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quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Sobre feriados sem grande sentido e sobre o que legitima uma celebração

Olá!

Bem recentemente, fiz aniversário de estadia no centro de São Paulo. Mais especificamente, faz quatro anos que me mudei (já!), no dia 15 de novembro de 2008, feriado da Proclamação da República, que naquela ocasião caiu em um sábado. Portanto, foi uma data marcante, fácil de lembrar. Curiosamente, não pelo feriado em si, mas pelos fatos que passo a relatar.

Combinei com o dono do caminhão que fez minha mudança que o aguardaria na porta do Poupatempo Sé, o que fiz logo às sete da manhã. Fiquei lá esperando por várias horas, já que o ilustre carreteiro foi me procurar na saída do precitado órgão público, na Rangel Pestana, enquanto eu dava milho aos pombos na rua do Carmo (ora, a entrada é lá). Pois muito bem. Enquanto eu aguardava em um misto de aflição e desolamento a chegada do meu transporte, dezenas e dezenas de contribuintes acorriam pressurosos ao Poupatempo para obter suas ferramentas da burocracia, sem se ater ao detalhe que a ingrata repartição encontrava-se de portões fechados, dia sem expediente que era. Os seus rostos denunciavam a estupefação, ao que eu, em uma prestação de serviço de valor inestimável e preço gratuito, informava dever-se ao feriado. Ao espanto, a seqüência de decepção e, em alguns casos, de indignação. Pois é, o significado do feriado é nulo, pude filosofar. Por que será que isso acontece?


Bom, começando pelo começo. O grosso de nossos feriados é cívico ou religioso. No primeiro caso, temos comemorações de fatos que foram relevantes para a vida de nosso país. O problema que temos aqui é que essas datas marcam acontecimentos derivados de decisões da elite e/ou conspirações palacianas, com pouca ou nenhuma participação popular. De fato, se pensarmos na Independência ou na Proclamação da República, perceberemos que sua origem não se dá na demanda de vastas camadas da população, ou em sangrentas batalhas (graças a Deus), mas de transformações que se deram no topo da pirâmide social. A Independência representa a troca de um rei por outro, o povo prosseguiu alijado de efetiva participação nos rumos do país. O mesmo se dá com a virada para a República, onde o voto era coisa para os qualificados, ou seja, para quem já detinha o poder.

A situação tornou-se particularmente mais expressiva nos períodos de governo militar, que encamparam as comemorações como objetos de justificação de seu poder. As celebrações cívicas eram cheias de gente porque a máquina governamental as tornavam assim coercitivamente. As escolas eram obrigadas a participar de desfiles e fanfarras, as repartições públicas eram obrigadas a se adornar de verde e amarelo. Quem não colocava fitinhas amarradas nos carros ou pregadas no peito era visto como subversivo. Deixaram Tiradentes barbudo para ficar pagando de Jesus Cristo, a concupiscente rede globo passava o manjadíssimo filme da independência, com o Tarcísio Meira, em toda sessão da tarde que caísse no 7 de setembro, entre outras bravatas ditas patrióticas. Quando a democracia plena chegou, as pessoas se deram conta do quanto eram objeto de manipulação, e do quanto o amor à pátria era utilizado para validar mortes e desaparecimentos de dissidentes, e passaram a apreciar os feriados apenas por sua significação prática: são dias sem trabalho e sem escola.

É certo, algumas atividades ainda subsistem. O desfile militar da Independência (em São Paulo, é realizado no Sambódromo) ainda atrai avós saudosos e netos curiosos, cada vez em menor quantidade. As centrais sindicais conseguem congregar muita gente no dia do Trabalho, mais por conta dos sorteios de carros e apartamentos e pelos shows sertanejos e pagodejos. Tirem-se estes componentes e vejam-se quantas pessoas vem ouvir comícios e discutir reivindicações. Também é certo que prezamos nossos símbolos nacionais e reagimos quando os mesmos são vilipendiados, como explicitei aqui e aqui, só que isso tem sido feito de maneira muito pontual e difusa. Isso prova, como falei neste e neste texto, o quanto o brasileiro anda despolitizado, em especial os jovens, e o quanto isso influi em nosso sentimento patriótico.

