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sexta-feira, 19 de junho de 2015

Lições de cinema para fazer professores chorar (de raiva)

Olá!

(Advertência: vou tocar em tema polêmico, mas não quero perder amigos nem causar transtornos por causa disso. Aliás, peço para ser bem compreendido, já que não tenho absolutamente nada contra a religião de ninguém, a não ser pelo fato de que confrontos nessa área costumam gerar mais lesões do que em encontros de torcidas. Não estou aqui atacando nenhuma religião, de nenhuma vertente, mas apenas um filme que, no meu entender, é dúbio; estou apenas tomando a defesa da atividade filosófica e didática).

Sabe aquele filme que tem um monte de gente assistindo, que você tem certeza de que não vai gostar, mas algo nele te chama a atenção e que por isso mesmo você acaba pagando o risco? Pois é, acabou de acontecer comigo. Assisti ao filme “Deus não está morto”.

O fato motivador é simples. Vi muita gente comentando e elogiando a obra em questão, e me chamou especialmente a atenção o seu nome, claramente em contraposição à clássica frase nietzschiana, contida em um dos seus mais famosos aforismos, e do qual já dei meus pitacos neste post. Fiquei muito curioso em ver como a questão era tratada, ainda que desconfiado, e o fiz, disponível que estava no site de filmes que assino. E, infelizmente, cheguei à conclusão de que o filme é ruim, muito ruim. Direi por que.

Vou fazer muito spoiler. Aguentem a mão ou fujam agora. Para começar, devo contar alguns detalhes. Eu tentei assisti-lo uma primeira vez, mas interrompi minha audiência em dez minutos, logo após o conflito inicial, quando o professor ateu lança um desafio ao aluno cristão. A coisa foi assim: o mestre de Filosofia expõe um monte de nomes de proeminências científicas e filosóficas em um quadro, e diz que o ponto em comum neles é o fato de serem ateus. Estabelece peremptoriamente que a religião é uma sombra que ofusca a razão, coloca-a no campo das bobagens e, depois, manda que todos os alunos escrevam em uma folha de papel a frase “Deus está morto”, no melhor estilo primeira série do primeiro grau, mas um dos alunos alega não poder fazê-lo, por ser cristão. O aluno é devidamente ridicularizado e desafiado a convencer a todos na classe do contrário. Não sei dizer por qual motivo o aluno não foi à direção reclamar de um método claramente discriminatório. Já ali era possível perceber a qualidade do que estava por vir. Fechei meu notebook e fui passar roupa, que era melhor. 

Evidentemente, é preciso um mote para construir qualquer ficção, e nem sempre é fácil fazê-lo. Mas a maneira como ele foi desenvolvido no caso é indigno para professores, risível para filósofos e vergonhoso para cineastas. E isso ficou me incomodando por dias. Resolvi tomar um Engov e retomar o filme, agora deitado na cama, porque queria ver como Nietzsche era inserido na história.

E não foi!!! Simplesmente Nietzsche não foi debatido. A briga toda do filme não é dizer se Deus está vivo ou morto, mas sim se Deus existe, o que só é possível desconhecendo a obra do bigodudo alemão. Portanto, vamos lá, classe...

Prestem atenção e leiam a frase abaixo:


Ora, um livro ateu, não? A frase por si só é bastante clara: Não há Deus, ou seja, Deus não existe (como consta de outras traduções). Não é o tipo de frase que se encontraria em uma obra que serve para proclamar uma divindade. Será?



Salmo... Pelo que eu me lembre, é um capítulo deste livro aqui:


É isso. A Bíblia diz que não há Deus, que Deus não existe. O livro que busca comprovar Deus relata sua inexistência. Isso é o suficiente para demonstrar que uma frase extraída aleatoriamente do seu contexto muda completamente de sentido. Fazer esse tipo de coisa só pode ter dois motivos: burrice ou desonestidade. Vamos ver o trecho completo:


Ah, agora ficou tudo claro! Pois é.

