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segunda-feira, 12 de abril de 2021

Pequeno guia das grandes falácias – 59º tomo: a pergunta complexa (plurium interrogationum)

Olá!

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Pincelada rápida sobre a história político-eleitoral que vivenciei nesses meus cinquenta e poucos anos de vida. Na década de setenta, vivíamos as épocas de ditatura militar. Há quem diga e defenda que o regime era democrático, porque havia eleições. Bom, em Cuba também têm, nem por isso a mesma patota os coloca no campo democrático. Eleições na década de setenta só existiam para cargos legislativos, e ainda assim com limitadíssima propaganda partidária. Era época do bipartidarismo, com a ARENA governista e o antigo MDB representando o autêntico saco de gatos que era a oposição, abrigando desde gente moderadíssima como Tancredo Neves, até quase-extremistas como Miguel Arraes. A lei Falcão limitava a campanha a fotos dos candidatos com uma rápida narração de fundo durante o horário obrigatório, no más.

A partir da década de 80, ares de democracia começaram a soprar em Ilha de Vera Cruz, e as eleições também passaram a tratar de cargos majoritários (menos presidente da república), começando por eleições para governadores. A lei de campanha foi afrouxada e surgiu um autêntico fenômeno eleitoral: os debates.

Em tese, os debates serviriam para suprir, com vantagens, os insossos textos lidos por um locutor, com pouca diferença entre os diversos candidatos. E mesmo que a propaganda política tenha sido flexibilizada, não dá para achar que um candidato vá morrer de sinceridade em um programa feito para exaltar seus atributos. Podendo expor suas ideias e contrapor as dos adversários, os candidatos poderiam deixar mais claras suas intenções, e tinha-se a impressão de que haveria um grande enriquecimento das propostas e melhoria no conhecimento, o que ajudaria e muito nas escolhas do eleitorado.

Acontece que, muito mais do que a troca de ideias e discussão de propostas, os debates se transformaram em combates retóricos, repletos de acusações recheadas de armadilhas linguísticas. Como programa de televisão, funcionou muito bem, porque garantia belas rixas, trocas de ofensas e, por consequências, grandes audiências. Por isso, tais eventos são concorridos até hoje. Só que aquele velho objetivo de tornar claras posições e discutir políticas foi por água abaixo, mais se baseando em perguntas embaraçosas do que na apresentação de propostas.

Talvez eu idealize demais. Lembro-me de ter assistido um debate no programa Complicações, da Univesp, sobre os problemas gerados pela bolha imobiliária de 2008. Sim, eu tenho dessas coisas que o universo considera maçante. Os debatedores eram dois professores de Economia, cada qual de uma corrente diferente, diametralmente opostas. Um era liberal de carteirinha, o outro era marxista de vestir vermelho. A um primeiro olhar, os ingredientes para a rinha de galos estavam todos postos. Entretanto, para minha agradável surpresa, a discussão ficou no campo estrito das ideias, sem ninguém espumando pela boca, nem fazendo caretas e esgares, apenas discordando e concordando, apontando onde cada argumento fazia lógica ou onde necessitava de correção, na opinião do garboso debatedor. O resultado final foi conhecimento, que me trouxe interesse por um tema que eu considerava árido e arenoso, e eu sempre tive a ingênua expectativa de que um dia desses o confronto político fosse nesses termos.

Óbvio que é um sonho de Poliana, a fictícia menina que procurava um lado positivo em tudo (bom tema para um post futuro). Principalmente porque não se trata de não se saber fazer o debate por falta de conhecimento, mas pela intenção deliberada de se ganhar eleitores pela desqualificação dos adversários. E isso é conseguido por discursos gritados para emular firmeza, de promessas infactíveis e, principalmente, de falácias, muitas e muitas falácias.