Do outro lado, temos os feriados religiosos. Estão intimamente ligados à doutrina católica, que possui um espaço celebrativo bastante rico, independentemente da fé que professemos. São cerimônias de cunho coletivo: se o padre vai à igreja e não há ninguém presente, fecha seu missal, recolhe suas alfaias e vai embora. Como o Catolicismo foi a religião oficial do Brasil até o final do século passado, parece-me natural que suas datas litúrgicas influenciassem o calendário civil, o que gerou uma série de feriados. Ok. Acontece que, desde quando esses feriados foram instituídos, muitas mudanças se deram no perfil do brasileiro. Segundo o mais recente censo do IBGE, as transformações no perfil religioso nacional mostram três tendências bastante importantes. A primeira é a diminuição do percentual de pessoas que se declaram católicas. Em 1970, este índice era de cerca de 90% da população; hoje, o mesmo caiu para algo em torno de 65%. A segunda é o crescimento de membros de denominações evangélicas. Em 1970, falávamos em meros 5%, hoje esse número saltou para algo como 22%, o que representa em uma quase quintuplicação. Já de cara percebemos que uma fatia bastante representativa não tem os feriados de Corpus Christi, da Padroeira, da Sexta-feira Santa e outros como relevantes para suas celebrações. Aqui, temos o mesmo fenômeno da perda de interesse no feriado cívico, ainda mais se levarmos em conta o caráter individual que o evangélico atribui à sua salvação. Afinal, diferentemente de católicos e espíritas, os evangélicos em geral creem que o acesso ao céu ou o ingresso no inferno dependem da vontade de Deus, e não das ações do cidadão. Mas tem mais.

Com esses números podemos concluir que o Brasil permanece como um país de grande religiosidade, mas que vai paulatinamente migrando do Catolicismo para o Protestantismo de cunho pentecostal, certo? Não, errado.

Há ainda um terceiro número a ser considerado: em 1970, tínhamos parcos 0,5% de pessoas que se declaravam sem filiação religiosa. No último censo, este número explodiu para 8%, o que significa um crescimento de 20 vezes neste número. O Brasil, assim como a Europa, é um país que ruma para a secularização.

E isso torna a questão ainda mais espantosa, porque nos traz à mente as peripécias intelectuais de um dos filósofos mais geniais e independentes de todos os tempos, o amado e odiado Friedrich Nietzsche. Esse moço, por exemplo, decretou a morte de Deus.

A Filosofia de Nietzsche é uma cruzada contra o poder dogmático da Religião. Segundo seu pensamento, os homens jamais abandonam sua condição de escravos ao se deixar levar pelos ditames imutáveis das diferentes crenças. Em seu livro Assim falou Zaratustra, por exemplo, nosso tedesco informa que a humanidade obrigatoriamente viverá três fases, representadas pela metáfora do camelo, do leão e da criança. Na fase do camelo, o homem carrega em suas costas todo o peso de suas convicções, que são oneradas pelo direcionamento acrítico de uma moralidade aprisionadora, voltada à justificação do mais fraco. O forte ganha estatuto de ruim, de mau, opondo ao que seria uma característica natural, observável nas relações em que não há interferência da moral de rebanho, como na seleção natural. Na tentativa de se libertar desta condição, o homem se desvencilha de seus mitos e se torna fera solitária: o leão. É o momento em que o homem se encontra no vazio, desacompanhado de suas convicções anteriores, que lhe serviam de lenitivo. Ele está isolado, precisa se fazer por si mesmo, o que é angustiante, mas libertador. A fase final seria a da criança, onde o homem busca aquilo que está além de si mesmo, e seu grande trunfo é a coragem para a renovação e para a criatividade. Já em seu livro A Gaia Ciência, temos a famosa e angustiante assertiva: “Deus está morto, e fomos nós que o matamos”. O homem já não depende de Deus, pode guiar seus próprios caminhos, mas isso deriva de um ato doloroso: a morte de seu Deus, seu guia, seu condutor. Poderíamos dizer que estamos entrando na fase do leão. O homem está só e não sabe muito bem para onde ir, tropeça em suas ações, já que não há mais um dedo divino que lhe aponte um caminho. Precisará se convencer de sua força para dar um passo à frente.

