Olá!
Morar
em prédio tem suas benesses, mas também tem suas complicações. Volta e meia vem
uma galera que é ruidosa na minha casa, jovens que são. Eu, descendente de
italianos e espanhóis, também não sou o que propriamente se pode chamar de
silencioso. E o resultado é a reclamação dos vizinhos mais rabugentos. Bom,
como minhas contas estão (ainda) em dia e não é de madrugada, deixo que digam,
que pensem, que falem.
Para
chegar ao tema que quero discutir hoje, preciso pedir um pouquinho de paciência
para explicar a dinâmica da ocupação dos lugares disponíveis na cozinha da
extinta madrinha. O pessoal não chegava todo mundo de uma só vez. Quem chegava
primeiro, ocupava as cadeiras mais ao fundo, deixando os lugares próximos à
porta disponíveis. Vou fazer um rápido croqui:
Desta forma, temos a distribuição de 23 pessoas. Naturalmente, em tal amostra não é possível obter uniformidade de interesses, e estes variavam dentro das próprias famílias – os homens mais velhos gostavam de futebol, as mulheres de assuntos familiares, os jovens de tecnologia, as crianças de criancices. Vou melhorar o diagrama, distribuindo as pessoas de acordo com suas preferências temáticas:
Impressionante!
Apesar da emboleira acústica, todos conseguiam se compreender, cada um em sua
rede particular. Por mais de uma vez, cheguei a pensar no fenômeno, mas nunca
me aprofundei na coisa, até começar a estudar a teoria da Gestalt. Já comecei a
lidar com o assunto no meu recente texto sobre a pareidolia, mas antes
de tratar diretamente sobre ele, quero desenvolver o tema da atenção acústica,
conhecido pelo simpático apelido de “efeito coquetel” (cocktail party effect).
Bem,
é preciso, para compreender a seletividade auditiva, estabelecer alguns
critérios. Em primeiro lugar, é preciso que os idiomas falados na tertúlia
sejam compreensíveis por quem os ouve. Depois, é preciso que tenham um certo
nivelamento no volume, porque é evidente que não se consegue conversar
existindo uma britadeira na sala. Postas estas condições, prossigamos.
O
efeito coquetel é uma bela amostra de como funcionam os processos atencionais
do ser humano, e de como esses processos são importantes nos mecanismos de
cognição. O nome do efeito é “coquetel” para fazer referência à possibilidade
de conversar em um lugar com muitos sons paralelos, inclusive música e ruídos
não vocálicos, como os copos que brindam, talheres que agridem os acepipes, cadeiras
que se arrastam; e também o exemplo dos meus encontros familiares é bastante
didático, mas temos esse efeito sendo usado em lugar muito mais importante: a
sala de aula. O que explica a diferença de aprendizado entre os alunos? Por que
determinado aluno consegue, no miolo de uma sala hiperativa, produzir
resultados positivos?
Porque
ele consegue fazer bom uso de seus mecanismos atencionais, e abstrair o ruído
ao redor é uma dessas armas. Não há aqui heroísmo ou condenação – tem gente que
consegue desligar o botãozinho e se concentrar em uma leitura em qualquer metrô
Sé às seis da tarde (eu), e tem gente que precisa de um quarto fechado, um
ambiente tranquilo, um chá de camomila adoçado com stévia. Mais sofisticado
ainda é o modelo que se supõe que o cérebro use para resolver o problema do som
entre sons.
A
maneira como o cérebro providencia a diferenciação dos sons é surpreendente. Sabemos
que toda a decodificação dos sinais sonoros é feita por ele, mas, ao contrário
do que se pensava, o cérebro não recebe uma massa sonora informe e sintoniza
apenas o que lhe interessa. Cientistas suíços tem pesquisado uma outra maneira
de como se realiza esse processo, com conclusões parciais muito interessantes.
Segundo essas pesquisas, a cóclea, que é a estrutura mais importante do ouvido,
realiza a maior parte do serviço. É uma estrutura muito sensível, em forma
espiral, que tem a característica arquitetural de captar e processar sons,
amplificando os mais fracos e distinguindo uns dos outros. Quando estamos
conversando em um ambiente tumultuado, o cérebro vasculha seus registros e envia
para a cóclea os padrões sonoros familiares e esta devolve ao cérebro os
impulsos sonoros já filtrados. Se a padronagem sonora não existe nos arquivos
cerebrais, não há problema: o cérebro é extremamente rápido em gravar um novo
padrão sonoro provisório. Bastam algumas palavras proferidas por um professor,
por exemplo, para que o ouvido consiga dados suficientes para manter a audição,
e a cada minuto que se passa ouvindo, melhor absorvido esse padrão fica. A
descoberta foi obtida a partir do desenvolvimento de uma equação e de um
algoritmo instalados em uma cóclea artificial, um aparelho eletrônico que busca
simular, com máxima exatidão, o comportamento da cóclea humana, ou seja,
através das reverberações do som no interior da concha e da captação dos mesmos
pelas enervações auditivas.
Por
que a coisa funciona assim? Fica até chato, mas tenho que citar mais uma vez a
seleção natural para justificar o surgimento de uma determinada característica
humana. Imagine dois homens sentados à sombra de uma árvore, no meio de uma
selva, refletindo sobre o filé de gnu extremamente mal passado que acabaram de comer.
Um deles tem percepção auditiva que lhe permite a distinção sonora, o outro
não. Em um estado de letargia pós-prandial, alguns de seus sentidos afrouxam a
corda, enquanto outros permanecem com a sentinela armada. Dentre os sons
padronizados típicos de uma tarde modorrenta na floresta, como o som do vento,
o pio das aves, o ruído das cigarras, surge um barulho leve, mas claramente
perceptível: passos. O ouvido do primeiro homem distingue o som específico
emaranhado no meio do ruído geral e dispara o sinal de alerta para o cérebro e
os demais sentidos, pontificando que há algo de podre no meio da Dinamarca.
