Olá!
Nunca consegui formar uma compreensão muito clara sobre os
motivos que levam as pessoas a se preocupar com efemérides. Para quem não sabe,
este termo significa algo breve, e há até mesmo um inseto que leva esse nome
por viver parcas 12 horas em seu estágio adulto. Para o presente assunto,
interessa saber que, tempos atrás, havia uma pequena sessão nos jornais
destinadas a dar breves notas sobre aniversários e outras datas importantes,
semelhantemente ao que o Facebook faz com seus amigos hoje em dia. Aqueles que
ganhavam um pouco mais de relevo eram os aniversários “redondos”: 100 anos de
fundação da Gazeta de Piraputanga, 50 anos do casamento de seo Ernesto e dona Etelvina, 300 anos da Revolução das Mexericas e
coisa que o valha. Os preferidos são os centenários e derivados, por conta do
duplo zero. Além disso, outras “redondezas” também chamam a atenção, como o
milésimo gol de um determinado craque, o centésimo número de uma revista, as
cidades com mais de cem mil habitantes e assim por diante.
Por que a diferença? Daqui a pouco completarei 50 anos e
será um dia como outro qualquer, talvez chuvoso, talvez haja uma greve, uma
consulta no otorrino, talvez haja uma vitória do meu time, talvez não. E, mesmo
no meu caso particular, não existiria meus 50 anos se não houvessem os 49, os
48, os 47 e cosi via. As efemérides
são assim: vazias de significado, e que só ganham vida por conta da nossa
habitualidade de reparar em coisas inúteis.
Tanto é verdade que estou aqui, comemorando meu ducentésimo
post. Por 200 vezes sentei na frente de meu computador para digitar um texto
redigido em lugares tão diversos quanto uma mesa de café, um sofá de
consultório e mesmo no apoio de um carrinho de compras. Minha mulher já me
disse mais de uma vez que eu deveria escrever um livro. Se eu levar em conta
que minhas linhas tortas preenchem em média quatro laudas, meu blog inteiro
daria umas oitocentas páginas, o que já poderia ser qualificado de calhamaço.
Só que com um defeito irremediável: dada sua fragmentação, não seria uma obra
que primaria pela uniformidade e lógica encadeada, como ocorre com os grandes
tratados; por outro lado, são textos longos demais para serem reduzidos à forma
de aforismos, que possuem um poder de síntese formidável, a exemplo de
Nietzsche e Bacon. Sendo assim, mantenho o formato blog e pronto. Se alguém
achar justo e resolver um dia coligi-lo em livro, fique a vontade, sempre
lembrando dos créditos autorais e bancários, por gentileza.
Já registrei, na forma de postagem, duas outras efemérides
neste espaço: o centésimo texto, a quem chamei de metapost, e o quinto aniversário das Aporias Plurais. Em ambos, tratei da Metafilosofia, o ramo
da Filosofia que trata a si própria como objeto de estudo, ou seja, se existe
uma Filosofia para tratar da Ciência, da Educação, da Religião, da Mente, do
Conhecimento, do Tempo e de outras áreas, existe também uma Filosofia da
Filosofia, que cuida de compreender o que há por trás do pensamento filosófico,
incluindo métodos de trabalho e caminhos a seguir. Resolvi, já que tenho feito
isso despropositadamente, dar a minha própria metafilosofia sempre que ocorrer
uma efeméride, retratando algum aspecto das reduções de minhas ideias a
escritos.
Desta vez, vou falar do aspecto literário com que escrevo.
Por “literário”, não entendam aqui nenhuma arrogância, nem pretensão a artista.
Boa ou má, uma escrita é literatura – percebam que o termo vem do latim litteris, que significa, mui meramente,
letras. Sendo assim, vamos ao que interessa.
