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segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Sobre o tédio dos dias que parecem não terminar nunca

Quer Júpiter te haja concedido muitos invernos, quer seja o último o que agora quebra as tirrenas ondas contra as pedras, sejas sábia, diluas os vinhos e, por ser breve a vida, limites a longa esperança. Enquanto falamos, foge invejoso o tempo: colhe o dia, minimamente crédula no amanhã.

Horácio

Olá!

Eu não tinha como começar 2021 sem fazer um rescaldo do mais insólito de todos os anos. Não quero aqui discutir questões políticas e sociais da pandemia porque qualquer palavrinha a respeito já me deixa mais cansado que os corredores da São Silvestre que não houve. O maluco federal resolveu guerrear com o janota estadual com relação a uma vacina que todos querem a autoria, mas não a  responsabilidade,  e sobre remédios que só existem na vaidade de vossas excelências.  Sendo assim, quero encaminhar o tema para minhas percepções particulares e vivência pessoal, especialmente nas transformações que ocorreram em meu lar e em minha mente.

Quando tudo começou,  lá pelos meados de março,  já tratei de escrever um texto onde eu demonstrava até algum tanto de esperança na solidariedade humana. Paralelamente a isso, via o lado positivo de adquirir automaticamente mais tempo contemplativo e meditativo. Comecei essa tarefa com um aspecto muito prático: peguei quadro a quadro de minhas paredes para fazer uma limpeza criteriosa, com os devidos cuidados para não prejudicar os óleos nas telas e nem os vernizes das molduras, prestando atenção em cada detalhe das pinturas majoritariamente impressionistas, como a que mostrei neste post, e tentando aproveitar o máximo da iluminação dos cômodos, trocando suas posições até encontrar o posicionamento ideal, em um trabalho que me tomou longos… dois dias. Depois foi minha estante de livros, semelhantemente como faço de tempos em tempos (vejam um caso aqui), limpando peça a peça, tanto os livros quanto as prateleiras, que foram novamente forradas e rearranjadas, arrancando elogios da patroa. Também fui combater as sujidades da cristaleira, cheia de artigos delicados herdados de avós e tias, com um inconsueto charuto cubano a aromatizá-la. Por fim, dei um belo apoio no rearranjo do jardim, o que incluiu trocas de vasos, podas, adubação, alimentação das minhocas e etc. Algumas das plantas pareciam refletir um momento em um ponto futuro que viria a se concretizar em breve.


É preciso lembrar que no começo de tudo imaginávamos no máximo dois meses de reclusão, então esse trabalho empolgado realmente suprimia os buracos deixados nas horas vagas adicionais. Inscrevi-me em alguns cursos, peguei a cifra de algumas músicas e essas coisas. Enfim, uma preparação para iniciar minha vida eremítica.

Porém, na medida em que a coisa foi se arrastando e se perdendo no horizonte temporal, mais e mais as tarefas de fora da rotina foram se esgotando, e a tal nova normalidade se instaurando em casa. Sem perceber, fui esticando meu trabalho para bem depois do horário estipulado, esquecendo o primeiro mandamento do home office: “não estenderás teu horário para além daquilo que és contratado". Fui me fiscalizando um pouco melhor, e dado o fim do expediente parti automaticamente para outras plagas. Que tal achar um bom lugar para viajar, hein? Fiz isso várias vezes, achando redondezas para passear com a consorte. Em um determinado momento parei, dei-me conta da inutilidade do ato e perguntei a mim mesmo: até quando isso vai? Quando eu vou poder planejar de verdade minhas próximas férias? Não aguento mais acompanhar de perto o noticiário, perdi o foco nos livros e escrevi muito menos do que queria, quase que me limitando às audições de música, que redundaram em três boas escritas (aqui, aqui e aqui). Achava que ia arrebentar este blog com muitos textos, de modo a quebrar o recorde anual. Não, nem cheguei perto.

