Imagine que você tem em suas mãos um metro, daqueles de
pedreiro ou de tecelagem. Normalmente, eles são graduados, em um nível de
precisão correspondente à sua centésima ou milésima parte, o que representa,
respectivamente, um centímetro e um milímetro. Este último é bastante pequeno,
menor que uma das letras que compõem este texto. Resumo: um milímetro é um
metro dividido por mil. Se pegarmos esse milímetro, pequeno mas ainda
confortavelmente visível, e dividi-mo-lo novamente por mil, teremos um micrômetro,
algo menor do que a sujeirinha que você pode encontrar no seu monitor. Podemos
continuar a brincadeira e dividir o micrômetro por mil mais uma vez, obtendo um
nanômetro, sem dúvida invisível a olho nu.
Vamos pensar agora em outra coisa. Vamos supor que estejamos
forrados de grana e decidamos conhecer o mundo inteiro. Para isso, vamos passar
um dia, e um único dia, em cada cidade do globo. Só para o estado de São Paulo,
levaremos 645 dias para fazê-lo, 1 ano e 9 meses. O Brasil inteiro tem 5570
cidades. Portanto, em nossa missão demoraríamos mais de 15 anos para partir ao
estrangeiro. Não consegui encontrar estatística confiável sobre o total de
cidades do mundo inteiro, por isso acreditarei nas 36.722 do Guia dos Curiosos.
Sendo assim, nossa jornada duraria 100 e
poucos anos. Mas agora pensem: estamos conduzindo nossa viagem apenas pelas
terras emersas, e não estamos considerando a Antártica, que não tem divisões
administrativas. Nossa visita compreenderá apenas 1/3 do planeta Terra, que, se
comparado com os gasosos Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, é bem pequeno.
Imaginem agora que se juntarmos todos os planetas e satélites do sistema solar,
não teríamos massa suficiente para fazer mais do que uma mancha na estrela
matriz. Grande, não? Só que o Sol é uma estrela relativamente pequena. Não é
possível comparar seu tamanho com outras estrelas em escala precisa no espaço
de um monitor, a não ser que mostremos apenas parte de sua curvatura. Veja como
seria uma tosca comparação do Sol com Aldebaran, Betelgeuse e VV Cephei:
O homem utilizou ferramentas simples para descobrir a
velocidade do som, e tentou aplica-las para medir a velocidade da luz, mas deu
errado. O experimento foi o seguinte: Galileu Galilei lançou mão de duas
lanternas e de um auxiliar. Foram ao alto de duas montanhas e descobriram suas
lanternas. Sendo conhecida a distância entre o observador e a fonte luminosa,
bastaria contar o tempo transcorrido e calcular a velocidade. Mas algo não
funcionou: a luz surgia instantaneamente, e era impossível medir qualquer
coisa. Só muitos anos mais tarde, observando a propagação da luz em distâncias
cósmicas, e que foi possível determinar que a velocidade da luz é de 300.000
Km/s. Isso significa que, em um único segundo, um facho de luz daria sete
voltas e meia no humilde planetinha. Também significa que a luz emitida no Sol
demora 8 minutos para chegar à Terra. É o tempo que levaremos para saber que o
Sol apagou, quando isso acontecer. Vamos dar uma forçada forte de barra agora:
a média de idade de um brasileiro é de mais ou menos 70 anos. Sabe a quantas
estrelas você chegaria se viajasse a vida inteira na velocidade da luz? Algo em torno de 300. Pois no universo há
BILHÕES de galáxias, contendo BILHÕES de estrelas, a BILHÕES de anos-luz de
distância. A radiação cósmica de fundo, algo que os astrônomos reputam como
sendo restos do Big Bang, está tão distante de nós que apenas recentemente foi
detectada. Se algo de estranho ocorrer com ela agora, tipo mudar de cor, apenas
alguma nova civilização sucedânea à nossa saberá (se é que estas haverão),
daqui a bilhões de anos.
Fizemos estes exercícios mentais, e espero que não estejamos
cansados, apenas para compreender o quanto é difícil para os cérebros humanos
lidar com grandezas que vão além de certos limites. Eu poderia acrescentar mais
coisas, como, por exemplo, a questão das dimensões perceptíveis, das quais
podemos interagir com apenas três, as clássicas altura, largura e profundidade,
mas matematicamente é possível lidar com outras. Só que chega, já tá bom.
Essa dificuldade de lidar com extremos não é por acaso. O
homem como “ser cientista” é uma invenção recente. Digamos que a anotação de nossas
experiências somente se torna possível a partir da criação de um código, a
escrita, o que representa bem pouco tempo na história de espécie. Nós
adaptamo-nos a fazer correlações diretas de causa e efeito, e com isso chegamos
facilmente a uma barreira do observável pelos sentidos e pelos nossos parcos
conhecimentos. Daí para frente, tínhamos pura especulação. Algumas apelavam
para soluções mágicas, outras procuravam manter algum tipo de lógica, mas
sempre esbarrando em nossas próprias limitações.
As correlações de causa e consequência, no florescer da
humanidade, eram sempre muito imediatas. Não havia longos encadeamentos de
raciocínio porque o homem precisava resolver seus problemas de maneira
instantânea, principalmente em situações de iminente perigo. Um índio acuado
por uma onça, por exemplo, não vai ficar devaneando sobre os motivos pelos
quais ele está prestes a se tornar acepipe, se há falta de alimento na mata, se
há mais onças espalhadas no terreno ou se ele simplesmente deu azar. Ele vai
tentar fugir e pronto. Se não der, vai enfrentar a fera com o que estiver ao
seu alcance, com pedras e paus, ou com suas próprias mãos.
