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terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Navegações de cabotagem – o Orquidário de Atibaia e as discussões sobre sexo e gênero

Olá!

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Não, este texto não representa uma nova fuga para Atibaia, como já havia contado aqui, mas a sua extensão, pelo fato já relatado de que precisava ficar por lá o dia inteiro. Na parte da tarde, quis pensar no que era possível fazer com a fama desta calma e montanhosa urbe, sabidamente uma das principais produtoras de morangos e flores da Ilha de Vera Cruz. Quem tem boca vai a Roma, mas das bocas de agora saem coronavírus, então achei que poderia tentar a sorte seguindo as placas de trânsito, que davam a indicação “orquidário”, al di là da rodovia Fernão Dias. “Não deverá estar cheio”, pensei eu preventivamente, já que tínhamos até mesmo uma leve garoa. Lá chegando, vimos que se tratava de um sítio particular, e não um parque municipal ou coisa semelhante, como deixava transparecer a sinalização pública. Bem, não é problema. Vamos lá para apreciar morangos e flores.


O sítio pertence à família Takebayashi, evidentemente de origem japonesa, que foi um dos principais povos a colonizar esta região serrana, e se dedicar ao cultivo de plantas ornamentais, com destaque para as orquídeas, sua atividade inicial.


O trabalho lá é sério, com uma bióloga trabalhando no desenvolvimento das espécies de orquídeas e um engenheiro na construção da estrutura que guarnece as plantações de morango, que possui uma metodologia de produção toda própria.



O sistema utilizado na plantação dos morangos é o semi-hidropônico, onde os morangueiros ficam embutidos em baias de isopor e é feito circular um líquido enriquecido entre eles, com uma quantidade de terra muito menor do que seria necessário em uma cultura convencional.



Os morangos são plantados em estufas, o que ajuda a controlar o ataque de pragas e a minimizar os efeitos das condições meteorológicas, já que se trata de uma planta delicada, com flores muito sensíveis.



É do miolo desta flor que brotará a futura fruta. A espécie cultivada aqui é chamada de San Andreas, um dos mais populares, ao lado dos tipos Albion (que costuma ter um fundo fendido) e Diamante (mais claro).



Quem visita as estufas tem o direito de colher e pagar. Por um valor de R$ 15,00, você recebe uma tesourinha escolar e pode escolher diretamente dos pés os morangos que quer levar para casa, numa quantidade correspondente a uma clássica caixinha de sanduíche. Como a estrutura permite a dispensa de agrotóxicos e adubos orgânicos, você pode comer alguns morangos direto na planta.



Poderia ser esperado que, sendo um processo orgânico, os frutos fossem menores do que o encontrado nas feiras, o que não é fato. Saborosos.



Depois da colheita, fomos até a parte das orquídeas, que fica mais para baixo na elevação do terreno. As flores são cultivadas em estufas de rede clássicas. Estes paramentos são necessários para simular o ambiente nativo das espécies, tipicamente oriundas de florestas tropicais.



Mesmo para os exemplares que se encontram a venda, é necessário estabelecer algum tipo de condicionamento, tendo em vista a sua delicadeza. Por esta razão, o galpão de vendas é, ele mesmo, uma estufa.



Um dos mecanismos necessários é produzir umidade adequada, o que não precisa ser obtido unicamente com aparelhagem destoante da reprodução de um ambiente natural. Uma das maneiras é a utilização de fontes e lagoas, embora a que está logo abaixo não estivesse em uso.



Existe um sem número de variedades de orquídeas espalhadas pelo mundo, com uso predominantemente ornamental, e que tem em comum a presença de tubérculos que lembram testículos, origem de seu nome (do grego orchis). Em termos de formatos de flores, há muita variação entre si, dependendo de origem geográfica e de eventuais hibridizações.



