Olá!
Poucos dias na vida de uma criança costumam ser de
contemplação, mas, por outro lado, a abertura inocente para a contação de
histórias e as reservas bem disponíveis para a aquisição de conhecimento dão
uma compensação à atenção pouco focada. Estou falando tudo isso porque não faz
nada de tempo que eu me encontrava balançando na rede em uma pousadinha no
interior de São Paulo. Era tarde da noite, e toda a redondeza estava escura,
incluindo o quarto e a varanda onde eu me encontrava hospedado, enquanto a cara
consorte tomava seu banho pré-nupcial. A costumeiramente longa incursão da
patroa em suas aventuras hídricas já me proporcionou extensos
momentos de devaneio, e este foi mais um. Não a culpo. Cada um tem seu modo
de lavar a alma. O dela é este, o meu é aproveitar o vai-e-vem da rede para
olhar ao céu, e ver aquela estranha faixa leitosa que o corta de fora a fora.
Era comum de vê-la na infância, quase como se fosse um bibelô que mal notamos
na estante, e impossível hoje em dia. Da capital da garoa, vê-se meia dúzia de
estrelas, que às vezes nem mesmo as são, mas algum planeta vagando pela sua
posição zodiacal, ou um maroto satélite orbitando por sobre minha desprotegida
cabeçorra. Aqui, não. Sem a poluição luminosa a que tanto me habituei, faço uma
rápida viagem ao passado, quando esta paisagem passava praticamente
desapercebida, mas agora com o pensamento mais concentrado no que vejo.
Sem medo de criar verrugas na ponta do dedo, talvez para distingui-lo
das hordas de vagalumes, indico para mim mesmo aquele traçado sinuoso, que os
antigos gregos diziam ser o esguicho de leite da deusa Hera, ao descobrir,
horrorizada, que o bebê a quem amamentava era fruto de uma pulada de cerca de
seu marido Zeus. O rebento é muito conhecido: Hércules, o protótipo do homem
divinizado. Com o dedo idiotamente em pé, fico pensando até onde seguiria minha
criatividade se eu dispusesse dos mesmíssimos recursos daquela gente helênica –
nenhum. Como seriam as histórias que eu contaria a meus filhos, quando me
perguntassem, em uma noite especialmente aberta, que diabos era aquele rastro?
Eu não sei, na verdade... Sempre procurei me apoiar em conhecimento prévio, mas
hoje ele está à minha disposição, então perdi todo o meu senso lírico. Creio
que eu não seria um dos grandes contadores de causos da antiguidade.
É que o ceticismo é uma praga. Começa com uma desconfiança
quase inocente, que vai se enevoando cada vez mais. Quando você vê, aquele
relato em que você confiava tanto vai se tornando cada dia mais e mais contraditório,
principalmente quando posto diante de uma realidade que se autoexplica muito
melhor, até você se convencer que a verdade não reside em um livro. A
Mitologia, como
eu já falei alhures, diz muito mais sobre a cultura e o modo de pensar do
povo que a cria do que sobre uma verdade revelada a um vate especialmente
escolhido. Este é provavelmente o processo que ocorreu na alvorada da
Filosofia, quando a verdade pronta da Mitologia incomodava pela sua imprecisão
poética.
Esses primeiros filósofos olhavam para as próprias coisas, e
tentavam tirar delas suas causas e efeitos, suas razões de ser, suas origens e
seus destinos. Com poucas réguas para medir, era da lógica que vinham suas
tentativas de explicação, as famosas especulações. E o que eles viam e buscavam
compreender era, primordialmente, aquele imenso universo que os cercavam, seja
na proximidade que podiam tocar, perguntando a si mesmo qual era o elemento
basilar de tudo, seja na incalculável distância dos mais diáfanos pontos de
luz perdidos na escuridão. Estas últimas, sem dúvida, eram o maior desafio que
existia para o pensamento. Para além da interpretação religiosa, os primeiros
filósofos enxergavam uma ordem e uma estrutura na tela do firmamento, e
tentavam explicações sem que fosse necessária a introdução de justificativas ad hoc, como faziam as diferentes
mitologias. A Filosofia nasceu como Física, e, especialmente, como Cosmologia.
Tá, mas afinal de contas o que é essa tal de Cosmologia? A
palavra grega kósmos significa alguma coisa como organização ou
ordenamento, e isso já faz entrever que o conceito de universo passa já no seu
nascedouro uma noção de que as coisas não estão onde estão por acaso ou pela
vontade aleatória de uma divindade. De certa forma, é a parte mais ontológica
da Astronomia, parte da Física que a abarca. Isto porque a principal pergunta da
Cosmologia é: o que é o universo?