Quem influencia minha escrita? Não se trata de um exercício
fácil. Em primeiro lugar, temos a vaidade de querermos ser originais, e nem
sempre conseguimos admitir que há uma espécie de “mão invisível” que guia
nossos mal traçados caracteres. Às vezes, a miscelânea é tão grande que se gera
um estilo novo, por vezes muito bom, por vezes nem tanto. Já falei em algum
canto sobre a oposição entre músicos e escritores no reconhecimento de influências. Os
primeiros alardeiam pelos quatro cantos que “pegaram um ritmo afro e
aplicaram-no em melodias de vertente arábica, com instrumentação típica das culturas
aborígines canadenses e densidade nipônica”. Além disso, declaram publicamente
que um determinado fraseado de guitarra é inspirado em tal músico, e que
baixo-bateria seguram a peteca como faz tal banda. Músicos dão nomes aos bois.
Escritores detestam fazer isso, não sei bem por quê. Por
mais que existam escolas literárias mais ou menos uniformes, como Romantismo e
Realismo, é raro (eu nunca vi) alguém dizer que, por admirar o “traço” do
outro, faça uso de técnicas semelhantes. A mim, parece que a músicos a
originalidade está na mescla bem sacada, enquanto que a escritores está na
inovação propriamente dita, na peculiaridade do estilo.
Como não sou nem músico profissional, nem escritor da mesma
estirpe, posso me dar ao luxo e à liberdade de tentar reconhecer o que influencia
minha escrita. Só que há armadilhas.
Um ponto a ser observado é não confundir escritores que
gostamos com escritores que guiam nossa mão. Para dar um exemplo, posso dizer
que adoro Gabriel Garcia Marquez ou Clarice Lispector, mas, se eu colocar um
texto de ambos ao lado do meu, não há nenhum ponto de contato. Enfim, não há
sinonímia entre apreciar e influenciar, ao menos em questão de estilo.
Mais um aspecto é a diferença entre dar modelo a escrita ou
ao pensamento. Alguns literatos escrevem muito bem, sem que eu concorde com uma
única letra que o gajo escreve. O vice-versa também vale: há conceitos
magníficos, que podem estar extremamente enredados em uma malha de frases
construídas com complexidade hermética, ou estar pura e simplesmente mal
redigidos. Uma coisa não tem a ver com outra necessariamente. Há a questão da
forma e da substância, coisas distintas.
Outra coisa é que temos fases. Não escrevemos da mesma forma
a vida inteira, e nem sobre os mesmos temas. Uma influência pode ser mais
facilmente reconhecível quando se trata de um determinado assunto que outro,
especialmente quando seja mais correlato à área de atuação do influenciador, ou
pode ser reconhecível na juventude, mas não na maturidade. A vida é um
labirinto.
Dito tudo isso, consegui detectar três influências
constantes e duas mais pontuais. Influências difusas são irreconhecíveis,
lamento muito. E, claro, filtrei rigorosamente a questão com a concordância das
ideias. Portanto, as influências que trato aqui são formais, e não ideológicas. Aliás, os autores que citarei
estão em polos ideológicos opostos, diga-se de passagem. Repetirei essa
cantilena algumas vezes no correr da pena, porque, nessas coisas de política,
as pessoas andam mais intransigentes que em matéria de futebol, e não
reconhecem mais um bom texto que lhes oponha à sua própria cabeça.
O primeiro deles é o jornalista Flávio Gomes. É, para mim, o
definidor do formato blog que adotei. Dele, trago a linguagem que trafega do
técnico para o coloquial, variando no que entendo ser o momento exato. E dele
também percebi a oralidade tão necessária para esse modelo de comunicação, onde
se busca estabelecer uma espécie de quase-interlocução com seu público. Isso é feito utilizando-se a linguagem como ferramenta de expressão intensa das ideias, incluindo onomatopeias e palavrões, que carregam algo como uma fala embutida, e não como acontecem com os manuais e artigos em geral, frios, técnicos.