É possível cometer falácias das mais diversas maneiras e com os mais sofisticados argumentos, pelos mais variados motivos. A classe política é muito dada a apelos, para trazer o emocional das pessoas à baila, ou fazer amplo uso de generalizações e espantalhos, ao sabor da vantagem pretendida, além de envenenar o poço da concorrência toda, mas existe uma delas que é muito específica dos debates, conhecida como plurium interrogationum, ou, mais simplesmente, pergunta complexa.


A pergunta complexa consiste no encadeamento disfarçado de perguntas sequenciadas em uma única interrogação, de modo a não permitir que o interlocutor responda objetivamente com termos simples, sob pena de fazê-lo de modo incompleto.

A pergunta complexa é sempre feita com malícia, porque embute em si um pressuposto. Por exemplo: na pergunta “você ainda se droga todas as noites?” há três perguntas misturadas, amarradas pelo pressuposto de que o cidadão para quem se dirige a pergunta se droga, o que é um ponto muito delicado e discutido em nossas sociedades ocidentais, e que já carrega consigo uma espécie de pré-julgamento. As perguntas são:

a)      Você se droga?

b)      (Se sim) Você se droga há tempos?

c)       (Se sim) Você se droga todas as noites?

Vejam que a resposta à pergunta complexa nunca pode ser reduzida a um simples “sim” ou “não”. Respondendo afirmativamente, concordamos de plano com uma asserção dúbia, que somente pode ser justificada através da descrição dos pressupostos. Respondendo negativamente, uma série de questões fica em aberto. A qualquer uma das três em que se deva atribuir uma negação, fará com que toda a resposta seja dada negativamente, o que acaba fazendo com que nada seja respondido. Pode ser que o cidadão nunca tenha dado um tapa na pantera, pode ser que já o tenha feito uma ou poucas vezes, pode ser que se drogue todos os dias, mas nunca à noite. Qualquer resposta negativa geral fará com que se falte com a verdade, e há, portanto, a exigência de uma resposta complexa para a pergunta complexa.

Um mero advérbio de tempo dá todo um colorido maldoso na pergunta. Uma palavra que modifica um verbo de modo a lhe aplicar uma circunstância, o que pode mudar todo o seu sentido: essa é a delicadeza desse tênue recurso sofismático.

É possível ainda que a pergunta complexa seja ainda mais sutil. Se a pergunta for "quanto lucro suas empresas auferiram com a construção da ponte tal?" não teremos o encadeamento de perguntas, mas de pressuposições. Primeiro, porque ela deixa subentender que uma determinada obra foi realizada para atender um interesse específico do adversário, e segundo que tal obra trouxe não só a satisfação de tal interesse, mas também ganhos. Sendo verdade ou não, a resposta nunca é simples.

O prejuízo causado pela plurium interrogationum em um debate é que eles são organizados para impedir a bagunça generalizada que ocorria nos primeiros eventos, quando um candidato atropelava a fala dos outros e não cumpriam regras básicas de tempo e momento. Com um tempo limitado, perguntas complexas dificultavam a concisão da resposta e deixavam sempre brechas que poderiam ser exploradas à exaustão. Todos os debates passaram a ser pautados na resposta esperada, e não no conteúdo.

Essa lição não foi aprendida simplesmente pela necessidade de se engodar os ouvidos tupiniquins. Vem de longe, muito mais longe, quando a implantação da democracia direta grega, datada de cerca de 500 aC, exigiu dos pensadores um esforço maior para analisar o homem em si mesmo em detrimento à physis que o cercava, dando uma guinada da Cosmologia para a Ética. Os primeiros sofistas, de quem já falei neste texto, tinham pensamentos profundos sobre a existência humana, e inauguraram a visão antropocêntrica que perdurou por toda a época clássica, adicionada dos mais diferentes helenistas. Mas, como sói acontecer com novidades, junto deles vieram as críticas de quem não se conformava com o conhecimento colocado como instrumento de venda, e não um patrimônio livre, acessível por todos os homens. Não era gente fraca: a tríade Sócrates-Platão-Aristóteles viam os sofistas como se tivessem fumaça nos olhos.

