Fazia um bocado de tempo que eu não dividia textos, deixando
que o tamanho falasse por si. Mas como eu exagerei na dose desta vez, achei
inviável manter doze laudas em um blog que se propõe ser pouco formal, e então
fiz a quebra.
O ideal seria ler o
tal do texto anterior, mas vou dar uma brevíssima sinopse para quem não
estiver com saco. Trata-se de um rolê que dei pelo MAB – Memorial Aeroespacial
Brasileiro, que fica em São José dos Campos, onde mais uma vez parti para as
questões da contestação da Ciência, e queria mostrar como o próprio método
científico é objeto de correções.
Eu queria apresentar, como exemplo disso, outro filósofo que
versou sobre metodologia, o húngaro radicado nos EUA Imre Lakatos, que sentiu
uma certa claudicância do método popperiano e resolveu reforçá-lo. Eu tenho
falado sobre o falsificacionismo em muitos dos meus textos, especialmente neste.
Em resumo, trata-se do princípio metodológico que diz que toda teoria
científica precisa ter a possibilidade de ser declarada falsa. Assim, se eu
disser que uma bola cairá se eu a jogar para cima, eu terei uma declaração
científica, porque eu posso fazer a experiência e constatar se ela é real ou
não. O mesmo não se aplica à afirmação de que há vida após a morte. Eu não
tenho maneiras de medir essa afirmação, e, mesmo que seja verdadeira, está fora
do âmbito da Ciência. É evidente que eu estou usando simplificações brutais
para não encavalar ainda mais este texto.
Lakatos é um falsificacionista de carteirinha. E, por isso
mesmo, entende que a sua aplicação precisa ser mais bem protegida. Ele combate
uma certa ingenuidade que está no fundo da intuição sobre a falseabilidade.
Afinal de contas, teorias absolutamente consolidadas poderiam ser inteiramente
invalidadas por uma simples experiência que lhe atacaria um aspecto periférico.
Continuando com meu exemplo idiota, uma simples bola que não cai quando eu a
arremesso não pode derrubar sozinha toda a teoria da gravidade, no pensar de
Lakatos. Mas vamos aprofundar um pouco isso tudo.
Lakatos entende que Thomas Kuhn (vide)
se equivoca com sua tese das crises que transformam teorias em novos
paradigmas. Afinal de contas, a comunidade científica, se assim procedesse,
estaria apenas surfando em novas ondas acriticamente. No entanto, a
historicidade contida na proposta do norte-americano é um princípio a ser
considerado que o falsificacionismo ingênuo não enxerga. É que Kuhn afirma que
as trocas de teorias são a própria história da ciência, enquanto Lakatos
sofistica essa visão, expandindo-a para o conceito mais amplo de programa de
pesquisa científica.
Segundo Lakatos, um programa de pesquisa científica é o
conjunto de teorias que se modificam no decorrer do tempo, de modo a constituir
um núcleo firme infalseável e por um cinturão protetor composto por hipóteses e
teorias auxiliares. Este programa, ao contrário do que o nome faz pensar, não
se trata de um conjunto específico de cientistas de uma universidade que
realiza uma determinada pesquisa através de um financiamento público ou
privado. O programa, no dizer de Lakatos, é mais difuso, e diz respeito a
pensamentos que condividem o núcleo firme, ainda que realizados por cientistas
distintos em épocas diferentes. Sendo assim, a gravidade nasce com as teses de
leviandade de Aristóteles, passa pela aceleração constante de Galileu e desemboca
na gravitação universal de Newton, tendo como núcleo firme uma assertiva que
parece simples: os corpos se atraem. Tudo o que gira em volta são os objetos
primários de contestação.
Por que Lakatos faz a divisão entre núcleo e cinturão?
Peguemos o exemplo da bola novamente. A teoria de fundo da afirmação de que a bola
arremessada cairá é a da gravidade. Quando a bola sai voando para o espaço
sideral, o ataque não é à atratividade dos corpos, mas a uma das hipóteses do
cinturão, e é sobre ela que deve recair a pesquisa da falseabilidade. Por
exemplo, a força do arremesso pode ter feito com que a linha que mantém terra e
bola atraídos tenha sido superada, como ocorre com os foguetes. Se a bola ficar
parada no ar, poderá ter atingido a órbita estacionária ao redor da terra, e
assim sucessivamente. Percebam que o problema não se encontra na teoria em si,
mas no seu critério de falseabilidade: a afirmação de que uma bola sempre irá
cair poderá ser falseada, mas não invalida toda a teoria da gravidade. E com
isso o que prova Lakatos? Que os próprios critérios de falseabilidade podem ser
falseados. Esse é o principal motivo pelo qual a teoria geral precisa ser
protegida.