É óbvio que os blogs em geral adotam essa mesma estratégia,
mas Flávio Gomes escreve MUITO bem, na minha modesta. Em uma determinada ocasião,
enquanto ocorria o despejo do bairro do Pinheirinho, em São José dos Campos,
pediram-me que escrevesse a respeito. Já estava com a tarefa em andamento, mas
quando li o que nosso escriba teceu, joguei meus rabiscos fora e limitei-me
a recomendar sua fala. Não tinha absolutamente nada que eu pudesse acrescentar
de bom ou útil. O mesmo se aplica a este texto sobre a relação entre
Rubinho Barrichello e a rede Globo, irrepreensível. Reitero: ele tem uma
posição política muito bem marcada, e não é isso que discuto nesse momento.
Estou me atendo ao aspecto técnico. E digo mais: o mote principal do seu blog é
esporte a motor, não esperem encontrar comentários políticos em profusão.
A segunda influência que tenho a observar vem da Itália. É o
escritor Giovanni Guareschi, a quem li com abundância quando tentava aprender
italiano. Ora, direis, com Petrarca, Alighieri, Maquiavel, Pirandello, Moravia,
Calvino, Fo, Gadda e Tabucchi à disposição, você foi se agarrar a um escrevinhador
secundário como Guareschi? Não é um pouco de falta de ambição?
Não, não é. Reconheço que Guareschi não praticou alta
literatura nem fundou escolas, mas ninguém como ele retratou os conflitos do pós-guerra
na Itália pelo ponto de vista de quem mais foi impactado – o povo. E o fez pela
melhor chave possível, a do humor. Trouxe-me tanta informação que eu não
conhecia que meu TCC foi exatamente sobre sua ótica nos conflitos entre
religião e política daquela época. Dele, além de algumas expressões e
barbarismos que eu ouvia da boca de meus avós, vem um gosto por certos
detalhamentos que, se por um lado causam uma quebra no fluxo da leitura, por
outro trazem mais clareza a quem lê, sempre pensando que o leitor não é,
obrigatoriamente, um conhecedor do cenário que se busca retratar. Além disso,
mesmo tendo uma posição política bem delineada, Guareschi não costuma evitar
críticas a nenhum dos lados, o que, quando estabeleço uma dialética, tento
também fazer, vide meus textos que contrapõe Ciência e Religião.
O terceiro é o cronista carioca Sérgio Porto, o mesmíssimo
Stanislaw Ponte Preta que nos deu a tia Zulmira, o primo Altamirando, Rosamundo
e outros personagens que davam suporte às suas bem-humoradas crônicas. Um
observador da minúcia carioca e um comentarista mordaz do lado patético da
ditadura, em uma época em que não era muito saudável fazê-lo. Trouxe para mim
duas coisas: a utilização profícua de eufemismos e a introdução de termos
castiços em falas mais voltadas para o informal, produzindo uma certa sensação
de necessidade de um dicionário matreiro pelas imediações, além da legitimação do uso do denotativo no coloquial e do conotativo no formal.
Outro que me influencia é Fernando Pessoa. Mas quem não foi
influenciado por ele e seus heterônimos? O poeta português dispensa grandes
detalhamentos, mas preciso explicar porque ele está aqui. Pessoa transita
melhor do que ninguém entre o físico e o metafísico, entre o raciocínio e o
enlevo, entre a concretude e o devaneio. O melhor exemplo está no poema “Tabacaria”,
recomendado abaixo. Para mim, o supra-sumo da poesia. Transpareço essa mesma
sensação de mundo caindo sobre minha cabeça pontualmente, como, por exemplo, neste texto. É a marcação de duas coisas: a dificuldade de distinguir real de
onírico e o rompimento repentino deste mesmo laço.
Por fim, outra influência pontual: Anton Tchekhov. Este
escritor russo tem como característica um pinçar de situações em que não há muita
importância onde as mesmas começam ou terminam, fixando seu foco apenas onde
lhe importa. Sinto que eventualmente acabo fazendo isso também, embora de
maneira menos abrupta. Essa técnica me favorece pelo seguinte: muitas vezes
extraio Filosofia do dia-a-dia, mas há momentos em que faço o movimento
contrário – de uma ideia ou corrente filosófica, caço uma situação quotidiana
(talvez fale melhor sobre isso na próxima efeméride). Se atar todos os nós que “convergiram
para” ou “derivaram de”, o texto vira novela e o efeito é escapar do que
interessa. Por isso, apesar das pontas soltas, algumas vezes deixo de lado
grandes introduções e epílogos para me centrar em um instante específico, no
que o literato russo é mestre. Exemplos aqui e aqui.
