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quinta-feira, 22 de abril de 2021

Sobre a origem da vida e as difíceis provas negativas (Pequeno guia das grandes falácias - 60º tomo: a probatio diabolica)

Olá!

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Dia desses, já tem um bom tempo atrás, eu estava voltando da casa da comadre e passava em frente à igreja do Carmo, uma daquelas famosas do centro de SP. É raro que haja qualquer evento por lá, já que não é uma paróquia de comunidade, nem mesmo um santuário muito frequentado fora das datas da padroeira. Então me chamou a atenção uma faixa estendida no começo de sua escadaria, como uma pequena mudança na aparência habitual. Nela, estava escrito assim: “Dia X, às tais horas, venha rezar conosco as mil ave-marias, pela conversão dos pecadores”. Mil!!! Nem nos meus tempos de maior beatitude, eu levava a cabo um empreendimento desses.

Tive a pachorra de calcular por aproximação a duração de um rito desses. Levando em conta que as senhorinhas que frequentam esses cultos gostam de rezar bem rezado, contei vinte segundos por prece. Isso dá quase seis horas só de aves-marias, sem pausas. Se levarmos em conta que há ainda cinquenta pais-nossos e cinquenta glórias, além das reflexões dos mistérios do rosário e a contemplação das cinco chagas de Cristo, não tem como fazer em menos de nove ou dez horas.

Eu não vou discutir a crença de ninguém. O mais importante é que a pessoa se sinta bem fazendo o que quiser. Eu só acho um exagero estranho, um sacrifício mais da atenção do que propriamente do exercício da fé, que existirá ou não independentemente da realização do combo oracional. É bem verdade que a repetição ad infinitum de preces tem o mesmo objetivo de atingir um transe que os mantras possuem, onde a atenção já não está naquilo que se diz, mas no que se sente, uma espécie de descolamento da realidade física que rodeia o contribuinte.  É um pouco como o sentimento oceânico freudiano? Sim, mas cada um com suas características. Enquanto um vem da perda de noção de limites do corpo com o ambiente, o outro faz uma espécie de colapso na percepção temporal. No primeiro, perde-se a noção de espaço; no segundo, na percepção do tempo. Pelo menos eu acho.

Ocorre que o volume de rezas me fez lembrar de outra coisa, e para explicar para vocês vou ter que contar um pouco da historia do meu TCC. Eu peguei o período do imediato pós-guerra na Itália e observei como um humorista de lá enxergava as agruras, para analisá-lo sob o prisma da Filosofia Política. Trata-se de Giovanni Guareschi, de quem já falei neste post. Seu personagem principal, e pelos olhos de quem ele se aproveitava para contemplar sua Itália em recomposição física e moral, era Dom Camillo, um padre conservador que vivia às turras com o prefeito comunista, Peppone. Em tudo havia debate (e algumas vezes rolava as vias de fato), desde um simples brinquedo de feira, até os conflitos psicológicos na hora do voto. Os personagens tinham personalidades extremamente dúbias, incluindo o cristianismo disfarçado dos comunistas. Certa ocasião, Peppone vai ao padre para confessar um pecado político, cuja absolvição Dom Camillo não pode negar. Seu recurso é impingir uma penitência duríssima: 3 glórias, duas aves-marias e 3000 padres-nossos, muito mais do que nossas velhinhas carmelitas se propõe a rezar à sua padroeira. 

Eu nunca entendi muito bem essa questão da confissão e da penitência. O que vale mais? Um arrependimento sincero ou um pecado confessado? De que vale um pecado confessado mas sem arrependimento? A absolvição vale mesmo assim? Olha só o paradoxo, a ambiguidade, a bivalência, o contrassenso, o antagonismo, a paralaxe, a contradição, a anfibologia. Se eu deixo de confessar um pecado, carrego a culpa dele mesmo que arrependido; se o confesso, sou perdoado mesmo que não arrependido. Essa falta de compreensão me fez dar muitas fintas no sacramento, mesmo nos tempos de carolice. Um dos truques (que nem era um truque de verdade) consistia em fazer a confissão em paróquia desconhecida, onde o vigário de plantão não pudesse guardar de mim a vergonha do "crime" cometido. Além disso, o que eu confessaria de fato? As sórdidas fornicações da juventude? Mas é aí mesmo que eu não tinha arrependimento algum… Os tapinhas na pantera? Ora, isso nunca prejudicou ninguém, nem mesmo a mim (ao que eu pensava na época).