É mais ou menos o que acontece com o título do filme em questão. Ele aproveita uma frase bastante forte do livro Gaia Ciência, de Nietzsche, que é um grande debatedor da questão religiosa, e a usa apenas para intitulá-lo, ou seja, faz o mesmo exercício que fiz acima. O resultado é o desencaixe do contexto, e a impressão de que o filósofo em foco é um ateu malvadão e autoritário, e que o professor nada mais seria do que a sua alegoria, só faltando o bigodão (não gostaria de ver Nietzsche tomando sopa creme).

Duas coisas a colocar: Nietzsche de fato era ateu e conhecia muito bem o cristianismo, já que seu pai e seu avô foram pastores de relevo. E ele discutiu menos a questão da existência das divindades e mais os reflexos da religião no mundo. Nesse sentido, descartar o seu aforismo 125 é perder a oportunidade de debater os porquês que levaram Nietzsche a escrevê-lo desta forma, e, principalmente, em que medida ele pode ter razão ou não. Ele poderia levar os próprios religiosos a observar se as suas propostas encontram eco na realidade vivida, ou seja, se cumprem seus objetivos.

Vamos reproduzir o aforismo em debate:

“Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus?!’ – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou- os com seu olhar. ‘Para onde foi Deus?’, gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘em baixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele ainda mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodreceram! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e o mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa deste ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!’ Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. ‘Eu venho cedo demais’, disse então, ‘não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e, no entanto, eles o cometeram!’ – conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Requiem Aeternam Deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: ‘O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus’?

Pois bem. Percebam que o louco se apresenta na feira diante dos homens dos quais se diz que não mais acreditavam em Deus, o que o coloca no campo da chacota. Mas o incisivo discurso põe estes homens na perplexidade. Então é bem possível notar que não é pelas suas palavras que os homens do mercado não creem em Deus, mas por suas atitudes. Seu modus vivendi é discrepante com relação ao que pregam os sermões das religiões vigentes, e a própria sociedade de então já revelava um desprezo com a necessidade de um deus para pavimentar sua base. Estamos nos fins do século XIX, o apogeu da fé no progresso. Já não têm mais os deuses o mesmo papel que possuíam em tempos pretéritos.

E agora? O que será dos homens, sozinhos e pelados embaixo das pontes, desprovidos de apoio e fundamentos? Quais serão suas novas divindades, suas novas transcendências? O deus Ciência, o deus Mercado, o deus História, o deus Acaso... Serão estes os novos avatares dos novos tempos? Mas terá condições o homem de perceber que seu discurso é um e sua ação é outra? Percebe o homem que ele está matando Deus ao se afastar de sua necessidade de enxergar vínculos entre a ação divina e o transcurso da natureza? O homem tem olhos para perceber uma nova moral que se instaura e modifica suas convicções? Por quanto tempo durará esta transição? Para Nietzsche, o caminho em que o homem se desvincula de suas divindades e os leva a outras (a si mesmos, talvez) já existe, mas conduz a algo incomensuravelmente distante (‘a mais longínqua constelação’), algo dificilmente perceptível.

Essa é a reflexão que o ‘Deus está morto’ de Nietzsche deve levar, e não a uma declaração de amor ao ateísmo. No sentido de que o homem vive em descompasso com as convicções que professa, o alemão doido causa choque porque faz com que o homem reflita sobre si, em especial no quanto somos cínicos ao fazermos os mais complicados malabarismos para forçar um encaixe entre nossas rezas e nossas ações. Convivemos com a pobreza e a desgraça, e achamos isso normal; talvez, no máximo, lamentável. Mas, mesmo assim, corriqueiro – como se não tivéssemos culpa de nada. O louco do aforismo diz que matamos Deus, e não paramos para pensar o quanto isso é verdadeiro ou não. Se esta não é uma reflexão que trespassa a Filosofia e alcança a reflexão religiosa, não sei mais o que é.