Tanta coisa pode ser – alguém que se aproxima para condividir árvore e leseira,
um simples passante, um bicho curioso dando bobeira ou uma fera babando para
lhes fazer de fast-food. Qual dos homens teria melhor condição de se defender?
A vantagem biológica de distinguir um som entre outros é mais do que óbvia.
Mas
o processo de atenção é ainda mais sofisticado. No exemplo anterior, a
distinção sonora se dá instintivamente – é a reação imediata do organismo a uma
ameaça potencial e iminente – mas nem sempre o fenômeno ocorre
involuntariamente. Eu consigo dirigir minha atenção intencionalmente, e, com
isso, restringir a minha percepção a detalhes. Vamos primeiro para um exemplo
visual. Imagine-se diante do seguinte quadro, de autoria do meu amigo e vizinho
Zé Carlos Camargo:
... e veremos o carroceiro, que arranja suas frutas de forma harmônica. Se apurarmos ainda mais o detalhe, começaremos a observar alguns aspectos técnicos, como a trama do tecido onde a pintura foi realizada e o manejo em estilo impressionista, com contornos pouco marcados:
Com
o processo auditivo, dá-se a mesma coisa. Pegue uma música qualquer, que você
goste, com várias vozes e instrumentos. Para elaborar este exemplo, estou
ouvindo Look at Yourself, do Uriah
Heep. Ouça uma primeira vez, procure distinguir os sons mais aparentes,
normalmente os agudos, como riffs e solos de guitarra; ouça novamente e perceba
como os teclados tecem a cobertura da música, fazendo com que não haja vazios.
Ouça mais uma vez e volte seu foco para a cozinha. Perceba como o baixo conjuga
ritmo e melodia – é como se ele emprestasse sons determinados para a bateria.
E, por falar nela, perceba a matemática por trás do seu compasso. Ouça como são
alternadas ciclicamente as pancadas em bumbo, caixa e chimbal, e como o
baterista quebra esse ciclo em suas viradas. Agora vamos escutar a parte vocal;
perceba o estilo de voz do vocalista – se é contínua, se há trema, se é
extensa, se é intimista, se é gutural. Perceba também os refrãos: eles não são
cantados em uníssono – há cinco linhas diferentes. Vamos ouvir a música uma
última vez, objetivando o todo harmônico. Não vamos mais afinar o ouvido para
escutar algo específico, mas apenas a massa sonora.
Se
você for atento, verá que conseguirá cumprir com eficiência todas as etapas,
menos a última. Em um momento ou outro, indefectivelmente haverá fechamento de
foco em algum dos sons que compõem a música. Você vai prestar atenção nas
estrepolias dos solos, no ribombar das baquetadas, na linha de sustentação ou
coisa semelhante. A realidade é grande demais para os nossos sentidos.
Até
mesmo por isso, existe uma técnica de representação cênica que é bastante
curiosa. Em cenas onde uma fala deve se destacar das demais, ou seja, quando há
um murmúrio de fundo, os murmurantes não falam nada específico. Utilizam vogais
fechadas e evitam consoantes fricativas e explosivas, pronunciando
continuamente e assincronamente uma palavra inexistente, como “rumerrum”. Por
que não utilizar palavras reais? Justamente por conta do efeito coquetel! Pode
ser que alguém consiga focar as palavras dos circunstantes, deixando de lado o
tema central. Falando algo “nada com nada”, este risco é mitigado.
A
realidade é grande demais para os nossos sentidos, acabei de falar. Por isso,
somos incapazes de dar resposta a vários estímulos concomitantes. E daí nasce a
necessidade de sermos seletivos. Donald Broadbent, psicólogo britânico, fez um
extenso trabalho experimental que o fez chegar à Teoria do Filtro. Em
suas ideias, Broadbent destacava que as impressões eram tomadas pela
consciência de acordo com sua relevância. O indivíduo tem uma primeira
impressão do todo, como preconiza a teoria da Gestalt, e logo em seguida começa
a se ater aos detalhes, em uma hierarquia de importância para a compreensão da
totalidade, o que faz com que muitos aspectos sejam considerados irrelevantes.
Também é estabelecida uma sequência da atenção, já que é muito difícil ao ser
humano processar dois estímulos simultaneamente. Quando isso ocorre, a psique
seleciona o foco mais significativo e coloca o segundo em estado de espera. Às
vezes, essa espera se prolonga a ponto de não ser consumado o processo de
cognição.
Veja
como tudo isso conflui para o processo de cognição, e como tem influência, por
exemplo, nos aspectos educacionais. É preciso levar em consideração
curiosidades que parecem tão singelas, mas que podem significar um autêntico
pulo do gato no momento de educar, como um simples tilintar de duas taças se
chocando em brinde.
Santé!
Santé!
Recomendações:
Aqui,
o principal livro de Broadbent, para os fortes que manjam de inglês:
BROADBENT, Donald. Perception and Communication. Londres: Pergamon, 1958.
Já
que mencionei o disco do Uriah Heep, vou referenciá-lo, porque vale muito a
pena.
URIAH HEEP. Look at Yourself. Londres: Bronze Records, 1971. 41:14 min. 33 1/3
rotações.
E
aconselho também uma visita à praça da República. Pegue um domingão de sol, vá
passear pela feira de arte e procure pelo Zé Carlos Camargo. Aprecie sua arte e
de seus colegas. Vale a pena.
Nenhum comentário:
Postar um comentário