Outra coisa difícil de entender era a dosimetria da penitência. Em principio, para grandes pecados, eram necessárias grandes reparações. Mas a dosagem do remédio não pode ser maior que a do veneno, sob pena de matar o neobeato, ou, desmetaforizando, desestimular que o pecador procure sair do seu erro. Por isso mesmo, o próprio código de direito canônico, o conjunto de regramentos do clericato católico, instrui os padres a não prescrever penas que sejam demasiado gravosas, ou mesmo impossíveis de cumprir. Por exemplo, não se pode exigir um jejum de quarenta dias, ou que o penitente se chicoteie, ou que passe o resto da vida em oração. Com as devidas proporções, é meio difícil de aceitar o volume de padres-nossos impostos por dom Camillo ao pobre Peppone. Esse excesso faz um desfavor à intenção do sacramento, porque mata ou prejudica desproporcionalmente o confidente, e o que era para ser positivo, acaba tomando o serviço inverso, para gáudio da oposição a Deus. E daí nasce um termo que vai se tornar muito comum no direito e na lógica: a probatio diabolica, ou prova do diabo em latim.


A probatio diabolica é uma condição em que se exige uma prova que alguém não tem condições de produzir. Para ser mais específico, talvez não haja uma impossibilidade patente, mas uma extrema dificuldade em conseguir obter prova completa de um argumento qualquer. E isso vai se misturar com o conceito de ônus da prova, de quem a probatio diabolica tira amplo proveito.

O que diz o princípio do ônus da prova? É simples. Cabe a quem faz uma declaração qualquer o dever de prová-la verdadeira. Se eu disser que vi duendes no jardim, implicitamente tenho o dever moral de reconhecer que a prova deve ser minha, pelos meios idôneos possíveis. Não faz nenhum sentido que meu interlocutor receba o encargo de provar que eu estava bêbado. Não, sou eu quem deve apresentar a foto, a filmagem, a gravação, as pegadas, o pote de ouro, o barrete, ou, de preferência, o orelhudo em pessoa. Esse princípio geral pode ser ferido de duas formas fundamentais: a primeira é com a inversão do ônus da prova, onde é repassado para aquele que nega um argumento que produza a prova de verdade. No exemplo em tela, é como se eu exigisse que o meu debatedor mostrasse por A + B que os duendes não existem, sendo que a afirmação da existência é minha. Uma maneira válida de uma negação carregar a obrigação de provar é quando se quer refutar uma verdade consolidada, como é o caso de dizer que a gravidade não existe. Neste caso, o ônus cabe a quem nega. A segunda ocorre quando não se cumpre o ônus da prova, e justamente o vácuo deixado é interpretado como uma verdade, porque a negação também não é provada. É o que chamamos de apelo à ignorância.

Já a probatio diabolica não é um vício aplicado a um erro no polo devedor da prova, e sim na capacidade daquele que possui o ônus de produzir a prova. Em outras palavras, o ônus da prova continua na mão de quem faz a declaração, mas ela é muito pesada (ou até mesmo impossível) de se conseguir. Um exemplo muito simples é possível de extrair do Direito. Sabe-se que a bigamia é ilegal no Brasil, conforme diz o Código Penal...

Artigo 235 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940

Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:

Pena - reclusão, de dois a seis anos.

§ 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos.

§ 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.

... e o Código Civil:

Artigo 1521 da Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002

Art. 1.521 Não podem casar:

(...)

VI - as pessoas casadas.