Bom, essas são as influências que consegui detectar. É óbvio
que há muitas outras, e, quanto menos conscientes, mais complicado de
reconhecer. No entanto, é uma experiência interessante tentar entender onde há
alguns paradigmas para nossa escrita sem que isso represente uma pura e simples
comparação. Mais uma vez, vejam que não me detive em influências ideológicas.
Eu as tenho, mas não é sobre isso que falo agora. Percebam como aproveito, sem
servidão, de estilos de escribas que se declaram socialistas, como Gomes, e
democratas-cristãos (de origem monarquista) como Guareschi. Meu intento, repito
uma vez mais, é meramente apontar tendências formais.
E, para finalizar, volto atrás na minha questão do vazio da
efeméride. Utilizamos estes mecanismos porque sempre estamos à busca de
referências. Para que saibamos se algo existe a muito ou pouco tempo, é
necessário que exista um referencial. Coisas como “novo” ou “velho”, o são em
relação a alguma coisa. Um cachorro de 20 anos é um ancião, praticamente uma
múmia; já um homem, é um recém adulto. Idem a um conceito de “alto” ou “baixo” –
uma mulher de 1,80 é alta, um homem da mesma medida é mediano. Muitos outros
exemplos seriam possíveis. E porque nossas referências se traduzem em números “redondos”?
Porque estamos viciados na base 10, o sistema derivado dos dez dedos, tanto que
a palavra dígito vem do latim digitus,
que significa dedo (ora vejam). Se nossa base de contagem não fosse essa, tão
intuitiva, nossas efemérides provavelmente seriam outras. Fosse hexadecimal,
provavelmente contaríamos a repetição de caracteres. Olhem que bacana: “A
cidade de Pororó da Serra está em festa! Comemora-se FF anos de sua fundação!”.
FF em hexadecimal representa o número 255 em nosso
consuetudinário sistema decimal. Nada redondo, por conseguinte.
Recomendações de leitura:
Vamos lá que são várias. O melhor que tenho a indicar do
jornalista Flavio Gomes é seu blog. O carro-chefe é automobilismo, mas há
muitas seções fixas com referências a suas preferências, como os carros da
antiga Europa Oriental, os postos de combustíveis incomuns, as velhas Kombis e
outras coisas mais. Também escreveu um livro chamado “O Boto do Reno”, mas eu
não o li ainda.
http://flaviogomes.grandepremio.uol.com.br/
Giovanni Guareschi, como eu disse, é um escritor e
jornalista que teve seu auge no imediato pós-guerra. Seu personagem mais
clássico é Dom Camillo, um padre que tem mais ocupação com a política do que
com seu rebanho. Como já recomendei sua principal obra por aqui, vou me ater ao
seu livro de despedida, em um formato até então inédito para ele, com histórias
mais longas e coesas entre si. O nome adotado no Brasil é horroroso. No original, significa Dom Camillo e os Jovens de Hoje.
Sérgio Porto é cronista muito conhecido no Brasil, muito
dedicado à análise de costumes, mas com boa preocupação política, tanto que
lançou dois volumes de Febeapá’s, os Festivais de Besteiras que Assolam o País,
onde traz incontáveis burrices cometidas por nossos já infames governantes.
PONTE PRETA, Stanislaw. Febeapá 1. 1º Festival de Besteiras que Assola o País. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.
Fernando Pessoa... Não preciso ficar falando de Fernando
Pessoa. Segue o link de A Tabacaria...
... e um dos livros onde a mesma pode ser encontrada:
PESSOA, Fernando. Tabacaria.
The Tobacco Shop. Ed. Bilíngue. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2015.
Finalmente Tchekhov, de quem também não há muito o que
falar. Um rei do conto. Segue um bom livro deles.
TCHEKHOV, Anton. A
dama do cachorrinho e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2009.
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