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terça-feira, 6 de abril de 2021

Evolução: o que ela é e o que ela não é

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Existe uma série de conceitos científicos que gera confusão na cabeça das pessoas. O motivo é bem simples: não é tudo que pode ser reduzido a explicações de poucas palavras, e muita coisa, inclusive, precisa ser demonstrada por contas ou longos encadeamentos lógicos. Então tem gente que se declara incompetente e prefere apenas ouvir e aceitar. Ou não.

É que têm algumas conclusões científicas que acabam por mexer com as convicções mais caras às pessoas, muitas vezes sem necessidade, e por conta disso a Ciência toma ares de vilania, ou até mesmo de uma certa arrogância. Mas o fato é que cientistas trabalham com evidências, que se contrapõem a explicações construídas na base da especulação ou da crença.

Uma das teorias mais difíceis de passar pela garganta dessas pessoas é aquela que recebe o nome de Evolução, que já tive a oportunidade de tratar por aqui. O confronto é aberto principalmente porque seres modificados indicariam uma suposta imperfeição do deus-criador, seja qual for a fé, o que é inadmissível para os crentes. Acontece que o conceito de perfeição pode adquirir uma plasticidade infinita, de acordo com as necessidades de adaptação da narrativa. E a briga acaba se tornando um certame de razão versus emoção. Isso porque a Ciência toma o lado da racionalidade e a Religião, do sentimento. Isso é problemático, cada um por seu motivo. Por um lado, a racionalidade é chata, difícil de lidar e desconfortável de engolir. Trabalhos como Cosmos, de Carl Sagan (reeditado com maestria por Neil deGrasse Tyson) procuram preencher a lacuna com a ênfase na beleza do universo e a maravilha das dimensões e das transformações, trazendo uma pitada de emocionalismo ao tema, o que serve como uma espécie de cola. Por outro lado, as religiões (e não só elas) tentam dar coerência interna à narrativa de criação e algum vínculo científico à hipótese da criação, mais na base do apelo à ignorância, com meu pedido de perdão aos aderentes à causa, porque eu não quero discussões.

O fato é que dificilmente conseguiremos extrair conhecimento de posições antagônicas. Basta que se veja que é raro saber quais dos filhos começou a briga, e acabamos por aplicar corretivos nos dois. Vou então passar a responder algumas perguntas comuns sobre a Teoria da Evolução, evidentemente pelo viés que acredito, mas sem esquecer da minha experiência religiosa, e sempre lembrando que minha área é a Filosofia, e não a Ciência. Portanto, vou me apegar muito pouco às evidências puramente científicas, como fósseis, anatomia comparada, convergências evolutivas, bioquímica molecular, homologias e analogias, biogeografia, órgãos vestigiais, embriologia, genética e outras, embora eu vá esbarrar vez por outra nos indicativos biológicos. Minha área é outra, e eu vou tentar falar sobre a evolução filosoficamente. O começo é o de sempre: dizer o que a evolução é, para depois dissertar sobre o que ela não é. Vamos nessa.

A evolução nos faz pensar imediatamente em Darwin, mas a ideia não nasce com ele, nem é só dele. Evolução, na verdade, nem é um termo tão correto, porque dá uma ideia de direção para melhorias, o que nem sempre é verdade*. Uma descrição melhor seria descendência com modificações, que já havia sido pensada por Lamarck (leia aqui). De uma geração para outra, minúsculas modificações fariam com que a espécie fosse se tornando cada vez mais bem adaptada ao ambiente onde vive, até o ponto em que o acúmulo dessas modificações originasse espécies novas, distintas umas das outras.

O que é seleção natural?