O filme perde a oportunidade de colocar essas discussões em pauta e desperdiça o próprio título. Não é de surpreender, portanto, que cause calafrios na minha porção filosófica, e desânimo na minha parte professoral. O objetivo da peça parece ser apenas o de rebater teses científicas, tentando aplicar esta mesma Ciência para refutar a si própria. Sempre que a Religião tenta se valer de métodos científicos, a coisa desanda. Ao tentar recorrer à prova, à indução, à falseabilidade, cai-se na armadilha.

Isso porque as teses que são apresentadas como provas da existência de Deus são mais frágeis. Prova é coisa da Ciência, assim como fé é coisa da Religião. São campos distintos. Se o filme se limitasse a militar por esse campo, faria muito melhor.

Vou dar um exemplo: A frase é “Se Deus não existe, tudo é permitido”, utilizada no livro “Irmãos Karamazov”, de Fiodor Dostoievski, é colocada como definitiva pelo cineasta para comprovar os princípios religiosos como fonte de toda a ética. Só que não é. Não é só a Religião que formata os princípios morais do mundo. Essa impressão é passada porque, em geral, as religiões compilam e sistematizam todo um sistema ético, ao contrário de outros modos de construir disposições morais. Temos métodos abertos que são também mecanismos de embutir ética em uma sociedade, como é o caso do contrato social, em que os homens cedem liberdade para obterem condições de sobrevivência. É deste contrato que nascem as leis, as fronteiras, as formas de fazer girar a engrenagem da sociedade. Se não fosse assim, a lei não seria válida para todos, independentemente de sua fé. E, em tempo, a frase foi mal reproduzida, utilizando uma versão advinda do senso comum. Seus termos corretos são “... não existe a imortalidade da alma, portanto não existe tampouco virtude. Então, tudo é permitido”. Lembrando que se trata de uma frase literária, e não científica.

Vou dar mais um: a teoria do Big Bang, que representa uma explicação para a origem do universo – esta origem seria o momento em que uma concentração extraordinária de energia começa a se expandir no tempo e espaço – é apresentada como sendo formulada por um teísta. Vou ter que dar uma rápida espanada neste termo e nos demais que rotulam a posição de uma pessoa em relação à existência de uma transcendência.

Teístas são pessoas que acreditam em um Deus pessoal, personalizado, entidade maior de um sistema religioso. Este é o caso dos cristãos, dos judeus, dos islâmicos.

Deístas acreditam em uma divindade difusa, impessoal, uma espécie de energia vital ou relógio que dita o ritmo do mundo, que não deixa regras transmitidas, mas que podem ser percebidos na natureza e na harmonia universal. Muitos filósofos do iluminismo, como Voltaire e Locke, eram deístas.

Agnósticos suspendem seu juízo e preferem não definir a existência de um Deus. São céticos em perceber uma ação divina por trás do funcionamento natural, mas também não a negam. Acham apenas impossível que se conheça a transcendência.

Já os ateus acreditam que Deus não existe, o que não deixa de ser uma fé.

Bom. O nosso aflito aluno diz que a teoria do Big Bang foi desenvolvida por um teísta, repito. É verdade. O teísta em questão era o belga Georges Lemaître, um padre. Padre. Porque isso não foi dito, eu não sei. Talvez fosse chato dizer em um filme não católico que a melhor tese científica apoiada pela fé tenha sido elaborada por um padre. Pode ser isso.

Mas seria muito simples dizer que o filme pratica proselitismo, e que é feito POR e PARA convertidos. Ele faz muito pior: é uma ode a vários preconceitos. Por isso mesmo, ele pode ser tolo, mas não é inocente.

