Marcadores

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O mundo em compartimentos na mente descontínua

Olá!

Imagine que você tem em suas mãos um metro, daqueles de pedreiro ou de tecelagem. Normalmente, eles são graduados, em um nível de precisão correspondente à sua centésima ou milésima parte, o que representa, respectivamente, um centímetro e um milímetro. Este último é bastante pequeno, menor que uma das letras que compõem este texto. Resumo: um milímetro é um metro dividido por mil. Se pegarmos esse milímetro, pequeno mas ainda confortavelmente visível, e dividi-mo-lo novamente por mil, teremos um micrômetro, algo menor do que a sujeirinha que você pode encontrar no seu monitor. Podemos continuar a brincadeira e dividir o micrômetro por mil mais uma vez, obtendo um nanômetro, sem dúvida invisível a olho nu.


Para chegar à medida atômica, temos que dividir o número uma vez mais e chegar ao Angstrom. Ou seja, para chegar até aqui, dividimos o metro 10.000.000.000 de vezes. Mas aquelas representações atômicas às quais estamos habituados, com umas bolinhas no centro e um monte de traços circulares ao seu redor são meramente didáticas. O núcleo parece grande em relação ao átomo como um todo, mas a órbita que o circula é imensamente maior. O núcleo representa algo que varia em torno de 10.000 a 100.000 vezes menos do que o diâmetro total do átomo. Já os elétrons são tão minúsculos que seu peso é desprezível para apurar o peso total do átomo. Parece inconcebível, mas somos feitos, na maior parte, de... nada!
 
Vamos pensar agora em outra coisa. Vamos supor que estejamos forrados de grana e decidamos conhecer o mundo inteiro. Para isso, vamos passar um dia, e um único dia, em cada cidade do globo. Só para o estado de São Paulo, levaremos 645 dias para fazê-lo, 1 ano e 9 meses. O Brasil inteiro tem 5570 cidades. Portanto, em nossa missão demoraríamos mais de 15 anos para partir ao estrangeiro. Não consegui encontrar estatística confiável sobre o total de cidades do mundo inteiro, por isso acreditarei nas 36.722 do Guia dos Curiosos. Sendo assim,  nossa jornada duraria 100 e poucos anos. Mas agora pensem: estamos conduzindo nossa viagem apenas pelas terras emersas, e não estamos considerando a Antártica, que não tem divisões administrativas. Nossa visita compreenderá apenas 1/3 do planeta Terra, que, se comparado com os gasosos Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, é bem pequeno. Imaginem agora que se juntarmos todos os planetas e satélites do sistema solar, não teríamos massa suficiente para fazer mais do que uma mancha na estrela matriz. Grande, não? Só que o Sol é uma estrela relativamente pequena. Não é possível comparar seu tamanho com outras estrelas em escala precisa no espaço de um monitor, a não ser que mostremos apenas parte de sua curvatura. Veja como seria uma tosca comparação do Sol com Aldebaran, Betelgeuse e VV Cephei:


Isso tudo se considerarmos o universo detectável. Há prognósticos de que podem existir objetos cósmicos ainda maiores, em distâncias que ainda não temos instrumentação capaz de detectar, coisas que estão a bilhões e bilhões de anos-luz do planetinha azul.

Anos-luz... Usain Bolt é o homem mais rápido do mundo. Em seu recorde mundial nos 100 m rasos, o jamaicano atingiu uma velocidade de 43,9 Km/h, algo incrível, mas que é superado facilmente por uma prosaica bicicleta. O homem aprendeu a medir a velocidade do som, principalmente ao observar as correlações de tempo entre raios e trovões, e concluiu que esta velocidade era de 300 m/s. Tivemos genialidade suficiente para transpor essa barreira com um engenho feito por mãos humanas. Em 1947, o primeiro avião supersônico alçou voo, e hoje temos foguetes que, para entrar em órbita, atingem velocidades de 27000 Km/h.