Seleção natural é o "motorzinho" do processo de evolução das espécies. Vamos fazer uma comparação: já perceberam que sempre aparecem novas raças de cães, de vacas, de frangos? Isso acontece porque os homens selecionam aqueles que atendem melhor ao critério desejado: porte, quantidade de leite, tamanho das coxas. Cruzando indivíduos privilegiados em cada um desses aspectos, a tendência é que seus filhotes mantenham e transmitam os caracteres vantajosos. Na seleção natural, acontece a mesma coisa, sem, no entanto, que ocorra intervenção consciente durante o processo. Neste caso, o seletor é o próprio ambiente, e não um ser humano com intenção, e é dado por fatores físicos, climáticos, geográficos, populacionais e outros.

O que é pressão evolutiva?

É qualquer fator que faça com que indivíduos sejam selecionados. Forçando um pouco a barra, seria uma espécie de vestibular da própria vida. Imagine você criança com sua tropa de amigos. Evidentemente, havia um maior e outro menor. Se vocês precisassem fugir da renca da rua de cima, o mais alto teria mais facilidade para pular um muro, e o menorzinho talvez conseguisse passar por baixo de um portão. Nesse exemplo banal, os dois estariam melhor adaptados para resistir a um fator de perigo, os paus e pedras dos malvados rivais, que sobrariam para os mais frágeis nessa relação: os mais lentos, os mais pesados, os menos atentos. Essa ameaça à preservação da vida é o que se chama de pressão seletiva. Podem ser inúmeras: alterações na temperatura, no regime hídrico, as variações alimentares, o crescimento de outras espécies, e assim por diante. A suposição do meteoro que caiu na península de Yucatán, no México, é uma bela amostra de desencadeador de pressões seletivas. Inicialmente, a queda teria feito surgir uma grande nuvem de poeira que, a princípio, produziu aquecimento pelo efeito estufa, já matando um monte de bicho. Posteriormente, a temperatura global decaiu porque a luz solar estava retida. Isso levou uma montanha de espécies à extinção, incluindo as diferentes formas de dinossauros de grande porte.

A evolução acontece como um acaso?

Esse é provavelmente o maior engano que ocorre com relação à evolução. Se a teoria dissesse que as modificações são meros acasos, eu mesmo não colocaria confiança nela. Em algum lugar, li que a evolução seria como se arremessássemos um monte de tintas em uma tela e surgisse a Mona Lisa à nossa frente. Não, não é assim que funciona.

Vamos colocar algum daqueles dilemas éticos de araque para ver se consigo me fazer entender. Imagine que você tem dez cachorros na sua casa, de todos os tamanhos possíveis, e que você os sustenta a contento. Só que você fica desempregado e precisa bolar um jeito de lhes proporcionar comida. Caso divida o alimento proporcionalmente ao peso de cada um dos bichos, este será insuficiente para todo mundo. Você terá duas possibilidades para manter alguns vivos então: dividir o alimento disponível em parcelas iguais ou colocar a comida que há e deixar o pau quebrar.

Se você usar a primeira opção, os cachorros maiores sucumbirão, porque eles precisam de mais alimentos do que os pequenos. Quando uns três ou quatro deles morrerem, teremos alimentos suficientes para todos os restantes. Estando seu quadro financeiro estabilizado, a prole que se reproduzir carregará a genética dos cães menores, e o seu bioma canino será menor em peso e estatura que o anterior.

Por outro lado, a segunda alternativa favorecerá os cachorros maiores, que impedirão os menores de se alimentar. Teremos seis ou sete baixas, também até o habitat favorecer a manutenção dos três ou quatro grandalhões. Novamente recomposto o bolso, a liberação da festinha fará com que a prole seja potencialmente mais alta do que a média anterior.

Percebam que o único fator de acaso presente nessa pantomima toda é o seu desemprego, que gera uma pressão seletiva pela distribuição do alimento disponível. Nada mais, daqui por diante, se dá por fruto do destino, mas da seleção dos mais aptos: os menores quando há pouco alimento, os maiores quando há necessidade de força física.