Pois muito bem. O que é preciso fazer para que se prove não ser casado? Como bem sabemos, o fio do bigode já faz um bom tempo que não vale grande coisa (nunca valeu). Portanto, são necessários papeis, emitidos por cartórios, onde o escrivão escreverá que fulano não possui assentos afirmando a contração de matrimônio. Só que a lei não especifica o local onde o casamento ocorreu, o que impede que um cartório determinado mate a charada. Em tese, seria necessário obter certidões de estado civil em TODOS os cartórios de Terra Brasilis, ou, no limite, do mundo inteiro. É virtualmente impossível conseguir levar esta tarefa a cabo: antes de chegar à metade, o casamento já acabou. Para resolver o problema, a lei estipula uma espécie de “presunção de inocência” através de declarações expressas, conforme relacionado abaixo:

Artigo 1525 da Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002

Art. 1.525. O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser instruído com os seguintes documentos:

(...)

III - declaração de duas testemunhas maiores, parentes ou não, que atestem conhecê-los e afirmem não existir impedimento que os iniba de casar;

IV - declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos;

V - certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença de divórcio.

Dessa forma, no nosso exemplo do casamento, a prova é bem mais frágil, apoiando-se em testemunhos do item III e declarações indiretas, já que o texto de próprio punho do item IV pode facilmente ser escrito com má-fé e os registros do item V não asseguram a inexistência de novo matrimônio após o desfazimento do vínculo anterior. Mas, mesmo que não sejam provas cabais, são as provas possíveis. E assim a sociedade segue vivendo.

Outra maneira com a qual nossos causídicos lidam com a questão é com a distribuição dinâmica do ônus da prova. Vamos fazer uma hipótese rápida: você compra uma bola de capotão para o seu filho e o animado petiz a vê murchar no primeiro chute. Ao reclamar na loja, o caso é encaminhado ao fabricante, que alega uso indevido. O caso é judicializado, e o ônus é teu, pai do moleque com pé de tesoura. Mas tudo o que você tem é uma bola furada nas mãos. Não conhece de física, nem de costura, resistência dos materiais, e, em suma, não tem condições técnicas nem meios financeiros para provar que a culpa não é do pequeno. O juiz, nesse caso, pode inverter o ônus da prova, de modo a determinar que o fabricante é quem deverá provar que o furo se deu por má utilização da bola, porque ele tem técnicos, especificações, laudos e testes laboratoriais que permitem mais facilmente a comprovação do que ele (ou o pé de sovela) alegam. Isso é bastante comum em causas do Código do Consumidor.

O Direito, desta forma, sabe como lidar com a prova do diabo. Acontece que nem sempre ela é utilizada nesse âmbito. Veja só que bela armadilha: todos nós sabemos que a atividade científica se baseia na interpretação de evidências, e que a ausência delas pode, no máximo, fazer com que um argumento fique no campo das hipóteses. A cada passo que um cientista dá, exige-se dele uma evidência ainda mais específica, mais ou menos como acontece na falácia das traves móveis, que discorri sobre neste texto. Para não repetir a mesma cantilena, vou exemplificar com outro tema polêmico: o surgimento da vida.

Segundo os diferentes religiosos, a vida surgiu neste depredado planetinha como a manifestação da vontade de um criador, e pronto. É uma resposta enganosamente simples, porque embora dê uma solução imediata para o problema, cria um monte de outros, que tem respostas ainda mais difíceis e carentes de provas. Para que fins foi criada a vida, se um criador autossuficiente se basta em si mesmo? Onde se pode achar fisicamente esse criador? Quem criou o criador? Toda e qualquer resposta será necessariamente incompleta e demandará novas questões, que serão novamente respondidas com argumentos metafísicos, que, na melhor das hipóteses, carregarão lógica, mas não evidências. E isso não serve para a Ciência.

Qual a alternativa, então? Buscar hipóteses que contenham um mínimo de requisitos correspondentes com nossa percepção empírica. Em outras palavras, retirando o componente mágico e escavando fenômenos que são observáveis. Com isso, começamos percebendo que não existe vida que não se origine de outra vida, como provou Pasteur, a não ser uma: a vida original, aquela que deu origem a todas as outras.