O homem utilizou ferramentas simples para descobrir a velocidade do som, e tentou aplica-las para medir a velocidade da luz, mas deu errado. O experimento foi o seguinte: Galileu Galilei lançou mão de duas lanternas e de um auxiliar. Foram ao alto de duas montanhas e descobriram suas lanternas. Sendo conhecida a distância entre o observador e a fonte luminosa, bastaria contar o tempo transcorrido e calcular a velocidade. Mas algo não funcionou: a luz surgia instantaneamente, e era impossível medir qualquer coisa. Só muitos anos mais tarde, observando a propagação da luz em distâncias cósmicas, e que foi possível determinar que a velocidade da luz é de 300.000 Km/s. Isso significa que, em um único segundo, um facho de luz daria sete voltas e meia no humilde planetinha. Também significa que a luz emitida no Sol demora 8 minutos para chegar à Terra. É o tempo que levaremos para saber que o Sol apagou, quando isso acontecer. Vamos dar uma forçada forte de barra agora: a média de idade de um brasileiro é de mais ou menos 70 anos. Sabe a quantas estrelas você chegaria se viajasse a vida inteira na velocidade da luz?  Algo em torno de 300. Pois no universo há BILHÕES de galáxias, contendo BILHÕES de estrelas, a BILHÕES de anos-luz de distância. A radiação cósmica de fundo, algo que os astrônomos reputam como sendo restos do Big Bang, está tão distante de nós que apenas recentemente foi detectada. Se algo de estranho ocorrer com ela agora, tipo mudar de cor, apenas alguma nova civilização sucedânea à nossa saberá (se é que estas haverão), daqui a bilhões de anos.

Fizemos estes exercícios mentais, e espero que não estejamos cansados, apenas para compreender o quanto é difícil para os cérebros humanos lidar com grandezas que vão além de certos limites. Eu poderia acrescentar mais coisas, como, por exemplo, a questão das dimensões perceptíveis, das quais podemos interagir com apenas três, as clássicas altura, largura e profundidade, mas matematicamente é possível lidar com outras. Só que chega, já tá bom.

Essa dificuldade de lidar com extremos não é por acaso. O homem como “ser cientista” é uma invenção recente. Digamos que a anotação de nossas experiências somente se torna possível a partir da criação de um código, a escrita, o que representa bem pouco tempo na história de espécie. Nós adaptamo-nos a fazer correlações diretas de causa e efeito, e com isso chegamos facilmente a uma barreira do observável pelos sentidos e pelos nossos parcos conhecimentos. Daí para frente, tínhamos pura especulação. Algumas apelavam para soluções mágicas, outras procuravam manter algum tipo de lógica, mas sempre esbarrando em nossas próprias limitações.

As correlações de causa e consequência, no florescer da humanidade, eram sempre muito imediatas. Não havia longos encadeamentos de raciocínio porque o homem precisava resolver seus problemas de maneira instantânea, principalmente em situações de iminente perigo. Um índio acuado por uma onça, por exemplo, não vai ficar devaneando sobre os motivos pelos quais ele está prestes a se tornar acepipe, se há falta de alimento na mata, se há mais onças espalhadas no terreno ou se ele simplesmente deu azar. Ele vai tentar fugir e pronto. Se não der, vai enfrentar a fera com o que estiver ao seu alcance, com pedras e paus, ou com suas próprias mãos.

Isso quer dizer que os homens não olhavam para o céu e não se admiravam com as fases da lua, os formatos das constelações ou os traços dos meteoritos? Claro que faziam tudo isso, mas o que os educava o raciocínio estava aqui na Terra. Quem bobeava, dançava. E, sem dúvida, um dos componentes que melhor nos selecionou foi a capacidade de estabelecer nexos rápidos de causa e efeito. Apenas hoje, afastados que estamos das necessidades prementes de decidir, e tendo ao nosso dispor o vasto conhecimento acumulado nos últimos séculos, percebemos um efeito colateral desse fator de seleção. É a mente descontínua.

Do que se trata isso, mais especificamente? É a dificuldade que temos de compreender como se dão encadeamentos de processos de transformação que levam muito tempo para se ocorrer, ou que estejam muito distantes, ou ainda se suas dimensões sejam grandes ou pequenas demais. Quando buscamos uma explicação para fatos intrigantes, como a origem do universo ou da vida, por mais complexa que seja nossa teoria, ela é desenvolvida em um tempo infinitamente mais curto do que o desenrolar do fato em si, e acabamos, mesmo que involuntariamente, tentando medir essas transformações através de nossos parâmetros mentais, o que obviamente não dá certo.

