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sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Ateísmo: o que ele é e o que ele não é

Olá!

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Vou dizer para vocês que eu gostei da brincadeira. Publiquei um texto sobre erros e acertos sobre o comunismo e achei bem informativo, mesmo que não tenha tomado tantos xingos quanto esperava. Por conta disso, vou repetir a tarefa outras vezes, só que não de forma sistematizada. Pintou, farei.

O tema de agora é o ateísmo. É um assunto que surpreende quando nos damos conta da quantidade de desinformação que gira em torno do mesmo. Isso porque, quando falamos em comunismo, há de fato um bom tanto de teoria que fica no pano de fundo, e é muito fácil de se fazer confusão, propositadamente ou não. Agora, com relação ao ateísmo, não há nada de misterioso, a não ser que haja uma má vontade de esclarecer e uma boa vontade de manipular. Então vamos a ele, porque não vai ser demorado.


Vamos iniciar pelo fundamental: o que é um ateu?

Um ateu é uma pessoa que não acredita deuses. Só isso. Dá até para discutir que o fato de que um ateu acredite em coisas que não são palpáveis aproximam-no de alguma forma religiosa, como já falei aqui, ou que ritualizem da mesma forma que um religioso, como já discorri neste post, mas a definição que a palavra dá é tremendamente fácil de compreender: a+theos, prefixo de negação A junto à palavra THEOS, que, em grego, significa deus. Ça tout.

Ateus são imorais?

Esta é, de longe, a principal atribuição que se faz a um ateu qualquer. E aqui seria necessário discorrer longamente sobre o que é moral e suas derivações, mas não vamos dar todo esse circunlóquio. Basta dizer que moral, do latim mores, diz respeito aos usos, costumes e valores que ocorrem dentro de uma determinada sociedade, independentemente de quem deriva essa espécie de poder coercitivo de estabelecer o que é bom e o que não é. Para um religioso, a fonte da moral, ou seja, aquele que estabelece o que é certo e o que é errado, é uma divindade, que define a moral arbitrariamente*. Para o ateu, quem estabelece esses mesmos princípios é o contrato social, o acordo tácito entre os indivíduos de uma sociedade para a manutenção da mesma. Por exemplo, a disposição “não matar” ou “não roubar” é, para o religioso, um arbítrio divino; para o ateu, um acordo social para proteger a vida e o patrimônio, os seus e os dos outros. O grande problema é que chega um ponto em que a moralidade religiosa e a “cola” social a quem os ateus se pegam viram duas placas tectônicas em constante colisão, especialmente em termos de moral sexual. Aí, as divergências crescem muito, e o fato de um ateu se preocupar menos com o que alguém faz na cama do que um religioso joga esses primeiros no campo da imoralidade.

Socialmente não é bom que haja uma religião para colocar freios nos indivíduos?

É uma questão meio capciosa, e é feita em função de uma cultura que é moldada pela presença da religião. A psicologia nos fala em freios morais, que são o medo, a vergonha e a culpa, e, da mesma forma que explicado no item anterior, esse conjunto de sentimentos existe tanto para quem é religioso quanto para quem não é. Em uma sociedade com a presença do componente religioso muito forte, a ideia da ausência de deus embute a impressão de que não há mais quem retenha as violências e imoralidades de seus membros. Mas os freios morais estão lá, de qualquer forma. Porém, se em última instância uma pessoa só deixa de cometer crimes porque acredita na punição pelo seu pecado, vá lá que seja. Melhor assim.

Qual é a perspectiva de vida futura de um ateu?

De um ateu convicto, nenhuma. A vida se realiza neste plano e somente aqui. É angustiante? Sim, mas não dá para fazer nada. A fórmula geral é não ficar se debatendo com isso. Já para um agnóstico, há a dúvida, tipo esperar para ver. Talvez haja ateus que esperam errar, não sei.

Ateus e céticos são a mesma coisa?

Um ateu de fato é um cético, mas estritamente com relação à religião. É perfeitamente possível que um ateu acredite em qualquer outra história da carochinha, inclusive de cunho pseudocientífico, como as recentes conspirações da fosfoetanolamina ou da cloroquina. Ceticismo significa dúvida, desconfiança, um não acreditar em alguma coisa sem passar por crivos da razão, é um descrer consciente. Este é o motivo pelo qual essa confusão é costumeira.

Qual a diferença entre ateísmo e agnosticismo?