Tá. Como poderíamos supor o que seria essa primeira vida?* Sua composição nem seria tão problemática assim. Compostos orgânicos podem ser obtidos a partir das reações químicas que ocorriam no ambiente de alguns bilhões de anos atrás. Uma temperatura muito mais alta que a atual pairava sobre o oceano, com a incidência de violentas tempestades elétricas. Átomos de carbono, nitrogênio e hidrogênio, reagindo a essas descargas imensas de energia, se uniam a outras substâncias para formar coacervados semelhantes aos atuais aminoácidos que compõe os organismos vivos. Na continuidade dos fenômenos climáticos, e agora com a existência de um caldo de coacervados presente nos oceanos primordiais, as moléculas e suas uniões foram se tornando cada vez mais complexas e sofisticadas. Mas para fazer a maquininha da vida funcionar ainda faltariam dois requisitos mínimos: metabolismo e reprodutibilidade. O primeiro diz respeito à necessária alimentação, e a segunda à continuidade da vida através da produção de descendentes. Essas “faíscas” são muito difíceis de se delinear, mas o que é certo é que nada mais são do que reações químicas.

Aleksandr Oparin e John Burdon Haldane, de maneira independente, trabalharam nessa hipótese.  Podem perceber que ela nem recebe o nome de teoria, porque lhe faltam evidências sólidas, ficando ainda muito no campo da suposição. Isso acontece porque há muita limitação em se reproduzir um ambiente minimamente semelhante àquele que tínhamos na Terra a tantos e tantos bilhões de ano, mas ela é plenamente científica, porque embora haja esses óbices à verificação, há todo um mecanismo bem desenhado para fazê-la, com seus respectivos pontos de falseabilidade. À medida que a tecnologia avançar, melhores evidências poderão ser obtidas e dar mais e mais força à veracidade da hipótese.

Só que a ideia do surgimento autônomo da vida dá cólicas mentais em quem se prende a teses criacionistas, pior até mesmo do que acontece com a Teoria da Evolução. Alguns argumentos são os habituais, e combinam retórica com desconhecimento: complexidade irredutível, lacunas no conhecimento, falta de verossimilhança. Mas há muita probatio diabolica também.

Por exemplo. Com a alegação de que as condições climáticas seriam capazes de produzir aminoácidos, pede-se que isso seja provado. Mesmo com todas as limitações laboratoriais, através da inserção dos elementos químicos livres na água e no ar e da sobrecarga elétrica nessa mistura, consegue-se obter algum aminoácido (é uma experiência que de fato foi realizada). A pergunta seguinte é uma probatio diabolica: reproduzam-se todos os aminoácidos existentes na natureza. Ora, isso não é possível. Existem mais de 300 aminoácidos dentre os essenciais e os secundários, e consegui-los através da tecnologia disponível é impossível. Um desafio desses é falacioso porque não visa melhorar a hipótese criacionista, mas tão-somente obstaculizar a hipótese abiogenética.

Não deixa de ser um mecanismo de dispersão, tão típico dos apelos em geral, especialmente porque o retrucar não costuma oferecer nada a mais, o que é um belo defeito desse tipo de argumento, eminentemente retórico. Em suma, se uma explicação é muito difícil, isso não torna o argumento contrário automaticamente válido, como se quer fazer parecer.

Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

O livro de Oparin já é bem antigo, e aperfeiçoamentos se fizeram necessários, principalmente por conta dos achados confirmatórios de sua hipótese. Mas como a ideia base permanece a mesma, é uma leitura bem recomendada.

OPARIN, Aleksandr. A origem da vida. São Paulo: Global, 1989.

O episódio das três mil rezas está no livro abaixo. Embora esteja um pouco extemporâneo, o mundo de Dom Camilo é bastante divertido. Sou suspeito em dizer.

GUARESCHI, Giovanni. Dom Camilo e seu Rebanho. Lisboa: Bertrand, s.d.

* Não mencionei a hipótese da panspermia cósmica, também científica, porque, no fundo, ela apenas desloca o local geográfico de onde teria surgido a vida. Há evidências da existência de microorganismos fósseis em asteroides e meteoros, além de organismos extremamente resistentes às piores condições de sobrevivência, como os tardígrados. Só que, se não foi na Terra que surgiu a vida, foi em algum outro lugar, e a questão continua. Por isso, sigo o princípio da Navalha de Ockham e entendo que, salvo novas evidências muito fortes, a hipótese mais simples deve ser a adotada inicialmente.

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