Normalmente as orquídeas vivem presas às cascas das árvores, que lhe apoiam e dão abrigo. Entretanto, não se trata de uma parasita, porque não rouba seiva de sua hospedeira, tão-somente aproveitando o material orgânico em decomposição que cai da copada das árvores. Os arranjos feitos em tábuas remetem a essa interatividade entre espécies.




As orquídeas são, de longe, as plantas que maior engajamento produz em admiradores, provavelmente pelo simbolismo que há na precariedade de sua beleza.

Para além das orquídeas, outros espécimes são cultivados no orquidário, como este tipo de bromélia, tão típica das serras de nosso pedaço.



Em outros tempos, o que vou falar agora seria uma espécie de confissão, mas hoje posso falar com todo o conforto: gosto de flores, como gosto de plantas em geral. Em um espaço mínimo que é a varanda do meu apartamento, tenho pelo menos quinze espécies diferentes, que incluem rosas, primaveras e, ora, orquídeas... além de outras plantas que têm sua época de floração, como os tais morangos, uma laranjeira, ora pro nobis, um multicolorido caeté, as minúsculas flores do manjericão e as inesperadas flores de cebolinha, entre outras. Essa é uma característica minha, que me traria problemas se minha cabeça não tivesse amadurecido adequadamente. Sou heterossexual, casado, pai de três filhos, dois ainda com vida, e nunca tive atração por ninguém do mesmo sexo. Isso tudo não tem o condão de dizer coisas como “não sou homofóbico porque tenho amigos gays”, mas de mostrar como essa coisa de azul é de menino, rosa é de menina é uma mera construção social.

Temos tido longas discussões sobre a definição de gêneros em nossa sociedade atual, com um duplo viés: o fortalecimento das novas identidades e a reação de quem não quer que as coisas fujam de seus quadrados. Já é possível resumir logo de cara – temos uma guerra de poder. Discussões de gênero têm sido uma das pautas mais bombásticas dos últimos tempos, regadas de desonestidades intelectuais no estilo “ideologia de gênero”, ou factuais, como as já célebres mamadeiras de piroca. Mas a questão de fundo nem é tão difícil de entender assim. Vamos tratar brevemente sobre o tema.

Tanto homens quanto mulheres possuem um forte elemento de identidade: o seu sexo. Afinal de contas, estruturalmente os homens possuem semelhanças entre si, o mesmo valendo para as mulheres, com uma pequena quantidade de exceções. Portanto, em uma perspectiva comum, homens são mais altos e com mais massa muscular que as mulheres, cada um deles possuem órgãos sexuais próprios, que igualmente produzem internamente hormônios próprios. Dessa forma, é possível designar o sexo do indivíduo, dicotomicamente como ocorrem nos cadastros de pessoal pelo mundo afora, quando temos as opções “Masculino” e “Feminino”. Entretanto, embora os parâmetros biológicos sejam suficientes para dar conta do que é cada um desses sexos, mesmo eles não são suficientes para explicar o que cada um dos indivíduos tem de diferente entre si. Afinal de contas, há seres humanos altos e baixos, magros e gordos, cabeludos e carecas, de canelas grossas e finas e assim sucessivamente. Mas a coisa vai bem mais longe.

Se compararmos homens que vivem em nosso ocidente judaico-cristão, aborígines australianos, nômades berberes, mursis africanos ou inuits do Alasca, verão que todos eles têm hábitos diferentes, o que inclui as afirmações de sua masculinidade. Alguns utilizam adornos em profusão, outros os abominam; uns entendem que a força é um distintivo da masculinidade, enquanto outros veem que é a astúcia na liderança. O que eles têm em comum é o sexo, e todos, mais enfeitados ou mais austeros, são tidos como os machos em seu meio social. Se há essa variação, não podemos entender que é a biologia que constitui o que é um homem nos diferentes povos. Falta alguma coisa e é aí que vai entrar a categoria a que chamamos de gênero.

