui perceber utilização de overdubs ou samples para disfarçar incorreções, especialmente vocais. É garganta e braço. Posso estar enganado, nesses tempos em que verdades digitais são criadas com dois cliques de mouse, mas sempre há uma maneira de pegar o erro quando ele é escancarado;

8. Uma frescura minha: a baixista usa baixos de quatro cordas*.

Resumo: as guriazinhas tocam prá caralho, não há outro termo. Elas aparentemente têm um bom suporte financeiro, razoável sucesso e devem continuar crescendo musicalmente. Isso tudo fez renascer em mim um fenômeno muito frequente até metade da década de 90 e que se perdeu daí para frente: a expectativa pelo lançamento de um álbum novo. Acho que o último trabalho que esperei com alguma atenção foi o álbum Versus, do Pearl Jam (aquele da ovelha), mas agora tenho acompanhado de perto as notícias das gravações, que, nesses tempos de iutubes e feicebuques, são quase diárias. Enquanto aguardo, ouço suas músicas disponíveis, no canal próprio e de sua fanbase.

Mas eu fiz a bobagem imperdoável para um cara com minha idade e vivência, enquanto cantarolava “... just go with the flow of the river’s soul”. Em um vídeo qualquer, rolei a página para baixo e cheguei ao subsolo do cemitério, ao porão do aterro, ao lençol freático do chorume, ou, se for melhor uma conotação religiosa, desci à mansão dos mortos, ao sheol, à geena, ao hades dos comentários. E lá encontrei aquilo que já estamos carecas de encontrar.

O que você esperaria se fizesse um bolo de laranja para o café da tarde? Que, para o bem ou para o mal, os convivas falassem do bolo, elogiando, criticando, sugerindo, não está certo? Agora, seu sexo, cor, nacionalidade ou religião não fariam diferença, ao que me consta. Acontece que as coisas não são assim. Nos comentários, as coisas degringolam para temas indiretos que vão se afastando cada vez mais do objeto de origem da discussão, e sempre caminhando para a polarização e para a rudeza, como se fosse possível colocar absolutamente tudo no plano político (vide aqui). E não é só: é normalíssimo descambar para um debate moralizante, com aqueles inúmeros ranços sexuais, ou tematizações de gênero e sexo, em um vídeo de três meninas tocando músicas que não falam sobre nada disso. Quem não está a fim de azedar o estômago, percebe a roubada e cai fora na primeira resposta mal dada, e quem permanece é porque quer briga, seja para defender sua posição política, ou para cumprir sua missão de cruzado, ou coisa que o valha.

Eu nem precisava explicar isso tudo.  O tema das milícias virtuais é recorrente em nossos infelizes dias atuais, e um cara que mantém um blog ao invés de um perfil no Instagram é, certamente, alguém que não está na crista da onda das redes sociais. Mas é preciso perceber como essa mecânica toda tem sua lógica, que é baseada mais em uma guerra discursiva do que em pedras e paus físicos.

Um dos principais exemplos é uma falácia a quem deram o nome de Armadilha de Kafka, que é utilizada especialmente nos confrontos de conservadores contra progressistas, esse enjoativo ringue virtual contemporâneo. Foi proposta pelo desenvolvedor Eric Raymond em 2010 para designar uma modalidade de discurso que imputa culpa a uma pessoa pelo simples fato de não haver o reconhecimento desta mesma culpa. Confuso? Vamos entender esse curioso nome, se essa é de fato uma falácia e como funciona a mecânica do seu uso.


Vai ter um pouco de spoiler, não há como evitar. O livro O Processo é um grande clássico do realismo absurdo, com autoria do tcheco Franz Kafka. Nesta obra, Josef K é o protagonista da história, um homem que vive sua vida medíocre de bancário até que é citado para comparecer em juízo. Total desconhecedor do fato que origina o processo contra si movido, o infeliz é levado a passar por todo tipo de dificuldade nos enredos da burocracia judiciária, no qual não lhe é possível nem ao menos saber do que é acusado. O ambiente distópico é reforçado pelo olhar de todos ao seu redor, que parecem saber de seus delitos como ele próprio não sabe. Prova-se isso com o conselho geral de confissão, o que Josef se recusa a fazer. “Confessar o que, se nem sei do que sou acusado?” é a questão do protagonista. Ele termina mal: como não confessa seu crime, é condenado à morte, o que é feito através de uma facada no peito.

Pois bem. A armadilha de Kafka consiste em atribuir uma culpa a alguém sem que o contribuinte saiba do que se trata a acusação, e a sua negação seria, então, uma prova de seu “crime”. Esse formato de argumento tem sido atribuído nos tempos atuais aos “justiceiros sociais”, maneira pejorativa de denominar grupos e pessoas que sustentam pautas progressistas, notadamente a defesa de minorias. Um exemplo muito famoso diz respeito ao feminismo. Vamos a ele.

No meio daqueles comentários dirigidos aos vídeos da banda, há algumas observações inconvenientes, dirigidas ao modo como as meninas se apresentam ao público. De fato, a indumentária usada por elas não tem nada de especial. Foge à indumentária pontiaguda dos metaleiros, aos andrajos dos grunges ou ao diáfano das divas pop. Usam calça, camiseta, tênis, e é só. Alguém mais saidinho reclama da falta de ousadia das suas roupas e lá vamos ladeira abaixo. A culminância vem na forma daquilo que se convencionou chamar de “lacração”, uma frase ou gesto que encerra a discussão, geralmente de forma agressiva. No caso, vamos pegar a frase “todo homem é um estuprador em potencial”. É uma assertiva forte e de alto poderio acusatório, porque coloca uma carga bastante pesada nas costas de metade da humanidade.

