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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A vida das metodologias científicas evolui como a própria Ciência (Pequeno guia das grandes falácias – 49º tomo: a falácia ad hoc)

Olá!


Fazia um bocado de tempo que eu não dividia textos, deixando que o tamanho falasse por si. Mas como eu exagerei na dose desta vez, achei inviável manter doze laudas em um blog que se propõe ser pouco formal, e então fiz a quebra.


O ideal seria ler o tal do texto anterior, mas vou dar uma brevíssima sinopse para quem não estiver com saco. Trata-se de um rolê que dei pelo MAB – Memorial Aeroespacial Brasileiro, que fica em São José dos Campos, onde mais uma vez parti para as questões da contestação da Ciência, e queria mostrar como o próprio método científico é objeto de correções.

Eu queria apresentar, como exemplo disso, outro filósofo que versou sobre metodologia, o húngaro radicado nos EUA Imre Lakatos, que sentiu uma certa claudicância do método popperiano e resolveu reforçá-lo. Eu tenho falado sobre o falsificacionismo em muitos dos meus textos, especialmente neste. Em resumo, trata-se do princípio metodológico que diz que toda teoria científica precisa ter a possibilidade de ser declarada falsa. Assim, se eu disser que uma bola cairá se eu a jogar para cima, eu terei uma declaração científica, porque eu posso fazer a experiência e constatar se ela é real ou não. O mesmo não se aplica à afirmação de que há vida após a morte. Eu não tenho maneiras de medir essa afirmação, e, mesmo que seja verdadeira, está fora do âmbito da Ciência. É evidente que eu estou usando simplificações brutais para não encavalar ainda mais este texto.

Lakatos é um falsificacionista de carteirinha. E, por isso mesmo, entende que a sua aplicação precisa ser mais bem protegida. Ele combate uma certa ingenuidade que está no fundo da intuição sobre a falseabilidade. Afinal de contas, teorias absolutamente consolidadas poderiam ser inteiramente invalidadas por uma simples experiência que lhe atacaria um aspecto periférico. Continuando com meu exemplo idiota, uma simples bola que não cai quando eu a arremesso não pode derrubar sozinha toda a teoria da gravidade, no pensar de Lakatos. Mas vamos aprofundar um pouco isso tudo.

Lakatos entende que Thomas Kuhn (vide) se equivoca com sua tese das crises que transformam teorias em novos paradigmas. Afinal de contas, a comunidade científica, se assim procedesse, estaria apenas surfando em novas ondas acriticamente. No entanto, a historicidade contida na proposta do norte-americano é um princípio a ser considerado que o falsificacionismo ingênuo não enxerga. É que Kuhn afirma que as trocas de teorias são a própria história da ciência, enquanto Lakatos sofistica essa visão, expandindo-a para o conceito mais amplo de programa de pesquisa científica.

Segundo Lakatos, um programa de pesquisa científica é o conjunto de teorias que se modificam no decorrer do tempo, de modo a constituir um núcleo firme infalseável e por um cinturão protetor composto por hipóteses e teorias auxiliares. Este programa, ao contrário do que o nome faz pensar, não se trata de um conjunto específico de cientistas de uma universidade que realiza uma determinada pesquisa através de um financiamento público ou privado. O programa, no dizer de Lakatos, é mais difuso, e diz respeito a pensamentos que condividem o núcleo firme, ainda que realizados por cientistas distintos em épocas diferentes. Sendo assim, a gravidade nasce com as teses de leviandade de Aristóteles, passa pela aceleração constante de Galileu e desemboca na gravitação universal de Newton, tendo como núcleo firme uma assertiva que parece simples: os corpos se atraem. Tudo o que gira em volta são os objetos primários de contestação.

Por que Lakatos faz a divisão entre núcleo e cinturão? Peguemos o exemplo da bola novamente. A teoria de fundo da afirmação de que a bola arremessada cairá é a da gravidade. Quando a bola sai voando para o espaço sideral, o ataque não é à atratividade dos corpos, mas a uma das hipóteses do cinturão, e é sobre ela que deve recair a pesquisa da falseabilidade. Por exemplo, a força do arremesso pode ter feito com que a linha que mantém terra e bola atraídos tenha sido superada, como ocorre com os foguetes. Se a bola ficar parada no ar, poderá ter atingido a órbita estacionária ao redor da terra, e assim sucessivamente. Percebam que o problema não se encontra na teoria em si, mas no seu critério de falseabilidade: a afirmação de que uma bola sempre irá cair poderá ser falseada, mas não invalida toda a teoria da gravidade. E com isso o que prova Lakatos? Que os próprios critérios de falseabilidade podem ser falseados. Esse é o principal motivo pelo qual a teoria geral precisa ser protegida.