Basicamente, isso significa responder qual sua linha de
vida, do que é feito e como ele se arranja no espaço. Só que o nosso espectro
visível é terrivelmente diminuto quando precisamos enxergar além do alcance,
porque tudo é muito grande, tudo é muito pequeno, tudo é muito longínquo, tudo
é muito antigo para os padrões da nossa pobre mente
descontínua. E resta-nos as obscuras sendas da elucubração para tatear
algumas hipóteses.
Para que se tenha ideia de como a gênese de ideias é profícua
no campo da Cosmologia, basta que se tente responder qual é a origem do
universo. Melhor ainda: há uma origem ou tudo sempre existiu? Aqui temos o
célebre argumento cosmológico, uma
elegante aplicação da Lógica para tentar encontrar alguma solução. A tese geral
é o princípio da causalidade, que diz que sempre um fenômeno é decorrência de
outro. Não há gol sem chute, não há pênalti sem infração. Dessa forma, podemos
regredir no tempo buscando a causa de um determinado efeito. O X da questão é
se essa regressão tem fim. Se sim, podemos dizer que chegamos à origem do
universo. O Primeiro
Motor Imóvel de Aristóteles e a Teoria
do Big Bang são dois exemplos de aplicação do argumento cosmológico com um
início para o cosmos. Há quem veja, como São
Tomás de Aquino, uma prova da existência de Deus neste argumento, mas não
fiquem bravos se eu disser que esta assertiva é falaciosa, mais especificamente
um argumentum
ad ignorantiam, já que a causa primeira não precisa ser uma divindade.
Aqui, entra a fé do argumentador, e não uma sequência lógica necessariamente
válida. Além disso, mesmo as hipóteses de universo com início esbarram na
regressão: o que havia antes do Big Bang? O que dá origem ao Primeiro Motor?
Que divindade criou Deus? Notem como as perguntas referentes à Cosmologia sempre
estão impregnadas de Filosofia, para muito antes de chegar ao campo
observacional, e por isso mesmo toda Ciência traz consigo uma carga metafilosófica,
como já discorri neste
texto.
Outro questionamento que parte da Cosmologia é estrutural. O
universo possui um limite ou não? Se pensarmos em um Big Bang, é possível
pensar que sim, já que a expansão acelerada, que impropriamente chamamos de
explosão, faz com que tenhamos a tendência em supor um avanço contínuo, da
mesma forma que a marola produzida pela pedra jogada no lago vai se expandindo
até chegar à borda. O que ainda fica no campo especulativo é se a “beirada do
lago” universal existe: há uma margem para até onde os limites do universo
poderão avançar? E o que haveria para além do “paredão”? Os físicos tem
teorizado que não há um espaço para onde o universo se expande – o próprio
espaço se expande com o universo. Mas, de qualquer forma, parece que há um ponto
tal em que tudo possa chegar.
Ou a solução é ainda outra? A resposta pode estar na gravidade.
Quando observamos o modo com o qual o universo é estruturado, podemos perceber
que há uma diferença substancial entre as nossas vizinhanças e as distâncias maiores.
Quando vemos os céus a olho nu, como eu fazia naquela noite balouçante, não
temos a dimensão exata do que temos acima de nós. São pontos brilhantes e ça
tout. No entanto, a utilização de aparelhagem cada vez mais avançada
permite experimentar sutilezas imperceptíveis a partir da prosaica rede de
renda de bilro. Um dos exemplos é que seu tamanho e brilho tem menos a ver com
sua distância do que é possível supor. Muitas vezes, um ponto específico no céu
não é uma estrela solitária, mas uma galáxia inteira. Mais do que isso: é
possível observar que, a uma distância relativamente curta*, as diferentes
galáxias tendem a se aproximar, formando grupos locais que possuem grandes
vazios entre eles. À medida que obtemos dados de objetos situados a distâncias maiores,
somente detectáveis por instrumentos muito sofisticados, percebemos que os
mesmos estão distribuídos de modo muito mais homogêneo, sem os grandes claros notados
anteriormente. Isso pode fazer entrever que a ação gravitacional do momento em
que estas informações chegaram a nós ainda não havia operado da mesma maneira
que ao nosso redor. E aqui temos a bifurcação. Pode ser que a gravidade, a
distâncias verdadeiramente grandes, não consiga mais exercer sua ação, e o
universo continuará a se expandir, sabe-se lá até onde. No entanto, se a
gravidade possuir força suficiente, em algum momento a contínua expansão
cessará, e a atração fará com que os conglomerados de corpos celestes comecem
um caminho de retorno, aproximando-se sempre e sempre mais, de forma a
multiplicar sua interação gravitacional e sua atratividade, até que tudo o que
exista se colida em um único ponto, produzindo o que temos chamado de Big
Crunch, o retorno ao átomo primordial de tudo.