É uma afirmação claramente falaciosa. Por um lado, há aspectos físicos que desmentem a frase: homens castrados, com disfunções eréteis, paralisias, tetraplegias e outras não são ameaças sexuais. Por outro, há pessoas sem a menor disposição sexual para tanto. Há assexuais e homossexuais estritos, que não apresentam nenhum tipo de tesão diante de uma mulher. Mas tudo isso ainda é pouco: tem-se a impressão de que todo homem teria não só a condição física para o estupro, mas uma predisposição em fazê-lo. A violência sexual, dessa forma, parece um pressuposto de um determinado gênero, e isso faz com que o mecanismo de culpa se instale, como se ser homem fosse inerentemente ruim: há uma ferramenta do mal no próprio tipo físico. Creio que poucas pessoas, a não ser que estejam em um polo MUITO extremo, acreditam na verdade dessa afirmação.

Há uma explicação fácil nesse efeito psicológico. Desde pequenos, em nossa sociedade ocidental, somos apresentados à noção de pecado. Lembrem-se de Adão e Eva: sendo os pais originais de toda a humanidade, seu pecado de desobediência (fortemente vinculado à questão sexual de se reconhecerem nus) torna-se algo genético, transmitido a todo e qualquer vivente que lhes seja descendente. É o pecado original, transmitido de geração em geração. É um pecado que carregamos ainda que tenhamos sido as mais puras das criaturas. Com isso, desde a mais tenra idade, o substrato da culpa nos ladeia, de maneira inevitável, por uma ação de outrem realizada há milênios. Pelo menos é isso o que ensinam as religiões, e isso vem no alicerce da construção de sociedades do nosso modelo, por mais que se ache a história fabulesca. O fato, por conseguinte, é que temos uma via traçada em nossa psique para esse sentimento de erro, ainda que imotivado.

Percebemos, portanto, que a armadilha de Kafka é uma falácia que se move por essas peculiaridades. Ela é composta, e conjuga generalização apressada, ao atribuir a toda uma classe uma característica que é própria de alguns indivíduos; culpa por associação, quando se inclui um comportamento indesejável ao grupo que se pretende combater e raciocínio circular, porque a carga que é colocada na recusa à pecha é posta como a própria prova de culpa. Essa lógica pode ser aplicada a qualquer forma de argumento que acuse alguma parte de ter um privilégio do qual deveria se envergonhar, como é a questão do racismo, da homofobia, da xenofobia , do sexismo e da defesa dos animais, só para citar uns exemplos.

Acontece que pau que dá em Chico, dá em Francisco. Claro que classes com privilégios tendem a receber um volume maior de acusações, e também é óbvio que não são todos os argumentos progressistas que são bons, sendo alguns verdadeiramente exagerados, como pudemos ver. Entretanto, o âmbito conservador pode utilizar a mesmíssima lógica de acusação genérica e abrangência generalizada, com uma culpa consequente. Cito a questão do aborto, onde o papel de justiceiro social se inverte e a defesa dos fetos é feita pela esfera conservadora. Aliás, eu nunca compreendi muito bem essa troca de papéis, como já disse neste texto. Aqui, temos uma acusação de assassinato mesmo para quem nunca nem sequer sonhou em ter um filho, com a única condição de se estar no polo oposto. É a mesmíssima lógica. Cito também a acusação de que qualquer pessoa com ideias progressistas convalida os genocídios perpetrados pelos regimes comunistas espalhados pelo mundo no século XX. Mesmo quem vê Stalin, Mao, Pol Pot et magna comitante caterva como fumaça nos olhos é taxado de comunista** se fizer qualquer tipo de objeção ao moralismo dos costumes ou ao liberalismo da economia. Não, pessoas. Pautas sociais não precisam ser defendidas por socialistas, mas por qualquer pessoa ou posição que acredite que há gente que precisa de algum tipo de proteção, como no caso de leis de acesso a deficientes.

Enfim... Acho triste que até mesmo fundamentos filosóficos como a Lógica tenham que ter partido hoje em dia. Apropriações de termos são coisas tão comuns hoje em dia que automaticamente ficam politizados (aqui e aqui), como aconteceu infelizmente com a camisa da seleção, e isso só empobrece nossa vida. Em essência, progressistas não são ruins, liberais não são ruins e conservadores não são ruins. Eles só se tornam ruins quando vão a extremos, como ocorre quando se apropriam de discursos e colocam uma etiqueta na testa de quem discorda deles.

Penso que vou me arrepender deste post, mas agora já foi. Bons ventos a todos.

Recomendações:

Já recomendei o ótimo livro de Kafka neste texto aqui. Vão nele para pegar a referência.

Com relação à banda The Warning, elas possuem um site...

https://www.thewarningband.com/

... e um canal no YouTube:

https://www.youtube.com/user/luisvillarr

Seus dois álbuns lançados até o momento são os seguintes:

THE WARNING. XXI Century Blood. México: Nada Más Records, 2017. 52:50.

THE WARNING. Queen at the Murder Scene. México: Nada Más Records, 2018. 51:11.

* Mentira. Acabei de ver um vídeo onde Alejandra recebe um baixo de cinco cordas para a gravação do novo álbum. Mas eu quis manter o texto mesmo assim.

** Como se ser comunista fosse um crime por si só. Dizer que alguém é nazista já embute na pessoa o racismo que é peculiar a este regime, constituído em sua raiz. Qual crime semelhante há no comunismo? O desrespeito à propriedade privada? Mas os bancos já não tomam bens dos outros? E, sim, eu não sou comunista, podem acreditar.

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