Isso passa a impressão de que os núcleos duros dos programas
de pesquisa científica nunca poderão ser atingidos, o que não é verdade. Também
aqui Lakatos reforça a importância da historicidade da Ciência, porque sua
chave de evolução é a rivalidade entre os programas. Não no sentido de um pegar
o outro na porrada, evidentemente, mas de um progredir enquanto o outro
degenera. A substituição de um pelo outro se dá exatamente na medida em que um
passa a trazer mais respostas do que o outro e, principalmente, consegue um
maior número de predições corroboráveis, ou seja, descrever com maior precisão
o desenrolar de fenômenos, de modo a se obter previsões cada vez mais
confiáveis. É essencial que os diferentes programas se rivalizem – essa é a
gasolina que faz girar o motor da Ciência.
Desculpem, mas não vou resistir à tentação de tocar, como
exemplo, mais uma vez no tema da evolução.
A hipótese anterior era que as espécies eram fixas. Intuitivamente, era uma
tese ok, que parecia explicar bem ao desafio inicial da variedade das espécies,
e que somente começou a ser alvejada na medida em que não conseguia lançar
respostas a certos desafios. O que seriam os fósseis? Por que temos órgãos
vestigiais? Por que os embriões de espécies tão distintas são tão semelhantes?
Por que há uma espécie de coerência na distribuição geográfica das espécies?
Percebam que estas perguntas, confrontadas com o cinturão protetor do fixismo,
obtém respostas insatisfatórias, geralmente ad hoc (já falo melhor sobre
isso). Quando um corpus teórico concorrente surge, oferecendo melhores
explicações sobre os fenômenos observados, vai ele mesmo criando seu núcleo e
fortalecendo seu cinturão, corroendo o cinturão da teoria rival até atingir seu
núcleo duro. No caso do fixismo, temos um programa regressivo; no
evolucionismo, um programa progressivo, cujo núcleo firme é constituído pela
constatação de que as descendências se modificam, protegido pelo mecanismo de
seleção natural, de transmissão genética e tantos outros.
Mas eu falei que o programa regressivo acaba por se revestir
de declarações ad hoc para tentar se proteger. O ad hoc é um argumento
solto no ar, sem sustentação direta em evidências empíricas, como a observação
e a experimentação. E aqui caímos no campo das falácias. O programa regressivo
deixa de fazer predições e passa a se ocupar em tentar explicar as incoerências
entre seus postulados e a observação dos fatos. O programa, em determinado
ponto, somente se protege, sem trazer nada de novo. Se um fixismo tem base
criacionista, por exemplo, a descendência com modificações das bactérias é
explicada pela interveniência divina, ou os fósseis por um suposto dilúvio. Notem
que, embora a explicação possa manter certa lógica, carece de elementos mensuráveis.
Ad hoc, portanto, é uma hipótese moldada especificamente para salvaguardar uma
teoria que sofre um ataque sem conter uma explicação bem embasada. Mas eu
gostaria de dar um exemplo real.
Vamos nos reportar à briga de padres que tivemos em nome da
Ciência (!), mais especificamente na difícil questão da origem de um ser vivo.
Existia uma séria dúvida se era possível o surgimento de vida a partir da
matéria bruta, o que parecia acontecer antes dos avanços da microscopia. O
inglês John Needham, com os precários instrumentos que haviam no século XVIII,
compreendia que era impossível o surgimento de certos micróbios se não fosse
pela geração espontânea, que nada mais é do que o surgimento de um organismo
sem que se derive de outro, como se uma mosca surgisse da carne podre. Para
corroborar sua hipótese, realizou experiências com frascos contendo caldos
nutritivos e facilmente contamináveis. Aqueceu-os e eliminou todos os
microorganismos preexistentes, para, após pouco tempo, perceber o crescimento
de novos micróbios. Com base na monadologia
de Leibniz, entendia que há, no meio ambiente, uma espécie de força
vegetativa, que despertaria o processo de abiogênese. Não convencido, o padre
italiano Lazzaro Spallanzani, outro naturalista, enxergou dois defeitos na
experiência de Needham: os frascos, apesar de tapados, não estavam devidamente
vedados, o que poderia permitir a passagem de micróbios externos. Além disso, o
aquecimento foi a baixas temperaturas e por pouco tempo, o que não deve ter
eliminado adequadamente os organismos preexistentes. Spallanzani então repetiu
o experimento de Needham, porém realizando um período de fervura de uma hora
nos caldos, e com uma vedação posterior mais criteriosa. Isso fez com que a
esterilidade dos caldos se mantivesse por muito tempo.
É aqui que entra o ad hoc. Needham afirma que os
procedimentos de Spallanzani haviam sacrificado a força vegetativa dos caldos
nutritivos, seja pela alta temperatura a que foram submetidos, seja pela
ausência de oxigênio no ambiente. Desta forma, não estavam presentes todos os
elementos necessários para que o processo abiogenético fosse deflagrado.