E até mesmo aqui é preciso se perguntar o que é o acaso. Os japoneses vivem se preparando para os terremotos que são frequentes em sua terra. Fazem isso porque empiricamente notam que, de tempos em tempos, há chacoalhões mais fortes em seu subsolo. Portanto, um terremoto no Japão não é um acaso, e se tornaria ainda menos ocasional se houvesse tecnologia suficiente para prever quando os sismos ocorrerão. Ou seja, terremotos no Japão não são frutos do acaso, e, no mais tardar, contingencial é somente a data em que eles ocorrem.

Se as mutações são prejudiciais, por que são importantes na evolução?

Mutações não são aquilo que lemos nos gibis da Marvel. Deixemos isso para nossa suspensão da descrença. De fato, as mutações podem fazer com que haja incompatibilidade entre um organismo modificado e a vida. A grande maioria dos casos já faz com que o indivíduo pereça ainda em estágios embrionários. Por essa razão, apenas modificações pequenas e graduais, que estabeleçam vantagens igualmente pequenas e graduais podem ser acumuladas pelo processo de seleção. Uma semente que resista a uma semana a mais de seca que as sementes padrão, porque uma mutação a nível celular lhe permite maior tempo sem umidade, é um exemplo banal de mutação benéfica.

Os macacos ainda chegarão a ser humanos?

Desde os tempos do velho Aristóteles, acreditava-se que tudo tinha uma teleologia, ou seja, uma finalidade. Por conta disso, sendo o homem o ápice da criação, poderíamos entender que a humanidade é o objetivo para onde todas as demais espécies apontam. Isso nos daria a falsa ideia de que um belo dia tudo seria humanidade, não é mesmo? Já agora a ideia parece um pouco mais absurda.

Mas os seres tem um propósito que poderíamos chamar de teleológico: sobrevivência. E, sim, a preservação das espécies, por tabela, também é uma finalidade. As estratégias de sobrevivência (inconscientes) não podem ser vistas apenas como uma prerrogativa dos indivíduos, mas de todo o conjunto daquela espécie. A busca pela sobrevivência inclui mudanças de alimentação, migração geográfica e tantas outras tentativas, e novamente os mais bem adaptados terão melhores oportunidades de se manter vivos.

Ocorre que o surgimento de uma nova espécie não representa o fim obrigatório da espécie da qual a mesma é oriunda. Estudos demonstram que as sanguessugas se originaram das minhocas, e ambas ainda vivem muito bem, obrigado. Isso significa que não é necessário o desaparecimento de uma espécie para o surgimento de outra.

Entretanto, estamos falando em milhares e milhões de anos. As espécies atuais de primatas possuem um ascendente comum que nunca foi localizado, mas que se encontra extinto. As espécies existentes de macacos darão origem a novas espécies, que não serão “evoluções” rumo ao homem, ele também um macaco (leia mais aqui para desfazer confusões). O ser humano não é o aperfeiçoamento máximo de todas as espécies. Pensem apenas no que seria um cataclisma climático – provavelmente só restarão insetos no planetinha, se muito.

A evolução exclui um deus?

Não. Percebam que as doutrinas já colocavam um deus como criador sem necessidade de provas, então continua sem necessidade de provas que Deus seja o responsável pelos movimentos da evolução. É perfeitamente aceitável a especulação de que haja uma divindade por trás do surgimento de novas espécies, e que a seleção natural seja apenas um artifício pelo qual esse deus gera as transformações das espécies. Só não há como provar isso.

Então porque há tantas vertentes religiosas que se contrapõe à evolução?

Porque elas são fixistas, ou seja, preconizam que as espécies tenham sido criadas exatamente como se apresentam contemporaneamente. Não admitem que a criação não tenha sido absolutamente perfeita e, principalmente, que os textos sagrados não tenham sido seguidos ipsis litteris.