É raro um ateu cem por cento puro, pela simples razão de que o principal motivo para não se crer em um deus é a ausência de uma predisposição lógico-material dessa divindade. Isso não exclui uma possibilidade de existência, mas reduz muito sua cognoscibilidade. Sempre que um religioso fala em sentir seu deus, dá mais cara de poesia à sua convicção do que qualquer outra coisa, e é disso que o ateu se afasta. Entretanto, é muito difícil, pela própria estrutura humana, não se aceitar a hipótese de que há algo lá fora.

Ateísmo e materialismo são a mesma coisa?

Não, embora seja verdade que, em sentido lato, os ateus sejam materialistas. Essa palavra às vezes tem uma conotação errada, de que tudo o que importa é o mundo material, e que isso seria um sinônimo de mesquinhez.

O ateísmo é uma crença?

É preciso ser bem concessivo para admitir que sim. Há uma diferença fundamental entre o ateu e o agnóstico (e até entre outras posições diante da crença, conforme descrito aqui), que se sintetiza no seguinte: o ateu acredita que deus não exista, enquanto o agnóstico não assume nenhum lado. O ateu tem uma resposta ativa, uma colocação contra o que não pode ser demonstrado, um posicionamento no que diz respeito à transcendência: ela não há. Como não há provas da existência, também não há da inexistência, embora em termos de argumentos haja uma diferença bastante clara no ônus da prova. Sendo assim, temos uma forma de crença que não ocorre na agnose, que simplesmente vaticina que, havendo deuses, eles são incognoscíveis, e isso motiva não uma descrença, mas uma suspensão do juízo sobre o tema.

O ateísmo é uma forma disfarçada de religião?

É uma afirmação frequente, e, apesar de parecer absurda, não é totalmente desprovida de sentido. Isso porque há muitos ateus militantes, que se comportam como se tivessem as mesmas armas das religiões: o proselitismo, os argumentos em forma de desafio, a inconveniência. É o tipo de gente que é mais um raivoso contra a religião do que alguém que não crê e pronto. Para esses, o ateísmo funciona de maneira muito similar a uma religião. É claro que a existência de associações de ateus não responde adequadamente a essa pergunta, porque qualquer grupo de pessoas pode se juntar para a defesa de seus interesses. Um sindicato não é uma igreja, por exemplo, mas tem símbolo próprio, tem condições para a associação, incentiva a manutenção da união entre os seus membros e lutam por suas pautas. É a mesma coisa com as poucas associações de ateus que existem por aí.

O ateu não tem medo do diabo?

É impressionante a quantidade de gente que diz ser o ateísmo uma obra de Satanás. Miseravelmente, se o ateu não acredita em deus, também não acredita no diabo. Do contrário, não seria ateu, mas satanista. Parem com esse tipo de bobagem.

É possível ser ateu e religioso ao mesmo tempo?

Discutível e estranho. De fato, se levarmos em conta estritamente a etimologia da palavra, não faz muito sentido. Entretanto, se não colocarmos a religião unicamente no plano da existência de um deus, mas de uma transcendência, uma instância metafísica que vai para além do alcance humano, neste caso sim, é possível que esse fenômeno aconteça, como é o caso dos budistas (leia mais aqui). Portanto, temos o caso da necessidade de uma definição do que é religião para responder essa pergunta.

Por que existem tantos ateus não declarados?

Como acontece com qualquer grupo minoritário em uma sociedade, ateus são alvo de preconceito. Sabe aquela história de não ter deus no coração? Isso é atribuído não para aqueles que não acreditam em deus, mas para aqueles que são maus. Dessa forma, muita gente acha melhor ficar na miúda a se mostrar como é de fato, como acontece com tanta gente.

Estado laico é uma expressão do ateísmo?

Erro crasso, soturno e desditoso, de quem não compreende mesmo o que é Estado laico. A laicidade não diz respeito à descrença na existência de um deus ou do valor das religiões, mas mui simplesmente a algo que não se mistura com religião. Um estado laico é a garantia de que ninguém será objeto de perseguição por conta de suas crenças ou, vejam só, pela ausência dela. Os mártires do Cristianismo existiram em profusão até o século IV justamente porque o estado romano não era laico. Se o Estado laico não proíbe o exercício de qualquer religião, como pode ser acusado de ser uma expressão do ateísmo? A ideia já era um dos pilares da Revolução Francesa, mas sua assunção mais conhecida vem dos Estados Unidos, um país fortemente ligado à religião cristã. Veja o que diz a primeira emenda da Constituição ianque, com meu grifo ao que mais importa para nós neste texto:

"O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito do estabelecimento de uma religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão ou imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem petições ao governo para que sejam feitas reparações de queixas".