Quando começo a escrever este texto, estamos no dia 31/12/2020. Embora não faça tanto gosto com as comemorações de virada de ano, preferindo o Natal, o fato é que sempre é uma oportunidade de se reunir com o pessoal mais chegado, o que ficou restrito à esposa e os dois filhos, no más. Mesmo honrando a parte armênia da família com suas carnes e massas típicas, a mesa já está pronta com uma antecedência nunca dantes vista. Pudera: por mais que deixemos a mesa farta, não é preciso tanta coisa para forrar quatro estômagos. Até o almoço já está prontinho em suas travessas, só esperando o forno para produzir as reações químicas necessárias ao cozimento. Esperávamos o sogrão para o almoço, aquele de quem já andei fofocando aqui e aqui, mas na última hora ele resolveu não vir. Acometido de labirintite e glaucoma agudo, chegou-lhe uma depressão daquelas bravas, de deixar largado na cama. Está se tratando, é verdade, mas ainda tem muita variação no humor, e ainda é muito imprevisível seu comportamento. A reação da patroa e das crianças (de 28 e 26 anos) foi de melancolia, deixando o clima pesadão, silente, bem distante do que pretendemos em uma festividade. Lavei a louça e fui sentar na poltrona da sala, onde dei continuidade a este texto que está diante de seus olhos, meu heroico leitor. E mais nada flui além disso.

Bateu o tédio,  essa é a real. Seja pela prudência para evitar a doença, seja por uma consciência cívica que eu mesmo desconhecia, o fato é que levei de boa a quarentena infindável até agora. Todavia, já venho percebendo um aborrecimento cada vez mais recorrente em todo mundo ao meu redor, e isso também parte de mim.  Um encurtamento na paciência, uma espécie de descrença com relação a planos e assim por diante. Os últimos abusos naturalmente não foram suficientes para tornar rediviva a expectativa de se fazer projetos. É  isso, a vida está chata prá caralho. Pronto, falei.

Sempre lidei bem com o tédio. Sou capaz de me sentar na sala e ficar um bom tempo articulando meus sistemas filosóficos, sem a necessidade de nada mais do que refletir, bastando, para tanto, estar longe do dia de ir ao banco. Fazendo uma rápida reciclagem, já me é uma prática comum desde os tempos de eu-menino,  quando os castigos pelas peraltices me faziam brincar de nada comigo mesmo, na base das ações construídas em minha pequena cabecinha oca. Mas junto com a epidemia do corona parece que chegou a todos uma epidemia de tédio, como se o vírus consumisse não somente as energias do pulmão, mas do próprio sentido da vida.

Por que será que temos que ter um sentido? Por que não podemos pura e simplesmente viver, colhendo o dia como sugeriu Horácio em sua ode da epígrafe? Ou como tantas vezes recomendaram os estoicos em sua dor ou os epicureus em seu prazer simples?

De certa forma, é fácil de explicar. Somos dependentes daquilo que não temos. O tempo não passa lentamente como nossa intuição parece perceber, mas ele apenas reflete nosso vazio diante das coisas que não conseguimos atingir, e isso nos dá cor e sabor de derrota diária. Pensem bem: qual é o significado para nós de um dia que sucede o outro? Não há, embora seja exatamente isso a vida. Nossos dias de herói são muito menos que os de mané, e isso não deveria causar espécie. Quem sente isso, eu incluso, perdeu um bom tanto da consciência de si mesmo. É como se morrêssemos em termos de sentido, mas isso só ocorre na subjetividade, e não no campo físico. Comemos, bebemos, respiramos e vivemos, mas de uma forma como se não estivéssemos mais aqui.

Sim, o tédio é parente direto da depressão, e seu componente inevitável. E isso tem tudo a ver com o modus vivendi de nossa modernidade, que nos obriga não só a uma ocupação da subjetividade, mas que esta ocupação exista a cada instante, incessantemente. Não damos folga para o nosso próprio eu, que, acreditem, clama por pelo menos alguns momentos de estabilidade. Afinal de contas, não é isso que qualquer vida pede? Pela sua própria manutenção? Pelo seu próprio curso?