Isso passa a impressão de que os núcleos duros dos programas de pesquisa científica nunca poderão ser atingidos, o que não é verdade. Também aqui Lakatos reforça a importância da historicidade da Ciência, porque sua chave de evolução é a rivalidade entre os programas. Não no sentido de um pegar o outro na porrada, evidentemente, mas de um progredir enquanto o outro degenera. A substituição de um pelo outro se dá exatamente na medida em que um passa a trazer mais respostas do que o outro e, principalmente, consegue um maior número de predições corroboráveis, ou seja, descrever com maior precisão o desenrolar de fenômenos, de modo a se obter previsões cada vez mais confiáveis. É essencial que os diferentes programas se rivalizem – essa é a gasolina que faz girar o motor da Ciência.

Desculpem, mas não vou resistir à tentação de tocar, como exemplo, mais uma vez no tema da evolução. A hipótese anterior era que as espécies eram fixas. Intuitivamente, era uma tese ok, que parecia explicar bem ao desafio inicial da variedade das espécies, e que somente começou a ser alvejada na medida em que não conseguia lançar respostas a certos desafios. O que seriam os fósseis? Por que temos órgãos vestigiais? Por que os embriões de espécies tão distintas são tão semelhantes? Por que há uma espécie de coerência na distribuição geográfica das espécies? Percebam que estas perguntas, confrontadas com o cinturão protetor do fixismo, obtém respostas insatisfatórias, geralmente ad hoc (já falo melhor sobre isso). Quando um corpus teórico concorrente surge, oferecendo melhores explicações sobre os fenômenos observados, vai ele mesmo criando seu núcleo e fortalecendo seu cinturão, corroendo o cinturão da teoria rival até atingir seu núcleo duro. No caso do fixismo, temos um programa regressivo; no evolucionismo, um programa progressivo, cujo núcleo firme é constituído pela constatação de que as descendências se modificam, protegido pelo mecanismo de seleção natural, de transmissão genética e tantos outros.

Mas eu falei que o programa regressivo acaba por se revestir de declarações ad hoc para tentar se proteger. O ad hoc é um argumento solto no ar, sem sustentação direta em evidências empíricas, como a observação e a experimentação. E aqui caímos no campo das falácias. O programa regressivo deixa de fazer predições e passa a se ocupar em tentar explicar as incoerências entre seus postulados e a observação dos fatos. O programa, em determinado ponto, somente se protege, sem trazer nada de novo. Se um fixismo tem base criacionista, por exemplo, a descendência com modificações das bactérias é explicada pela interveniência divina, ou os fósseis por um suposto dilúvio. Notem que, embora a explicação possa manter certa lógica, carece de elementos mensuráveis. Ad hoc, portanto, é uma hipótese moldada especificamente para salvaguardar uma teoria que sofre um ataque sem conter uma explicação bem embasada. Mas eu gostaria de dar um exemplo real.

Vamos nos reportar à briga de padres que tivemos em nome da Ciência (!), mais especificamente na difícil questão da origem de um ser vivo. Existia uma séria dúvida se era possível o surgimento de vida a partir da matéria bruta, o que parecia acontecer antes dos avanços da microscopia. O inglês John Needham, com os precários instrumentos que haviam no século XVIII, compreendia que era impossível o surgimento de certos micróbios se não fosse pela geração espontânea, que nada mais é do que o surgimento de um organismo sem que se derive de outro, como se uma mosca surgisse da carne podre. Para corroborar sua hipótese, realizou experiências com frascos contendo caldos nutritivos e facilmente contamináveis. Aqueceu-os e eliminou todos os microorganismos preexistentes, para, após pouco tempo, perceber o crescimento de novos micróbios. Com base na monadologia de Leibniz, entendia que há, no meio ambiente, uma espécie de força vegetativa, que despertaria o processo de abiogênese. Não convencido, o padre italiano Lazzaro Spallanzani, outro naturalista, enxergou dois defeitos na experiência de Needham: os frascos, apesar de tapados, não estavam devidamente vedados, o que poderia permitir a passagem de micróbios externos. Além disso, o aquecimento foi a baixas temperaturas e por pouco tempo, o que não deve ter eliminado adequadamente os organismos preexistentes. Spallanzani então repetiu o experimento de Needham, porém realizando um período de fervura de uma hora nos caldos, e com uma vedação posterior mais criteriosa. Isso fez com que a esterilidade dos caldos se mantivesse por muito tempo.