Se deus não existe, porque está em todas as culturas do mundo?

É a velha questão dos antropólogos estruturalistas. O homem é fundamentalmente igual em qualquer lugar que esteja. Da mesma forma que fisicamente todos os seres humanos têm cabeça, tronco e membros, também possuem estruturas culturais muito semelhantes. Todas as culturas possuem diversos elementos que divergem na aplicação, mas que se igualam na existência intrínseca: todas as culturas têm regras, têm símbolos, têm valores, têm organização social e política, têm usos e costumes e têm crenças. Ocorre que o nascimento de uma cultura sempre pressupõe uma ancestralidade, que vem de tempos imemoriais. Dessa forma, como o desenho da cultura humana não difere muito de povo para povo, não é de se surpreender que o começo de uma crença se baseie na oralidade, onde qualquer coisa pode ser considerada, menos a origem empírica do conhecimento. É a velha história do Deus das lacunas: estruturalmente um ser humano sempre busca uma explicação para um fenômeno qualquer, e, na falta desta, busca-se elementos do lado de fora, como um alienígena, um deus.

Ateísmo é opção?

Olha... talvez de tanto insistir alguma pessoa possa acabar se convencendo de que deus não existe, como faz para achar que coentro é bom, por exemplo. Na maioria dos casos, chamo isso de autoengano. Normalmente as pessoas não optam por serem ateias, assim como não detesto coentro porque acho feia a planta. Simplesmente acontece, seja porque já se nasce no meio descrente, seja porque se passa por um processo de desencantamento.

Por que o ateísmo é mais forte entre os jovens?

Não sei não, tenho minhas dúvidas. Mas penso em dois motivos. O primeiro é aquela sensação de independência que se tem ao ir contra a corrente. Eu me lembro bem disso quando comecei a fumar, aos doze anos de idade. Era aquela coisa que os mais velhos viviam dizendo para não fazer, então era uma bela maneira de se mostrar aos colegas. O problema é que depois do vício a brincadeira perde a graça. E o outro, que imagino mais real, é que a religião não traz mais boas respostas para as maiores aflições da rapaziada. Eu já disse por aí que um antibiótico funciona melhor que uma reza, e fica difícil de confrontar a realidade como ela é.

Por que ateus falam “graças a deus”?

Por habitualidade. Eu sempre gostei muito de andar descalço (estou descalço nesse exato momento). Isso provavelmente se deve à habitualidade da infância. Como não éramos ricos, nem ao menos remediados, nós, pequenos petizes do meu bairro, ficávamos descalços para economizar tênis quando íamos brincar na rua. Acontece que esse costume, deixando os pés desprotegidos, fazia as topadas nas pedras ser inevitável. Quando isso acontecia, eu não gritava “puuuuuuuuxa vida, que coisa mais chata”, e sim o famoso e sonoro PQP. Eu não estava testemunhando o parto de nenhuma moça de má fama, apenas soltando a explosão à que estava acostumado, sem a busca de um sentido intrínseco das palavras. Quando alguém fala graças a deus, minha nossa senhora, meu pai do céu ou coisa que o valha, faz exatamente a mesma coisa: o uso da função expressiva da linguagem, sem que a literalidade do que se diz seja fundamental para a sua compreensão.

Você é ateu?

Já discorri sobre o tema neste texto. Leia porque foi escrito com muito cuidado.

E é isso, mais uma vez. Espero que gostem e adicionem outras perguntas que vocês gostariam de fazer ou que escutam por aí, de maneira meio esparsa. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Certamente não é um livro que eu recomendaria para um religioso convicto, que só ficaria com raiva ao lê-lo. Também é desnecessário para aqueles que já são ateus: seria pregar para convertidos. Este livro pode ser um ponto de viragem justamente para quem se encontra na linha que divide ambas as situações. É meio agressivo, até um pouco mal-educado, mas que coloca muitos dedos na ferida. E é bem escrito.

DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

* Estou fugindo do sentido negativo desta palavra, de imposição; estou pensando aqui na função de exercer arbítrio, ou seja, de decidir.

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