Pois bem. Não quero aqui concordar com Nietzsche no quesito de inutilidade ou de alienação religiosa. É preciso lembrar que ele, em suas próprias palavras, filosofava na base das marteladas, e que também ele nunca se colocou em oposição direta a Jesus, mas ao Cristianismo; mas parece indubitável que ele profetizou com precisão o processo de desvinculação do humano ao sagrado, haja vista o processo inegável de laicização dos Estados e da decadência da religião, ao menos no que se refere ao mundo ocidental. Talvez o maior desvio da doutrina nietzschiana seja o fato de que o homem não está abandonando Deus, mas trocando-o por outros deuses, como o prazer e o poder vinculados à posse e à imagem.

Só que há ainda outro desvio: não somos patriotas nem religiosos, mas não queremos abandonar nossos feriados, correto? Bom, há que se dizer que, em certos casos, há uma migração de sentido na comemoração. Vejam: o Natal e a Páscoa não se prendem mais ao sentido cristão; hoje, o Natal é dos presentes e a Páscoa é dos ovos, mas ainda há uma celebração. Já quanto ao Corpus Christi, os evangélicos o aproveitam para realizar a Marcha para Jesus, o que mantém ainda um significado religioso. E há também as comemorações locais que ainda são muito importantes, já que a secularização é bem menos visível nas pequenas cidades. As festas do Divino são grandiosas no interior de Minas Gerais e do Nordeste, as festas juninas são enormes no Nordeste, há históricas procissões de tapetes em Santana do Parnaíba e São Luiz do Paraitinga. Bom, já estou até fugindo um pouco do contexto dos feriados, mas a lógica prevalece: estas são celebrações que desapareceram das grandes cidades.

Só para concluir: não celebramos nada, portanto? Sim, há duas celebrações de caráter nacional que estabelecem o que podemos chamar de catarse: o Carnaval de todo ano (nem tanto aqui em São Paulo) e a quadrienal Copa do Mundo. Pegando esta última, podemos observar a mobilização completa da modalidade. Meses de preparativo, a pintura das ruas, a solidariedade nos gastos para os enfeites, a adoção de símbolos, a adoração dos jogadores, o cuidado na preparação de comidas e bebidas nos dias dos jogos, a apreensão e o derramamento no momento máximo do gol. Quanto ao Carnaval, tem caráter profano e foi combatidíssimo pela Igreja, mas é algo que brotou espontaneamente do meio do povo, por isso tem tanta força. Uma vez me perguntaram o que eu achava do Carnaval, e respondi que achei os desfiles lindos, e que torceria pela Vai-vai e pela Salgueiro como sempre. Quase me botaram na cruz. Há um bom tanto de preconceito nisso tudo, com toda certeza.

Vejam, ao final, que não se tratam de datas cívicas ou religiosas, apesar de manterem características de ambas: o envolvimento comunitário, o apuro nas preparações, a ritualização do momento celebrativo. Mas são comemorações que partem verdadeiramente da vontade popular, por isso vingam.

Eis então: o brasileiro sabe ritualizar, mas o faz muito pouco, porque não se sente verdadeiro participante de qualquer momento celebrativo, seja porque não acredita no civismo de quem escreveu sua história, seja porque já não dão mais a mesma importância às suas transcendências.

Em tempo: não mencionei o Reveillon, porque acho essa celebração muito esquisita. Saibam porque neste post.

Recomendações:

Nietzsche é um filósofo dos mais geniais de todos os tempos. Não se prendeu a nenhuma escola e não se importou com os reflexos do que dizia. Provocou a tudo e a todos, começando por seus próprios colegas filósofos. Isso não significa que ele esteja correto em tudo, mas sim que é desafiador em tudo. As obras que mencionei no texto são as que seguem:

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Mencionei também um filme que versa sobre a Independência do Brasil. Ele contém desvios históricos flagrantes, retratando Dom Pedro I como um homem que era quase um santo, ou um dos maiores heróis da humanidade. Mas é muito interessante para observar como os mecanismos de ideologia usavam os eventos históricos para produzir um patriotismo artificial e a seu próprio serviço:

COIMBRA, Carlos. Independência ou morte. Filme. Brasil, 1972. 108 min.

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