Needham traz uma hipótese sem base experimental, fundamentada, no mais tardar, na
lógica.
O resultado foi uma divisão entre a comunidade científica,
mas a hipótese de Needham ainda era melhor aceita, porque o programa científico
que previa a abiogênese ainda era mais poderoso que a obrigatoriedade de
ascendência, e isso só teve fim com Louis Pasteur. Para não ficar com pontas
soltas, vou descrever sua experiência, que matou de vez a abiogênese. Mais uma
vez, deu-se a repetição da experiência de Needham, com a diferença de serem
utilizados frascos pescoço-de-cisne, uma espécie de balão de ensaio cujo gargalo
pode ser recurvado em “S”. Pasteur colocou diversos caldos nutritivos nos
frascos e os ferveu por bastante tempo, como fez Spallanzani, de modo a
garantir a eliminação dos microorganismos existentes nas misturas. Em seguida,
aqueceu as mangas dos recipientes, alongou-os e os curvou em S, sem nenhum tipo
de vedação. A ação é a seguinte: ao cessar a fervura dos líquidos, o ar
carregado de contaminantes começava a entrar rapidamente nos frascos. Porém, ao
chegar nos caldos, encontrava-os ainda próximos da temperatura de ebulição, o
que destruía as possíveis formas de vida. Na medida em que o conteúdo dos
frascos resfriava, a temperatura já não era suficiente para matar os micróbios,
só que o ar entrava muito menos acelerado, e os bichinhos não chegavam ao
líquido, ficando parados nas paredes do gargalo em S. Passadas algumas semanas,
sem que se pudesse constatar nenhum indício de crescimento nos caldos, Pasteur
golpeou as mangas de vidro, de forma a quebrá-las, sem, entretanto, deixar que
nenhum fragmento atingisse as misturas. Pouco tempo depois, os caldos expostos
começaram a mostrar sinais de contaminação, como se não tivessem passado por
nenhum procedimento experimental. Com isso, Pasteur provou que os caldos não
perdiam a capacidade de conter vida, e que o princípio ativo de Needham não foi
extinto por causa da fervura ou da ausência de oxigênio: ele simplesmente não
existia.
Embora as hipóteses ad hoc sejam defesas de argumentos
baseados em suposições, não são mentiras puras e simples, mas é aqui que
podemos encaixá-las como falácias. Uma hipótese deste tipo não pode ser
considerada falaciosa se não é feita com má-fé. Needham pode ter arrancado seu
argumento do princípio vital de qualquer lugar, mas provavelmente sua intenção
não era de ludibriar, mas apenas de dar sobrevida à sua ideia de geração
espontânea. Com meios eficazes, talvez fosse até possível conseguir base
científica para ele, descobrindo algum tipo de substância comum a todos os
seres vivos que fosse anulada pelo calor, embora não houvesse meios empíricos
ou matemáticos para fazê-lo naquele momento. Paul Feyerabend, entusiasta do
anarquismo epistemológico, por sinal, era um grande entusiasta das hipóteses ad
hoc honestas, e achava uma limitação irracional a jaula metodológica. Mas pode
ser que a hipótese ad hoc seja impetrada de má fé, e aí sim teremos uma falácia.
Lembremos que um argumento ad hoc é feito "sob encomenda", ou seja,
dado um conjunto específico de dados que contradizem uma tese qualquer, é
elaborado um argumento que se presta especificamente a sanar a dificuldade (ad
hoc, em latim, significa para isso). Se um determinado governante que
angaria muitos seguidores promete combater a corrupção que ele mesmo vem a
praticar, a explicação de seu séquito se dará na base do "a estrutura é
podre", "seu candidato também fazia isso", "a culpa é do
partido tal" e assim por diante.
As falácias ad hoc, como se pode
perceber, estão na medula das teorias conspiratórias. Quando se pergunta porque
a Nasa teria interesse em defender uma terra redonda que não existe, a
explicação é claramente ad hoc: para justificar seus gastos, como se uma terra
plana não comportasse despesas aeroespaciais. E essa é uma das incontáveis
explicações de porque a terra plana é uma sonora bobagem. É uma teoria que contém
muito menos explicação que a teoria do globo, mas que há gente que a defende sei
lá por que. Assim como a alguns governantes contraditórios. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Vai para Lakatos, que estendia seus entenderes filosóficos
não somente para as ciências naturais, mas também para as humanas. Foi um
grande opositor do marxismo, e entendia que se tratava de um programa altamente
regressivo. Segue a recomendação.
LAKATOS, Imre. O falseamento e a metodologia dos
programas de pesquisa científica. In: LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan. (org.)
A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1979.
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