Isso quer dizer que os homens não olhavam para o céu e não
se admiravam com as fases da lua, os formatos das constelações ou os traços dos
meteoritos? Claro que faziam tudo isso, mas o que os educava o raciocínio
estava aqui na Terra. Quem bobeava, dançava. E, sem dúvida, um dos componentes
que melhor nos selecionou foi a capacidade de estabelecer nexos rápidos de
causa e efeito. Apenas hoje, afastados que estamos das necessidades prementes
de decidir, e tendo ao nosso dispor o vasto conhecimento acumulado nos últimos
séculos, percebemos um efeito colateral desse fator de seleção. É a mente
descontínua.
Do que se trata isso, mais especificamente? É a dificuldade
que temos de compreender como se dão encadeamentos de processos de
transformação que levam muito tempo para se ocorrer, ou que estejam muito
distantes, ou ainda se suas dimensões sejam grandes ou pequenas demais. Quando
buscamos uma explicação para fatos intrigantes, como a origem do universo ou da
vida, por mais complexa que seja nossa teoria, ela é desenvolvida em um tempo
infinitamente mais curto do que o desenrolar do fato em si, e acabamos, mesmo
que involuntariamente, tentando medir essas transformações através de nossos
parâmetros mentais, o que obviamente não dá certo.
Nosso cérebro adaptado ao imediato tenta, a todo custo,
encaixar uma explicação igualmente imediata a todos os questionamentos que não
são óbvios. Temos capacidade de abstração, sim, mas buscando tangibilidade a
todo custo. Por isso algumas teorias científicas parecem poéticas. E por isso
teses criacionistas são mais facilmente aceitas pelo senso comum do que a
teoria da evolução, para citar um exemplo. Alguns termos, como design
inteligente e complexidade irredutível, procuram calçar teses de que certas
características dos seres não se explicam sem um engenheiro que as projete.
Acho que o exemplo mais clássico de todos é o olho humano. Um dispositivo tão perfeito,
que consegue distinguir cores e perceber tridimensionalidade, que tem
mecanismos de regulação de entrada da luz, que se lubrifica automaticamente,
que possui capas protetoras naturais, que possuem regulagens de foco
semelhantes às câmeras fotográficas, como poderia ter surgido ao acaso?
A resposta mais honesta seria: não sei. Mas a resposta mais
científica diz que tudo isso é fruto da seleção natural. E isso se dá porque a
evolução dos seres vivos é extremamente lenta e gradual, em um espaço de tempo
difícil de observar. E há um erro muito grande em atribuir ao acaso o
surgimento de um órgão. Os componentes que evoluem representam uma vantagem
para a espécie que a possui. A primeira espécie a possuir um olho rudimentar provavelmente
o obteve pela mutação de terminações nervosas especialmente sensíveis à luz,
que aos poucos foram se modificando. Cada mudança favorável ajudou a espécie a
sobreviver, e cada mudança desfavorável ajudou a condená-la à extinção. Por
isso, não há acaso. Mas é exatamente aqui que a mente descontínua se prova um
defeito. As relações de causa e efeito estão tão longínquas uma da outra que
nossa mente não consegue juntar os compartimentos, e prefere atribuir aos
fenômenos uma causa menos provável, mas mais facilmente compreensível. Basta
pensar que a estimativa de surgimento do gênero Homo se deu há 2.500.000 anos. Fazendo uma exageradíssima média de
100 anos para a sobrevivência de cada geração (não atingimos essa média nem nos
dias de hoje), chegaríamos à conclusão que seu ancestral mais antigo esteve na
Terra a 25.000 gerações, em uma conta burríssima e meramente ilustrativa. É
pouco? Você se lembra do seu pai, certamente; e provavelmente do seu avô. De
bisavós, ainda é comum restar algum tempo de contato. Já dos trisavós, alguns
poucos afortunados. Tetravós são extremamente raros. Falamos apenas de 6
gerações, incluindo a nossa. Junte mais 24.994 passos e chegaremos ao homo habilis.
Como a mente humana não consegue ver o todo harmônico das
relações complexas, tende a dividir seu conhecimento em compartimentos. Até aí
não seria um problema, se soubéssemos concatenar esses compartimentos entre si,
através de uma linha mestra. Acontece que estes compartimentos são entendidos
como unidades prontas e acabadas, estanques e imutáveis, e, nesse ponto, a
mente descontínua mostra sua face mais perniciosa: a binariedade.
Lembram quando falei da falácia da falsa dicotomia?
Pois é, aqui nós temos aplicações práticas da descontinuidade a que tende nosso
pensamento – um mundo dividido em caixinhas. Todas as dicotomias que apliquei
na abertura daquele texto servem para exemplificar amostras da mente
descontínua. Não se enxergam transições, apenas pontos e fatos bem marcados. E
surgem as brigas entre direita e esquerda – um liberal é proibido de gostar de
questões sociais, um socialista não pode concordar com a propriedade privada;
entre negros e brancos – o negro tem que ser étnico, o branco tem que ser
opressor; uma gota de sangue negro te torna negro; entre homens e mulheres – a mulher
tem que ser frágil, o homem tem que ser dominante, e não há sexualidade
intermediária. Não há nuances. É um mundo em preto e branco, de zeros e uns.
Recomendação de leitura:
Todo esse ideário nasce do pensamento do biólogo britânico
Richard Dawkins, que descreve o funcionamento de uma mente que não consegue
conectar fatos, nem interligar ideias, nem enxergar fios condutores.
DAWKINS, Richard. O
Capelão do Diabo. Ensaios escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras,
2014.
Agradeço à Jazz e ao Lucas por permitir dar uma picotada na foto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário