Marcadores

quinta-feira, 18 de março de 2021

Sobre o ego e o vírus, e o Pequeno guia das grandes falácias - 57º tomo: a poça d'água

 Narciso acha feio o que não é espelho

Caetano Veloso

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

#UseMascara #FiqueEmCasa #ObrigadoProfissionaisDeSaude

Recrudesceu a pandemia, e daqui da janela vejo que, de fato, o movimento está bem menor nesta rua do centro de SP. Entretanto, há uma pequena aglomeração na esquina com a Tabatinguera. Como o Sindicato dos Bancários tem oferecido almoço para o pessoal de rua, imagino se tratar de um de seus debates, e me recolho novamente à ascese do meu apartamento, para prosseguir com meu comportamento exemplar de esquerdista-comunista-globalista-do-islamismo-internacional. Acontece que, por mais que minha consciência clame pelo eremitismo involuntário, há remédios para tomar, e espero o movimento do sábado diminuir ainda mais para dar aquela corridinha à farmácia, onde metforminas e gliclazidas me aguardam para fazer as vezes de insulina. E lá vou eu para a rua com uma máscara na cara e uma ideia  na cabeça.

Pois bem, e não é que a mesma patota continua ocupando a esquina? Ah, conheço-os… é o pessoal da loja de vidros que ocupou o antigo hotelzinho de viração que funcionava no começo da rua. Eram uns vinte, todos sem máscara e enchendo o balde de cervejas de má qualidade, já há horas do lado de fora do bar, no riso alto dos bêbados que ainda se suportam em pé.

Passo o mais ao largo possível para uma dessas estreitas ruas da metrópole cinzenta, e sigo meu caminho pensando na cena. Se um único desses ébrios for portador do tal coronavírus, agora temos vinte, cada qual o levando para um bairro diferente, em seu ônibus ou vagão, para uma casa que certamente terá mais gente, alguns idosos, e assim uma desgraça se estende mais e mais e mais. Se o cretino federal só atrapalha, o oportunista estadual já está em campanha e o confuso municipal perdeu o rumo, é bem verdade que o próprio povo não ajuda. Ora (direis), e você não estava na rua também? Quem me dera que, num momento desses, todos os que estivessem nas ruas o fizessem por necessidade. Mas perdemos muito da nossa consciência social, e subo a rua pensando exatamente nisso.

Já desde o tempo das ideias liberais francesas que a noção de indivíduo começou a preponderar sobre o organismo social, provavelmente porque antes o indivíduo por excelência era o rei, enquanto os demais componentes da teia social constituíam uma grande massa informe, destinada a lhe proporcionar subsídios para o exercício do poder. Por conta disso, o individualismo tem seu lado bom, porque não só pulveriza os interesses sem uma cabeça, mas também faz com que cada um tenha uma quota de responsabilidade no todo que nos rodeia. Entretanto, a exacerbação do individualismo desmonta exatamente a rede social, na medida em que o que importa não é mais o outro ao meu lado, mas prioritariamente a mim mesmo. Se eu não tenho medo do vírus, ou se eu já tive e não passei mal é o suficiente para que eu não ligue para o colega que enche a cara comigo. Meu interesse é tão mais relevante que o do conjunto social que é como se o mesmo não existisse, e eu possa cometer qualquer tipo de leviandade para satisfazer minhas próprias vontades, pasmem, com as bênçãos da estrutura econômica de uma sociedade baseada na posse. O novo rei é o indivíduo, muito mais egoísta.

Egoísta? Será certo dizer que o novo cidadão ocidental é um egoísta? Ou seria egocêntrico, narcisista? Não é tudo isso um emaranhado de sinônimos? Não sei, vamos estudar.

Já vou informar que aqui farei uma leitura de características, e não juízos críticos sobre correntes boas ou ruins. Certos sistemas políticos e sociais são mais dados a uma perspectiva coletivista, onde o interesse comum suplanta, sem muitas contestações, as prerrogativas individuais. Dessa forma, o que acontece com o todo é mais importante do que às partes isoladas, e isso é característica ideal de regimes socialistas, marxistas ou não, de comunitarismo hippie, de tribalismo indígena e das comunidades cristãs originais, que, como se diz, “tinham tudo em comum”*. Entretanto, o sistema que tirou o mundo do Absolutismo e que o conduziu de forma razoavelmente bem sucedida (em termos econômicos e de progresso técnico) foi o Capitalismo, que se pauta pela lícita propriedade privada e na liberdade de mercado e concorrência, tudo isso bem grosso modo. Embora seja plenamente possível se falar em grupos econômicos, cada uma de suas partes se volta para seus próprios interesses, e o lucro obtido nos negócios se destina aos bolsos de pessoas, que adquirem bens e juntam recursos para si mesmos. Mesmo quando investem em suas empresas, o fazem para multiplicar resultados, que, por sua vez, majoram seus ganhos.

Esses ganhos todos não são voltados à coletividade, mas a indivíduos. O Capitalismo carrega consigo o sonho de cada pessoa de ser livre e independente, de se fazer por si só, de se destacar na multidão. Auferir rendas é o único meio eficaz de se fazer isso em um sistema onde tudo se compra e se vende, e mesmo cidadãos que não possuem meios como os maiores próceres almejam esse mesmo objetivo. Ainda que eu seja pobre, eu sei que o que é bom em nosso meio é obtido por quem está nos andares mais altos do prédio, e isso passa a ser uma meta de vida, mesmo que eu saiba que chegarei, no máximo, à sobreloja. Só que levo apenas a mim mesmo à sobreloja, e não um grupo inteiro, como minha rua, meu bairro, minha classe social. Então a estrutura do Capitalismo tende a desenvolver uma dose importante de individualismo nas pessoas. Como eu disse, esse primado do indivíduo não é ruim por si só: induz responsabilidade na construção de uma ocupação e um tipo de ambição que, no limite certo, pode ser positivo.

Ocorre que a coisa se espalha, e, al di là de uma liberdade de ação, temos a perda da noção de limite. A responsabilidade que deveria ser uma correlação de respeito mútuo se perde e o cidadão se acha absolutamente senhor de suas ações, incluindo as de ter o direito de se embebedar no meio da rua, cuspindo vírus para todos os lados. O nome disso não é individualismo. É egoísmo, mas... só?

Quando falamos na questão do ego, encontramos um pouco de dificuldades, porque há vários termos que são aparentados, mas que não são sinônimos. E corremos o risco de achar que estamos falando sobre alguma coisa quando, na verdade, estamos falando sobre outra. Egoísta, egocêntrico, ególatra, egótico, narcisista... Isso é tudo sinônimo?

Não é. Vamos ter que navegar pelos mares revoltos do ego para tentar definir nosso atual momento social. É meio chato ficar fazendo enumerações, mas não vejo outro meio de tratar do assunto sem dar escorregões nas palavras. Não é exatamente sobre isso que tratamos nos dois últimos textos (aqui e aqui)?

Vamos lá. Todo mundo convive com outras pessoas no mundo, estabelecendo uma série de relações necessárias ao convívio e à sobrevivência. Evidentemente, há um grau com o qual estabelecemos a hierarquia desses relacionamentos: a quem é dada a prioridade nessas relações, que flutua entre o eu e o outro? Seria desejável que sempre houvesse equilíbrio, porque mesmo o mais altruísta dos seres humanos precisa sobreviver, caso contrário estará cometendo alguma espécie de suicídio. Ou seja, mesmo quando reserva para si alguns miolos de pão, esse suposto santo está pensando na sua continuidade no tão judiado planetinha azul.

Se há problemas em ser altruísta, tanto pior naqueles que deslocam o foco de sua relação com o outro para muito perto de si. Esse é exatamente o estado de natureza do todos contra todos preconizado por Thomas Hobbes, como já mencionei neste texto. Ou seja, a ênfase exclusiva no ego tornaria bem mais difícil a nossa sobrevida, porque teríamos uma guerra permanente entre interesses. É por isso que existe o contrato social implícito em nossas sociedades – para que concordemos em abrir mão de algumas vantagens em prol do convívio minimamente garantido entre todos.

Mas é nesses momentos de displicência com a vida alheia que observamos essa propensão em se descartar o cuidado mútuo, o que demonstra a tendência em se pensar em si para além do ponto de equilíbrio. Quando não há alteridade na conduta humana, ou melhor dizendo, quando apresentamos uma deficiência em reconhecer que não somos isolados nem prioritários, começamos a encontrar ferrugens nas engrenagens, que podem receber diversos nomes.

Egoísmo acontece quando uma pessoa quer tudo para si, com zero de empatia pelo destino alheio, a não ser quando este sirva aos seus próprios interesses. Suas necessidades estão sempre em primeiro lugar, denotando um comportamento de certa forma infantil, até mesmo porque a atitude egoísta geralmente nasce quando damos demais ou recusamos em vão o que a criança nos pede. São os seguidores da famosa Lei de Gérson, aqueles que só querem levar vantagem em tudo.

Egocentrismo, como o próprio nome diz, é a colocação de si mesmo no centro das atenções. Não é necessário que lhe falte empatia, como acontece com o egoísta, reconhecendo a necessidade e os direitos dos outros, desde que haja prioridade para si mesmo como uma espécie de divindade, cujos conhecimentos são os maiores e as opiniões são as melhores. O egocêntrico é blindado às opiniões alheias, tão senhor que é de sua superioridade. Mas, até mesmo por uma pretensa alteridade, pode ser concessivo com o restante dos mortais, por se tratar de mais um item do seu monopólio de virtudes.

Egolatria é a adoração por si mesmo, como o próprio nome induz a pensar. O ególatra funde a necessidade de possuir do egoísta com a necessidade de liderança do egocêntrico, fundindo todos os direitos em si próprio, e muitas vezes modificando seu próprio modo de ser para se adequar à condição de “divindade”. A condição de presença nos altares é inescapável ao ególatra – do contrário, sua vida perde o sentido.

Egotismo é um termo bem mais moderno, e representa uma condição psicológica em que um sujeito tem dificuldade em alinhar motivos internos e externos para atribuir causas a seus sucessos e derrotas. A pessoa egótica, por exemplo, pensa que tudo o que acontece de bom na sua vida se dá por seus próprios méritos, enquanto as dores e fracassos ocorrem por azar, por interferência dos outros, por condições que não dependem de sua ação ou vontade. Essa assimetria ator/observador é um dos erros fundamentais de atribuição mais comuns de todos, e já tratei dele neste texto. O que há de diferente com relação ao egoísmo e ao egocentrismo é que o egótico nem sempre quer colher todos os louros sozinho, ou quer tudo para si, mas não suporta receber culpas e assumir responsabilidades pelas suas próprias ações.

Por fim, narcisismo é um fenômeno da vaidade. O narcisista coloca-se como possuidor por excelência das virtudes, como faz o egocêntrico. Entretanto, ao contrário dos demais, o narcisista convive com um peso: conseguir a aprovação de quem lhe rodeia. Ou seja, o outro é relevante para o narcísico, na medida em que ele se alimenta da aprovação desse meio. São os famosos “biscoiteiros” das redes sociais, que ficam doentes quando alguém não lhe comenta as fotos ou curte os comentários.

Então... Nossa sociedade seria individualista, egoísta, egocêntrica, ególatra, egotista ou narcisista? No meu entender, infelizmente, todas essas coisas. Não preciso nem perder muito tempo explicando e dando exemplos, mas vamos lá. O cidadão no Capitalismo tem que se fazer por si mesmo e suportar adversários que concorrem pelo mesmo espaço, gerando egoísmo. Um dos meios pelos quais se demarcam os territórios por onde um homem prepondera é a intensa publicidade, gerando egocentrismo. Os modos de ser precisam ser adaptados ao que reza o sistema, de modo a criar um primado do vencedor, gerando egolatria. Não há espaço para falhas e o fracasso é insuportável, gerando egotismo. E o termômetro do sucesso nesse meio é a aprovação e a admiração de outrem, gerando narcisismo.

Isso tudo é tão interiorizado em nossas próprias cabeças que mesmo a nossa lógica acaba sendo sensivelmente torcida, gerando linhas de pensamento altamente individualizantes. Um dos bons exemplos é a recente falácia da poça d’água, uma demonstração de que achamos que o mundo foi construído especialmente para nós, sem dimensionar o quanto de caótico é o universo, o quanto de cruel é a natureza e o quanto de imprevisível é o destino.


Mas como funciona o argumento da poça d’água? E de onde vem esse nome estranho?

Vem da mente do escritor inglês Douglas Adams, o criador da série Guia do Mochileiro das Galáxias, que mistura humor e ficção científica, adorada pelos nerds de todo o mundo. Em um dos pontos de seu último livro, O Salmão da Dúvida, ele tenta explicar como pode ter sido o surgimentos dos deuses na cultura humana. Em um momento, entende ele, passamos a ter uma perspectiva egoísta de nossa existência, como se esta fosse perfeitamente moldada para nós mesmos, e, para dar uma visão melhor do que quer dizer, cria a alegoria da poça d’água, que translitero abaixo:

“Isso é o mesmo que imaginar uma poça acordando uma bela manhã e pensando: ‘Que mundo interessante este em que eu vivo – que buraco interessante este em que eu vivo – estou muito bem-acomodada nele, não? Na verdade, me encaixo tão incrivelmente bem aqui que ele só pode ter sido feito para mim!’ Esta é uma ideia tão poderosa que, mesmo enquanto o sol vai subindo no céu e o ar ficando cada vez mais quente, e mesmo enquanto a poça vai ficando menor e menor, ela ainda se agarra desesperadamente à noção de que tudo vai ficar bem, porque este mundo foi feito para que ela existisse, foi criado com esse propósito; e então acaba sendo pega de surpresa pelo momento em que enfim desaparece”.

De fato, somente um ato de extremo egocentrismo pode nos fazer pensar que um universo de extensão imensurável, que nem sabemos se é único, e colocados em meio a uma natureza selvagem, com nosso corpo pouco apropriado ao combate, onde sobrevivemos mais porque tivemos a sorte que nosso vizinho não teve em ser devorado pelas feras, ou em que somos corroídos por vírus ou cânceres, é feito em exata medida para nós.

A falácia da poça d’água consiste exatamente em atribuir predestinação ou planejamento de entidades exteriores a eventos que derivam da natureza e do acaso. A poça d’água tem o formato que tem porque ela se adequou ao meio onde vive, porque se moldou, e não porque alguém criou um encaixe perfeito. Retirada de lá, ela se adaptará de forma diferente ao novo meio em que se encontrar: no subsolo para onde vazará, no céu para onde evaporará, ou em outra cavidade onde tomará outra forma.

Assim são também os homens. Embora queiramos forçar uma teleologia, um propósito para nossas vidas, o fato é que nada comprova que tenhamos lugares especiais no universo. E, se as coisas são como são, nada nos indica que é porque alguém do lado de fora as fez assim. São, de fato, os mecanismos adaptativos que nos desenharam ao decorrer de longos e longos anos, e mesmo que não tenha sido isso, não torna automaticamente verdadeiro outro motivo, com menos lógica e provas ainda. Nesse sentido, a poça d’água é uma espécie de apelo à ignorância, onde atribuímos obrigatoriamente a outrem (um deus, um ET, uma energia) uma causa que não tem uma explicação. Não se trata da negação da existência de deus, mas da simples argumentação de que pretensas complexidades são uma prova inequívoca de que tudo foi construído por um artífice. E mais ainda. Pode ser mais uma ferida ferida narcísica, mas não somos tão importantes quanto gostaríamos de ser. Tem um vírus aí para nos provar.

Portanto, é preciso que não sejamos egoístas, egocêntricos ou seja lá o que for. Nós temos pouco a aproveitar nessa combalida Terra de Santa Cruz, e não podemos nos colocar nos altares de nosso ego, sempre lembrando que todos aqueles que estão ao redor têm o direito de manter a saúde muito maior que o direito particular de se encher a cara. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Os nerds vão me odiar, mas eu não curti muito a série Guia do Mochileiro das Galáxias. Compreendo completamente as intenções o autor, mas talvez seu humor seja muito britânico para que eu o compreenda corretamente. Isso não quer dizer que eu o ache ruim, apenas não bateu comigo. Entretanto, segue sua indicação, naturalmente, principalmente por conta de sua referência direta.

ADAMS, Douglas. O Salmão da Dúvida. São Paulo: Arqueiro, 2014.

 * “Da multidão dos que creram, uma era a mente e um o coração. Ninguém considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas compartilhavam tudo o que tinham. Com grande poder os apóstolos continuavam a testemunhar da ressurreição do Senhor Jesus, e grandiosa graça estava sobre todos eles. Não havia pessoas necessitadas entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o colocavam aos pés dos apóstolos, que o distribuíam segundo a necessidade de cada um” At 4, 32-35.

Nenhum comentário:

Postar um comentário