É aqui que entra o ad hoc. Needham afirma que os procedimentos de Spallanzani haviam sacrificado a força vegetativa dos caldos nutritivos, seja pela alta temperatura a que foram submetidos, seja pela ausência de oxigênio no ambiente. Desta forma, não estavam presentes todos os elementos necessários para que o processo abiogenético fosse deflagrado. Needham traz uma hipótese sem base experimental, fundamentada, no mais tardar, na lógica.

O resultado foi uma divisão entre a comunidade científica, mas a hipótese de Needham ainda era melhor aceita, porque o programa científico que previa a abiogênese ainda era mais poderoso que a obrigatoriedade de ascendência, e isso só teve fim com Louis Pasteur. Para não ficar com pontas soltas, vou descrever sua experiência, que matou de vez a abiogênese. Mais uma vez, deu-se a repetição da experiência de Needham, com a diferença de serem utilizados frascos pescoço-de-cisne, uma espécie de balão de ensaio cujo gargalo pode ser recurvado em “S”. Pasteur colocou diversos caldos nutritivos nos frascos e os ferveu por bastante tempo, como fez Spallanzani, de modo a garantir a eliminação dos microorganismos existentes nas misturas. Em seguida, aqueceu as mangas dos recipientes, alongou-os e os curvou em S, sem nenhum tipo de vedação. A ação é a seguinte: ao cessar a fervura dos líquidos, o ar carregado de contaminantes começava a entrar rapidamente nos frascos. Porém, ao chegar nos caldos, encontrava-os ainda próximos da temperatura de ebulição, o que destruía as possíveis formas de vida. Na medida em que o conteúdo dos frascos resfriava, a temperatura já não era suficiente para matar os micróbios, só que o ar entrava muito menos acelerado, e os bichinhos não chegavam ao líquido, ficando parados nas paredes do gargalo em S. Passadas algumas semanas, sem que se pudesse constatar nenhum indício de crescimento nos caldos, Pasteur golpeou as mangas de vidro, de forma a quebrá-las, sem, entretanto, deixar que nenhum fragmento atingisse as misturas. Pouco tempo depois, os caldos expostos começaram a mostrar sinais de contaminação, como se não tivessem passado por nenhum procedimento experimental. Com isso, Pasteur provou que os caldos não perdiam a capacidade de conter vida, e que o princípio ativo de Needham não foi extinto por causa da fervura ou da ausência de oxigênio: ele simplesmente não existia.

Embora as hipóteses ad hoc sejam defesas de argumentos baseados em suposições, não são mentiras puras e simples, mas é aqui que podemos encaixá-las como falácias. Uma hipótese deste tipo não pode ser considerada falaciosa se não é feita com má-fé. Needham pode ter arrancado seu argumento do princípio vital de qualquer lugar, mas provavelmente sua intenção não era de ludibriar, mas apenas de dar sobrevida à sua ideia de geração espontânea. Com meios eficazes, talvez fosse até possível conseguir base científica para ele, descobrindo algum tipo de substância comum a todos os seres vivos que fosse anulada pelo calor, embora não houvesse meios empíricos ou matemáticos para fazê-lo naquele momento. Paul Feyerabend, entusiasta do anarquismo epistemológico, por sinal, era um grande entusiasta das hipóteses ad hoc honestas, e achava uma limitação irracional a jaula metodológica. Mas pode ser que a hipótese ad hoc seja impetrada de má fé, e aí sim teremos uma falácia. Lembremos que um argumento ad hoc é feito "sob encomenda", ou seja, dado um conjunto específico de dados que contradizem uma tese qualquer, é elaborado um argumento que se presta especificamente a sanar a dificuldade (ad hoc, em latim, significa para isso). Se um determinado governante que angaria muitos seguidores promete combater a corrupção que ele mesmo vem a praticar, a explicação de seu séquito se dará na base do "a estrutura é podre", "seu candidato também fazia isso", "a culpa é do partido tal" e assim por diante. 

As falácias ad hoc, como se pode perceber, estão na medula das teorias conspiratórias. Quando se pergunta porque a Nasa teria interesse em defender uma terra redonda que não existe, a explicação é claramente ad hoc: para justificar seus gastos, como se uma terra plana não comportasse despesas aeroespaciais. E essa é uma das incontáveis explicações de porque a terra plana é uma sonora bobagem. É uma teoria que contém muito menos explicação que a teoria do globo, mas que há gente que a defende sei lá por que. Assim como a alguns governantes contraditórios. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Vai para Lakatos, que estendia seus entenderes filosóficos não somente para as ciências naturais, mas também para as humanas. Foi um grande opositor do marxismo, e entendia que se tratava de um programa altamente regressivo. Segue a recomendação.

LAKATOS, Imre. O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica. In: LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan. (org.) A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1979.

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