Ultimamente, o novo santo graal da Cosmologia é a energia
escura, ainda no campo da hipótese, e que serviria para se contrapor ao
encolhimento previsto na teoria do Big Crunch. Como eu disse há pouco, caso
esta estiver correta, tudo voltará a se condensar em um único ponto, em um
movimento que se tornará cada vez mais acelerado, dado o aumento de energia
gravitacional ao redor de um núcleo cada vez mais denso. Se isso não ocorrer e
o universo continuar se expandindo, haverá um momento tal que não haverá mais energia
para o prosseguimento da movimentação, e então o universo se tornará estático.
A tese da energia escura lida com a hipótese de que o universo não esteja se
expandido inercialmente, pela força gerada pela expansão do Big Bang, mas que esta
expansão seja acelerada. É uma alternativa puramente no âmbito hipotético,
porque não há elementos suficientes que possam determinar qual modelo
expansivo/retrativo está correto, mas o que poderia estar por trás da sua
confirmação? Seria necessária a existência de uma energia para justificar a
repulsão dos objetos em oposição à força da gravidade, uma energia cuja
natureza é desconhecida, e chamada de “escura” pelo motivo de não ser
detectável por nada além da capacidade racional dos cientistas. Um dia, será
possível determinar com exatidão um método para detectá-la, e, neste momento,
ela sairá do âmbito filosófico para se tornar Cosmologia com “C” maiúsculo.
Uma outra grande pergunta da Cosmologia nos faz pensar em
qual fornalha foram geradas todas as coisas que existem. Sabemos que os objetos
são feitos de átomos, que são compostos por ínfimas partículas. Tudo é tão
pequenino que nos faz intuir que, se agruparmos os átomos dispersos por aqui e
por ali teremos volumes significativamente menores. Entretanto, a teoria do
Modelo Cosmológico Padrão (nada mais do que Big Bang falado em tucanês) nos
diz que o universo original anterior à expansão se concentrava em área exígua,
menor que a cabeça de um alfinete. Isso dá nó na cabeça. De onde veio tudo o
que existe?
Uma hipótese boa é que compactar tudo em um minúsculo ponto
só é possível porque a própria matéria é uma forma de energia, como
descrito na Teoria das Cordas. Ainda assim, essa é uma circunstância muito
difícil de intuir. É certo que nossa dificuldade com este tipo de dúvida resida
nas limitações dos nossos sentidos. De fato, dependemos deles para trazer informações
para serem processadas em nossas admiráveis, porém restritas cabeças. Dessa forma,
primeiramente lidamos com aquilo que vemos, e necessitamos de observações
indiretas para sacarmos aquilo que não vemos. Notem como falamos em estrelas,
planetas, cometas, asteroides... coisas visíveis. Sempre procuramos por elas
para justificar nossas crenças, e tudo o que lhes escapa é candidato a cair nas
armadilhas das lacunas. Todavia, o que você diria se eu lhe contasse que,
descontados todos os órgãos e ossos do seu corpo, ainda restaria peso em uma
balança, muito peso, aliás? Que há uma alma e que ela tem peso? Ou que há alguma
outra coisa em sua composição que não conseguimos ver, mas que os instrumentos
detectam? É exatamente isso que os astrônomos têm obtido desde meados do século
XX, especialmente com os trabalhos do astrônomo Fritz Zwicky. Tomando o peso
total de uma galáxia e descontando o peso individual de cada um dos seus
componentes ainda resta muito peso que, aparentemente, está ligado a nada, o
que é absurdo. Por não ser detectável diretamente, essa estranha diferença
ganhou o nome de matéria escura, um dos principais objetos de busca cosmológica
desde sua descoberta, e que vem ganhando mais métodos de aferição, ainda
indiretos, mas cada vez mais precisos. Isso tudo nos faz supor que há muito
mais no cosmos do que conseguimos detectar.
Em suma, a Cosmologia é hoje a parte da Ciência
provavelmente mais prenhe de Filosofia que podemos imaginar, como já a é desde
o seu próprio nascimento, como se um mega tatatatatataravô meu estivesse
deitado em algo semelhante a uma rede, riscando o céu com o dedo, enquanto aguardava
vovó se banhar no rio mais próximo. Bons ventos a todos.
Recomendação de série:
É um clássico da divulgação científica que foi renovado em época
razoavelmente recente. Trata-se da série Cosmos, a obra-prima de Carl Sagan, que
me maravilhava na virada da infância para a juventude, e que foi remoçada brilhantemente
através da voz de seu sucessor, Neil deGrasse Tyson. Tem na Netflix. Para curtir
a beça.
BRAGA, Bannon; DRUYAN, Ann; POPE, Bill. Cosmos: Uma Odisséia do
Espaço-tempo. Filme. Série em 13 episódios. Cor. 44 min por episódio. EUA:
Cosmos Studios, 2014. Disponível em: https://www.netflix.com/title/80004448
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