Nosso cérebro adaptado ao imediato tenta, a todo custo, encaixar uma explicação igualmente imediata a todos os questionamentos que não são óbvios. Temos capacidade de abstração, sim, mas buscando tangibilidade a todo custo. Por isso algumas teorias científicas parecem poéticas. E por isso teses criacionistas são mais facilmente aceitas pelo senso comum do que a teoria da evolução, para citar um exemplo. Alguns termos, como design inteligente e complexidade irredutível, procuram calçar teses de que certas características dos seres não se explicam sem um engenheiro que as projete. Acho que o exemplo mais clássico de todos é o olho humano. Um dispositivo tão perfeito, que consegue distinguir cores e perceber tridimensionalidade, que tem mecanismos de regulação de entrada da luz, que se lubrifica automaticamente, que possui capas protetoras naturais, que possuem regulagens de foco semelhantes às câmeras fotográficas, como poderia ter surgido ao acaso?

A resposta mais honesta seria: não sei. Mas a resposta mais científica diz que tudo isso é fruto da seleção natural. E isso se dá porque a evolução dos seres vivos é extremamente lenta e gradual, em um espaço de tempo difícil de observar. E há um erro muito grande em atribuir ao acaso o surgimento de um órgão. Os componentes que evoluem representam uma vantagem para a espécie que a possui. A primeira espécie a possuir um olho rudimentar provavelmente o obteve pela mutação de terminações nervosas especialmente sensíveis à luz, que aos poucos foram se modificando. Cada mudança favorável ajudou a espécie a sobreviver, e cada mudança desfavorável ajudou a condená-la à extinção. Por isso, não há acaso. Mas é exatamente aqui que a mente descontínua se prova um defeito. As relações de causa e efeito estão tão longínquas uma da outra que nossa mente não consegue juntar os compartimentos, e prefere atribuir aos fenômenos uma causa menos provável, mas mais facilmente compreensível. Basta pensar que a estimativa de surgimento do gênero Homo se deu há 2.500.000 anos. Fazendo uma exageradíssima média de 100 anos para a sobrevivência de cada geração (não atingimos essa média nem nos dias de hoje), chegaríamos à conclusão que seu ancestral mais antigo esteve na Terra a 25.000 gerações, em uma conta burríssima e meramente ilustrativa. É pouco? Você se lembra do seu pai, certamente; e provavelmente do seu avô. De bisavós, ainda é comum restar algum tempo de contato. Já dos trisavós, alguns poucos afortunados. Tetravós são extremamente raros. Falamos apenas de 6 gerações, incluindo a nossa. Junte mais 24.994 passos e chegaremos ao homo habilis.

Como a mente humana não consegue ver o todo harmônico das relações complexas, tende a dividir seu conhecimento em compartimentos. Até aí não seria um problema, se soubéssemos concatenar esses compartimentos entre si, através de uma linha mestra. Acontece que estes compartimentos são entendidos como unidades prontas e acabadas, estanques e imutáveis, e, nesse ponto, a mente descontínua mostra sua face mais perniciosa: a binariedade.

Lembram quando falei da falácia da falsa dicotomia? Pois é, aqui nós temos aplicações práticas da descontinuidade a que tende nosso pensamento – um mundo dividido em caixinhas. Todas as dicotomias que apliquei na abertura daquele texto servem para exemplificar amostras da mente descontínua. Não se enxergam transições, apenas pontos e fatos bem marcados. E surgem as brigas entre direita e esquerda – um liberal é proibido de gostar de questões sociais, um socialista não pode concordar com a propriedade privada; entre negros e brancos – o negro tem que ser étnico, o branco tem que ser opressor; uma gota de sangue negro te torna negro; entre homens e mulheres – a mulher tem que ser frágil, o homem tem que ser dominante, e não há sexualidade intermediária. Não há nuances. É um mundo em preto e branco, de zeros e uns.

Recomendação de leitura:

Todo esse ideário nasce do pensamento do biólogo britânico Richard Dawkins, que descreve o funcionamento de uma mente que não consegue conectar fatos, nem interligar ideias, nem enxergar fios condutores.

DAWKINS, Richard. O Capelão do Diabo. Ensaios escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Agradeço à Jazz e ao Lucas por permitir dar uma picotada na foto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário