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sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O café filosófico do quotidiano – à guisa de introdução, os ritos que me fazem ver Filosofia na fumacinha da alvorada

Olá!

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Uma coisa que eu não lembro de ter contado para vocês é minha predileção por café. É coisa que veio crescendo com o tempo, a ponto de se tornar uma quase obsessão, em flagrante exagero poético, Na verdade, já fiz várias referências a esse fato, mas sem me aprofundar muito. Acho que o momento é propício. Tenho passado lamentáveis momentos de gastrite, e por isso reduzi substancialmente o consumo. Mas gosto muito da rubiácea torrada e moída, desde tão tenra idade que nem lembro quando e como o hábito começou. Todo mundo que podia saber já morreu, então vai ficar essa lacuna.

Nunca gostei de leite, a não ser misturas saturadas de chocolate, que naturalmente suplantam o gosto ruim*. Isso se deu desde meu nascimento. Minha mãe tinha as tetas gordas e cheias, mas eu só mamava mililitros, quando não tinha outra alternativa para sobreviver. O médico ouvia os relatos de minha mãe e pugnava pela sua insistência, mas diante da repetibilidade, foi paulatinamente abrindo as comportas: primeiro, um leite em pó apropriado para recém-nascidos (Nanon?), caro prá dedeu. Não dando certo, vamos para o leite Ninho©, bem ralo. Nada. Vamos tentar leite condensado, que não tem gosto de leite. O problema é que, uma vez diluído, tem gosto de leite, sim. Apelemos para o leite de bar, daqueles de saquinho, devidamente fervido e aguado. Tsc, tsc… Eu ia vivendo de chá e mais nada, e perdendo muito peso justo no momento em que os gramas deveriam se multiplicar diariamente. Minha mãe já estava perdendo a habitual calma, e a madrinha tia Nena chorava de pleno pranto, com aquelas coisas de que “esse menino não vai vingar desse jeito”. O médico, cujo nome não sei dizer (Adeodato? Acho que era isso), resolveu apelar: faça uma sopa cozinhando um peito de frango, com um pouquinho-muito-pouco de sal. Dê de golinho em golinho, como se estivesse dando remédio. Vamos ver no que dá. Deu num camarada de quase cem quilos, cinquenta anos depois.

O café que se tomava em casa tinha aquela desafiadora cor e consistência de petróleo, feito aos litros em coadores de pano ou papel, com aquele pó que estava em preço mais convidativo nos empórios, descartadas as porcarias mais eméritas, bem entendido. E ele estava presente em todos os momentos da vida, começando nos dias mais contentes, nas visitas do compadrio, no quotidiano morno, no desjejum prosaico e terminando nos velórios, indefectível e abundante.

Hoje eu sou reconhecidamente mais fresco no quesito café. Não que eu não pare na beira da estrada e me divirta com a zurrapa que estiver disponível, mas resolvi distinguir essa bebida daquela produzida nos momentos mais intimistas, e quando estou em casa tomo todos os cuidados devidos para extrair o melhor líquido possível do nobre grão. O processo todo virou um hobby para mim. Compro o café verde, torro lentamente no fogão de casa e passo pelo moedor manual, com o grau de moagem mais adequado para o gênero à minha frente. E tento o melhor sabor utilizando os métodos mais diversos possíveis, até estar diante de uma xícara fumegante. E é nessas evolações que meus pensamentos voam, da mesma maneira que o vapor vai para qualquer lugar que o vento o leve.


E aí você pode encarar esse procedimento todo de duas formas: como uma rotina ou como um ritual. Na primeira opção, temos um encargo, algo que facilmente derivará para o tédio ou para a obrigação. Já na segunda, a coisa muda de figura. Passa a ser uma opção sua, em que cada pequeno rito passa a fazer parte de uma celebração maior. É nessa segunda hipótese que eu encaixo o café nosso de cada dia. Levanto e me coloco a desvendar qual a melhor combinação para aquele dia, gerando o suficiente para uma xícara para mim, outra para a patroa, como se fosse um afetuoso “bom dia” na forma de aroma e sabor.

Vejamos: tudo nasce no momento da compra, mas nem vou me ater a isso, partindo de cara para o culto. Dois ou três tipos de grão estarão disponíveis em seus pacotes devidamente fechados, sem estarem expostos à luz ou à umidade. Não adianta ter uma coleção completa de cafés do mundo inteiro – existe uma coisa chamada prazo de validade, e o café velho perde muito de seu gosto. A primeira transformação é a torra, e já começamos com uma etapa decisiva, girando a manivela da torreifadeira no ritmo certo, como se fosse uma canção a embalar a lida. As palhas começarão a queimar e a escapar pelo vazador, sujando todo tampo do fogão. São dias em que a vizinhança toma noção da minha existência, que vai além do pagamento do condomínio. O momento exige atenção, porque é preciso interromper a torra pouco antes de se chegar ao ponto desejado, porque o processo de queima continua por mais um pequeno lapso de tempo, e será despejado em uma bateia de bambu, para ser abanado no vento, que leva a palha queimada embora e deixa somente o grão pronto para a moagem. Morando em apartamento, esse tipo de operação tem que ser feita com uma minimização do espetáculo de arremessos que costumamos ver no campo. Mas tudo na vida tem sua quota de sacrifício.

Esses são os rituais mais sazonais, que dão mais trabalho porque existe uma limpeza por trás deles. A partir daí, temos uma faina diária, que começa pela moagem, o que faço em um moinho Mimoso©, daqueles manuais, clássicos. Escolho o método que utilizarei e regulo a espessura do pó: mais espesso para cafés prensados, menos grosso para cafés coados, até a moagem bem fininha, semelhante a uma farinha, para o decantado café turco, nos dias em que precisamos de mais cafeína. Feito isso, evitando sobras, passo para o preparo do aparelho a ser utilizado, escaldando filtros, montando cafeteiras, aquecendo as xícaras. Em geral, realizo a pré-infusão, para condensar o pó. Depois, lentamente, com um bule pescoço-de-ganso, vou circulando progressivamente a água para infundir o pó e realizar a mágica, ou então baixo as prensas para transpor líquido para cima, borra para baixo. Em dias de decantação, dá até para brincar de leitura de borra, treinando a leitura fria. Tudo depende daquilo que quero obter para um dia, como fazemos ao olhar para um calendário litúrgico e preparamos o espaço para celebrar aquilo que for prescrito, como ocorre em igrejas católicas e ortodoxas, em mesquitas, sinagogas, terreiros e templos extremo-orientais.

Isso tudo pode ser comparado com a liturgia de qualquer igreja, ainda que eu nem esteja sonhando com qualquer divindade no momento do preparo do café. Quando faço isso, deixo de ter uma mera tarefa para ter uma expectativa, como se eu quisesse sintetizar toda a filosofia de Epicuro no simples ato de preparar um café, um bom café.

E qual é o propósito disso tudo? O que há de bom em se dedicar tanto a um gole que vai à garganta em questão de segundos? Essa é a pergunta de quem não compreende a feitura do café como um ritual. E a resposta para quem se propõe a entender é muito simples: um rito não vem só da esfera do sagrado, como eu já falei neste texto. É da própria natureza humana que certos atos se consagrem, e isso é bom porque fornece significado às pequenas atitudes do dia-a-dia. É como eu disse logo atrás. Um mero café feito apenas para ingerir correndo é um elemento de rotina, que tem poucos propósitos – acompanhar o pão com manteiga, ajudar a acordar, e é só. Já o café preparado liturgicamente dá outras proposições a um ato que continua com a mesma simplicidade: alcançar o melhor sabor, compreender as técnicas ideais, interagir com a natureza do grão e a cultura das preparações. Transformar um momento comezinho e conseguir um melhor prazer, no final das contas. E o resultado de um ou de outro é completamente diferente: do café rotineiro, não guardamos nada, talvez o retrogosto do produto ruim; do café ritualístico, ao chegar no ápice da relação com a planta, temos um resultado prenhe de Estética. Conhecemos melhor o mundo pelo que nossos próprios sentidos podem nos trazer.

É claro que de tudo isso que estou falando não precisamos tirar nenhuma conclusão esotérica, embora haja uma religiosidade circunscrita na ação humana mesmo se somos ateus (para entender, leiam este texto). É preciso sacar que nem todo ritual está ligado a uma religião, mas a um conjunto de atos que se desenvolvem com um objetivo que vai além do resultado concreto. No caso, temos uma xícara de café, com tudo o que está por trás dela. Poderia ser um incenso que suspende no ar uma oração, poderia ser uma vela que evoca uma luz, mas é uma xícara de café, que traz recordações e percepções sensoriais mais exacerbadas pelo simples fato de ter seguido uma intenção menos objetiva que o puro líquido escoado.

Já falei neste texto que lidamos pouco com os ritos, e, talvez por isso mesmo, pouco percebamos que eles estão sempre presentes em nossas vidas. Haverá quem diga que é sagrada a macarronada de domingo na casa da nonna, e sabe por quê? Porque é sagrada mesmo. Não no sentido religioso, mas da importância que damos a um ato simples, e que tiramos da normatização do quotidiano. Sempre que se deixar de ir à casa da nonna para o macarrão, faltará algo no dia, e só se fará isso com uma justificativa franca. Quando formos ver a anciã, o domingão estará pleno. Isso é o que é a sacralização do profano que mencionei há pouco. Ritualizamos mesmo quando não nos damos conta. Não é melhor que tenhamos mais consciência disso?

Isso tudo faz pensar em outra característica dos ritos, que é o nascimento de muitos deles na esfera privada, e que depois ganham o mundo público. O fato de eu fazer café ou de você ir à casa da nonna não são exclusividades nossas. Há inúmeras outras pessoas que fazem a mesmíssima coisa, além de tantas outras, como celebrar uma data, uma festa, que vai se tornando mais e mais coletiva na medida em que passa a representar as vontades e as sagrações de um número de pessoas que se identifica com a mesma causa. Tem um belo exemplo de criação de rito que já mencionei em um texto, a simples escolha de um mastro de bandeira, que acaba por mobilizar uma cidade inteira no interior do Ceará. Não é interessante?

Mas minha cerimônia não se encerra quando o café está pronto na xícara. Tal qual costuma ocorrer nas religiões de práticas meditativas, a sorvedura inicial já me conduz a um filosofar, muito semelhante ao que acontece em meus relatos de viagem**. O propósito de Aporias Plurais, o nome deste humilde espaço que compartilho com vocês, é justamente pegar essas coisinhas que ocorrem todos os dias para trazer à reflexão, e é isso que farei doravante. Todas as vezes em que ocorrer ponderações desse tipo, motivadas ou ocorridas ao sabor do sabor do café, vou elaborar um texto para compartir com vocês, meus heróis da resistência. Seu título será “o café filosófico de nosso quotidiano”, seguido pelo tema em questão.

É claro que o nome da ideia vem dos eventos ocorridos na Europa, essencialmente na França, sob a criação do filósofo Marc Sautet, que se reunia em um pequeno bar próximo à Bastilha, em Paris, para concretizar seu propósito de uma filosofia prática, onde a reflexão se desse fora do âmbito da academia. Reunia seus amigos e alunos para debater sobre um tema central, regado de muito café e licor, como é hábito naquele pedaço de planeta. A práxis cresceu, e outros professores adotaram o mesmo costume, abrindo a discussão para um público maior (embora ainda restrito). Em Terra Brasilis, ainda que não tão difundido quanto poderia, o nome ficou celebrizado por eventos promovidos pelo Instituto CPFL e transmitido pela TV Cultura de São Paulo, que trouxe a público muitos dos nomes que hoje em dia estão mais famosos nos meios digitais, como Leandro Karnal, Renato Janine, Clóvis de Barros Filho e outros. E é nessa forma que pretendo abrir mais esse aspecto da minha ágora. Espero que gostem.

Bons ventos a todos. Carregados de cheiro de café.

Recomendação:

O programa Café Filosófico pode ser assistido na TV Cultura, canal 2. Como a pandemia não será para sempre, é provável que voltem os programas ao vivo. Para tanto, basta acompanhar a programação no site da CPFL, onde também há, gratuitamente, todo o material gravado desde 2003. Uma sugestão sincera: pegue um tema que você goste e tente sentir o sabor da Filosofia (ou Sociologia, ou Psicologia, ou Direito, ou Antropologia, as áreas são muitas). Às vezes não nos abrimos para o conhecimento por puro preconceito.

https://www.institutocpfl.org.br/cafe-filosofico

* Perdão a todos os que gostam de leite, e não são poucos, mas no meu paladar não tem jeito: leite não vai. Inclusive a única forma de queijo que eu não gosto é o requeijão, justamente porque mantém um certo sabor de leite.

** Seguem suas páginas principais:

Diário de bordo de uma nau sem rumo

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme

O cesto da gávea de onde observo o mundo

Navegar é preciso viver

Dos dias em que o vento nos afasta do mar

Em demanda dos trilhos perdidos

Para lá da serra que eu vejo da janela

Navegações de cabotagem

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