O mais óbvio é a menina muçulmana que se converte e é espancada pelo pai, que ainda a expulsa de casa. Nestes tempos de Estado Islâmico, que faz a Al Qaeda de Bin Laden parecer um grupo de meninos combatendo com bodoques, retratar um muçulmano comum como uma pessoa violenta no seio de seu lar me parece útil apenas para uma coisa: demonstrar o quanto esse estereótipo está arraigado na cultura ocidental. Não entendo porque algo tão desnecessário foi inserido no filme. Outras questões poderiam ser levantadas. Como o filme mostraria, por exemplo, uma menina WASP que se achegasse à família tradicional estadunidense e dissesse que está grávida de um negro? Como trataria um rapaz que se revelasse gay? Teríamos ainda mais estereótipos? Teríamos demonstrações inequívocas de misericórdia? Teríamos outros pais espancando filhos e expulsando-os de casa? Ou essas coisas não acontecem?

Tem também a jornalista ecochata, que se indispõe contra todo e qualquer sistema que julga pernicioso contra a natureza, em especial na defesa dos animais, até que se vê vítima de uma doença incurável. Aliás, achei estranhíssima a colocação de um defensor da ecologia no lado dos maus. Deve ser porque se trata de uma pauta predominantemente de esquerda, mas isso não é obrigatório. Não se discute se suas reivindicações são justas ou não, o quanto são importantes para um planeta que se encontra doente. Não se faz nem mesmo uma menção do quanto é cristã a atitude de preservação do meio em que se vive. Outra vez, temos uma trama paralela e desconectada do enredo.

E há a questão dos ateus. Os ateus são maus, apresentados de maneira maniqueísta. Há o empresário, frio, que trata com desprezo sua velha mãe com mal de Alzheimer. Há o pai do oriental, revoltado pela conversão do filho. Já o professor, além da intransigência com os alunos, trata sua namorada cristã como casca e tudo, e a humilha com constância. Seu remédio é a morte, o que ocorre juntamente com sua conversão.

Mais uma coisinha: como vocês sabem, tenho um projetinho neste espaço que é o pequeno guia das grandes falácias. Todas as vezes que faço a descrição de uma delas, preocupo-me em adicionar exemplos e obras que ajudem na compreensão dos erros lógicos. Isso às vezes é custoso, dá muito trabalho para achar algo que se acomode ao contexto. Mas só porque eu não conhecia este filme. Aqui tem de tudo: referência circular, declive escorregadio, afirmação do consequente, red herring, ataque pessoal, inversão do ônus da prova, deuses das lacunas, falsa dicotomia e toda sorte de apelos – à crença, à autoridade (uns vinte), à popularidade... Um grande compêndio.

Resumo: o filme é simplório demais em alguns aspectos, pernicioso em outros. Seu ponto central, que deveria ser os debates entre o professor e o aluno desafiado, vale-se de uma imensa coleção de frases soltas e de teses não explicadas. Levanta a velha arquitetura maniqueísta de se colocar um lado para o bem, e o outro para o mal, sem intermediações. E no final o professor não era um ateu de fato, era um cristão revoltado com Deus, o que ajuda o filme a falhar ainda mais.

Enfim, apenas para terminar. Se um dia algum de vocês me vir atropelado em uma destas encruzilhadas da vida, não tentem praticar proselitismo em uma hora dessas. Se não houver nada a fazer para me ajudar, ofereça-me uma calderetta bem gelada da melhor cerveja que estiver ao seu alcance. Nunca é tarde para celebrar a vida.

Santé!

Recomendações:

Já tinha recomendado Gaia Ciência em outra postagem, por isso vou recomendar a autobiografia de Nietzsche, carregadíssima de ironia. Vai ajudar a entender a gênese do seu pensamento.

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. São Paulo: Escala, 2009.

E serei honesto: o filme tema deste texto não é ruim no aspecto técnico. Aliás, este é o único ponto tolerável, porque é feito com equipamentos de primeira linha e técnicos de som, fotografia e figurino competentes. Além disso, para que meu post seja compreendido, é preciso que o filme seja assistido. Por isso, segue a recomendação.

CRONK, Harold. Deus não está morto. Filme. Scottsdale: Pure Flix, 2014. Colorido. 113 min.

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