O gênero está na esfera mais subjetiva da maneira como os humanos enxergam aos outros e a si mesmos. É a afirmação peremptória de que não nascemos prontos e acabados, com todos nossos costumes e jeito de ser já predeterminados. Aqui, a representação do que significa cada um dos gêneros fica recoberta por inúmeras capas de cultura que são construídas por cada povo. É evidente: em cada processo social que um ser humano vive, há uma maneira diferente de se amoldar subjetividades. Portanto, o modo como um indivíduo do sexo masculino se vê no Gabão é absolutamente distinto do que outro homem na ilha de Okinawa, apenas para dar um exemplo, inclusive com a possibilidade de haver conflitos entre ambos. Tudo isso se aplica não só a indivíduos, mas ao modo com o qual a sociedade como um todo enxerga cada um de seus membros.

O gênero, mais complexo que o sexo, e seguramente complementar a essa noção, não se obtém a partir a observação das partes pudendas. Está muito mais ligado à simetria com o comportamento que é esperado de um determinado sexo. No meu exemplo pessoal, tenho uma característica que transpõe a linha, que é gostar de plantas e flores. Em nossa cultura, a normatividade indica que essa é uma característica feminina, o que pode fazer com que outras pessoas estranhem meu gosto e meu hábito. Homens só lidam com esses produtos por obrigação, como fazem quando esse é seu trabalho.

Isso se aplicou inúmeras vezes na vida. Eu lembro bem de que minha mãe já dizia que lavar louça não fazia “cair o pinto”, e que na década de 80, quando os rapazes começaram a usar brincos (em uma orelha específica, que fique claro), muito se falava que se tratava coisa de mariquinhas. Estamos percebendo que já aqui a coisa vai para além do rótulo. E, por isso mesmo, todas as vezes em que as atribuições se entrecruzam, temos uma reação gerada, que vai desde um desconforto até chegar à violência.

O grande problema está em quem podemos conceder o poder de dizer quem pertence a qual gênero em especial. Alguém do sexo feminino pode não se enquadrar por vontade própria naquilo que a sociedade estabelece para tanto, e pode querer ela mesma se determinar como pertencente ao gênero masculino, sem que se faça necessária nenhuma cirurgia de transformação. Acontece que a parte majoritária da sociedade é cruel com esse tipo de individualidade, a quem considera desviante, e a dificuldade está instaurada. A sociedade é imperativa nesse sentido, e é lenta na aceitação de mudanças nos seus crivos, porque tem mais dificuldades em desvincular o que é natural do que é comportamental. Para essa camada social, o máximo para quem se desenquadra do seu gênero, fortemente associado pelo senso comum ao seu sexo, é manter suas preferências no âmbito privado, e por isso tantas pautas, como casamento, adoção e herança homoafetiva são temas espinhosos. Sexo está ligado à natureza, e gênero à cultura, o que são coisas diferentes. Mas sempre é preciso lembrar que casamento, adoção e herança são pontos culturais, e não naturais. Esse é o impasse que vivemos nos dias de hoje.

A discussão ainda vai muito longe, mas é preciso pensar, primordialmente, que não é uma orquídea que vai determinar a masculinidade de ninguém. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Os conceitos de gênero não são nem tão recentes, nem tão antigos. Surgiram em meados da década de 1970, e desde então vem sendo incrementado por diferentes antropólogos. Entretanto, foi com A norte-americana Gayle Rubin que o termo ganhou uma espécie de formato bem descrito. Recomendo a leitura abaixo:

RUBIN, Gayle. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu, 2017.

O orquidário é uma bela pedida para quem gosta de um passeio simples e próximo ao meio natural. Não estou indicando por nenhum benefício financeiro, apenas por ser um lugar bacana. Fica aqui sua localização:

Orquidário Takebayashi 
Estrada Hisaichi Takebayashi, 1675
Jardim Colonial
Atibaia/SP

Aproximadamente 70 Km a partir do centro de São Paulo

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