O grande problema atual com a necessidade de dar um sentido à vida, é que ninguém imagina isso ficando enclausurado dentro de casa. Chega um ponto em que a saída para o desencanto esbarra em nossa incapacidade de agir. Olhem só: a não ser que não tenhamos a menor consciência do que é cuidar do outro, entramos em uma travessa cujo término fica em uma encruzilhada: ou nos isolamos para manter a própria saúde, ou para manter a das pessoas que nos circundam. Se precisamos sair, optamos pelos locais mais isolados, utilizamos o mínimo estritamente necessário de compartilhamentos e nos recolhemos novamente assim que possível. Ou seja, a única medida sensata sempre vai incluir isolamento, onde vamos encontrar sempre as mesmas coisas, o que inclui nosso encontro com nosso próprio desalento. Para conseguir sobreviver, realizamos uma espécie de lobotomia da vontade, uma mola schopenhaueriana que movimenta o mundo, e que, por azar num momento tão conturbado, é nossa maior característica.

E como se faz numa hora dessas? Eu não sei, entediado interlocutor. Como estou confessando neste momento, eu mesmo já não consigo dar respostas às minhas próprias aporias. Para algumas coisas, é possível tomar decisões sensatas. Eu, por exemplo, conheço muita gente que se esfalfa para conseguir uma casa de praia ou uma chacrinha no interior. Há muito tempo eu adotei por compromisso próprio retirar esse tipo de coisa de qualquer lista de prioridades. Sabe-se que uma aquisição dessas não vem sem custos fixos, e a empolgação suplanta o desconforto por um ano ou dois. Daí para frente, é só dor de cabeça. Prefiro mil vezes pagar meu hotelzinho humilde, como já relatei tantas e tantas vezes neste espaço, e não carregar o transtorno para além de minha própria casa. Mas esse é um ponto de vista meu, e só o coloquei aqui a guisa de exemplo, pobre até.

Talvez a resposta, até meio piegas, venha do próprio curso das coisas, e elas costumam acontecer à nossa frente. Prosseguindo com a saga familiar, ao fim da tarde do dia primeiro, com uma chuva que não parava mais, maometanamente fomos à montanha. Achamos por bem dar um apoio ao sogrão, ao invés de continuarmos com a cara de esquife que cada um levava ao seu canto. Nunca fomos assim, e sempre tentamos nos ajudar mutuamente, então era hora de ao menos mostrar a cara para o velho, mesmo que fosse para sairmos de lá mais desanimados ainda. Quando nós chegamos lá, ele estava surpreendentemente bem melhor, falante como de costume. Comeu o bombom de bandeja e a carne assada até tomar a famosa bronca da sogra, e acabamos indo embora bem mais tarde do que imaginávamos inicialmente, relembrando histórias, caçando fotos no celular e falando de nossas perspectivas. O resultado é que voltamos já em outro clima, muito mais fraterno, e, ainda antes de dormir, fomos comer o manjar branco que estava preparado para a véspera, e que acabou esquecido diante do véu de tristeza difusa…

É… o ser humano ainda é capaz de mover suas reações pela empatia que tem pelo seu próximo, e isso permanece como a esperança que precisamos ter para viver. Tudo é tempo: vivemos no tempo e somos, nós mesmos, uma parte inseparável do tempo. Com ele vem tudo, a cura das feridas e a saída para o desencanto, neste momento representado por um ser invisível que nos colocou em outro tipo de dimensão. Mas este ser acaba, enquanto o tempo permanece. Um ótimo 2021 para todos. Nem vai ser tão difícil que ele seja melhor.

Recomendação de leitura:

Vai para o livro da epígrafe, o grande poema romano da importância do momento em nossas vidas.

Horácio. Odes. Lisboa: Cotovia, 2018.

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