E por que os sofistas prosperaram? Como eu disse, a decadência da aristocracia grega levou à implantação da democracia direta. É óbvio que esse regime não tinha nada a ver com as eleições e a igualdade de direitos e cidadania que sonhamos em ter hoje. Os cidadãos eram os únicos eleitores, e eram compostos por senhores de terras, atenienses natos, homens, desobrigados de dívidas e outras coisas mais, e somente a esses competia a escalada do poder. Por ser uma democracia direta, não havia grupos representativos, mas o próprio gogó do interessado, que precisava ser convincente perante os pares para convencê-los de suas propostas.

Os sofistas entraram nesse “negócio” ensinando artes argumentativas aos cidadãos, de modo a ampliar o cabedal lógico de suas ideias e as maneiras como elas poderiam ser aplicadas coerentemente no discurso, o que não era um mal em si. É como se você contratasse um professor que modulasse melhor sua oratória, através da construção das palavras: dizer bem o que se quer dizer é uma ferramenta para ser compreendido e dar convencimento.

Só que, como sempre acontece, a coisa degringolou. Penso nos atuais coachs quânticos e transcendentais. Talvez a profissão de coach não fosse tão digna de desconfiança quando os primeiros consultores perceberam que seu negócio precisava de incremento e se colocaram à disposição da clientela para dar conselhos de organização e planejamento, usando um nome gringo para dar mais cartaz ao empreendimento. Mas, à medida que o negócio se popularizou, a necessidade de apresentar diferenciais degenerou a boa intenção. E aí nasce uma combinação de autopromoção com pseudociência que desembocou nisso que vemos hodiernamente. Com os sofistas aconteceu a mesma coisa, e a ênfase na necessidade de vencer debates independentemente da lógica das ideias criou os erísticos, instrutores na utilização da controvérsia através de jogos de palavras. Esse nome vem da deusa Éris, regente do caos e da discórdia, porque os erísticos eram mestres na arte de fazer um xadrez mental: com raciocínios capciosos, lançavam iscas para os interlocutores com o objetivo de encurralá-los em contradições – não como a maiêutica socrática, que procurava arrancar estados de desconhecimento latentes nos próprios conceitos que os seus debatedores tinham, mas de causar uma impressão de vitória na luta verbal, o que, em um povo nem tão diferente do nosso, passava uma falsa sensação de força.

Essa prática erística ainda se mantém nos dias de hoje. E já declinou desde logo a qualidade esperada dos debates, porque as regras precisaram se tornar tão rigorosas que ficaram meio chatos e pouco espontâneos. Mas eu ando tão de porre com o cenário político atual que eu nem vou me deter muito mais neste tema. Bons ventos a todos!

Recomendação de vídeos:

Os dois vídeos abaixo, um continuação do outro, são a reprodução dos primeiros debates para a disputa do cargo de governador de São Paulo em 1982, ano em que os brasileiros puderam voltar a votar no cargo. Eu acho que, independentemente do que se concorde ou discorde em termos de ideias (estamos falando sobre eventos políticos que ocorreram há quase quarenta anos), e também independentemente da profusa utilização de sofismas, em termos de artes erísticas os oitentistas estavam mais bem servidos do que os eleitores atuais. Maluf, Brizola, Tancredo, Jânio, Montoro, Quércia e outros davam um espetáculo muito mais televisivo do que Alckmin, Dilma, Dória, Amoedo e outros menos votados.

https://www.youtube.com/playlist?list=PL364E3DA7AEE3400C

https://www.youtube.com/watch?v=aJXF2U_4MEo

Já a playlist abaixo é o do programa Complicações, da Univesp TV. Acesse se você está interessado em aprender os conteúdos, e não apenas em assistir um UFC verbal.

https://www.youtube.com/watch?v=grmYNYgEGO4

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