Não há que se falar em perfeição. Aquele lago lindo alimentado por uma cachoeira deslumbrante é uma paisagem perfeita no atacado, mas um ecossistema que inclui predação e violência no varejo. E mais ainda: as coisas não funcionam tão redondinhas, como na projeção de um engenheiro. O máximo que podemos pensar é em sofisticação. Abaixe seu dedo mindinho e veja o que acontece com o anular. Ele nem encolhe junto, nem se mantém ereto, ficando a meio caminho, o que mais atrapalha do que ajuda. Não dá pra dizer que isso é perfeito. Mas a mão humana continua sendo sofisticadamente funcional, mesmo com a limitação mencionada.

E quanto às estruturas complexas existentes nos corpos?

Embora os corpos não sejam perfeições absolutas, há certos níveis de sofisticação tão altos que parece absolutamente impossível que tenham surgido sem nenhum impulso inteligente. De fato, quando eu penso em mecanismos como o sistema imunológico, fico meio bolado. Como isso pode ter sido formado sem nenhum dedinho mágico, nenhuma intervenção divina?

Neste momento, eu lembro que sou humano, e, como tal, tenho imperfeições que contrapõem a questão da complexidade. Uma dessas imperfeições é um problema cognitivo, conhecido como descontinuidade mental. Pode parecer incrível que um organismo tenha a capacidade de se defender de micro-organismos, mas minha pobre cabecinha de parcos 86 bilhões de neurônios não consegue visualizar um tempo tão longo, nem mudanças tão lentas. Por esse motivo, sempre terei a impressão de que uma estrutura complexa não teria condições de ser construída sem uma intervenção. Aliás, isso é meia-verdade, porque existe intervenção externa: a do meio-ambiente.

A evolução explica o surgimento da vida?

Não. A evolução é muito mais simples do que isso. Ela apenas explica o que está por trás do surgimento de novas espécies. O surgimento da vida tem hipóteses muito menos corroboradas que a evolução, que ainda vagam mais pelo campo especulativo do que pelo experimental. A própria evolução pode ser observada agora mesmo, quando muitas variantes do coronavírus pululam pelo mundo, adaptando-se a circunstâncias locais e melhorando suas capacidades de nos encher o saco.

Isso não significa que não existam hipóteses para o surgimento da vida e que não possa existir uma divindade por trás da coisa toda. A única coisa é que, mais uma vez, a presença de um deus não poderá ser provada pela Ciência, que interromperá seu estudo quando chegar aos limites de seu método. Tudo o que vier depois disso, será Filosofia ou crença.

Por que dizem que a segunda lei da termodinâmica impossibilita a evolução?

Esse questionamento me obrigou a dar uma estudada em Física. Segundo diz este princípio, um sistema fechado caminha para a entropia, não o contrário. Entropia, no caso, é um termo técnico que significa multiplicidade de estados, o que é, muito mal comparando, uma espécie de “bagunça”. É com base nesse princípio que um cigarro fumado vira cinza, e não tem como voltar a ser cigarro**.  Para que um sistema não se desorganize, é necessário um dispêndio de energia, provindo de uma fonte externa. Como a evolução, em tese, constituiria estruturas mais complexas que as originais (os primeiros organismos seriam unicelulares), a lei da entropia a tornaria impossível.

Juro para vocês que eu entendi muito melhor o motivo pelo qual a entropia não atrapalha em nada a evolução do que o contrário. O que os defensores dessa ideia esquecem facilmente é que o Sol está aí a brilhar, animando nossos verões e propiciando energia a beça ao instituto chamado vida. Além disso, os organismos se alimentam, pois não? E, principalmente, a vida NÃO É um sistema fechado, justamente porque tem fontes externas de energia e se retroalimenta.

Na verdade, o uso deste argumento se fundamenta, mais que no desconhecimento, na vontade de tornar mais científica e complexa uma contraproposta à ideia da Teoria da Evolução.

Que história é essa de que a evolução segue um algoritmo?

Um algoritmo é uma sequência lógica de passos. É um termo que ficou famoso no mundo da informática, porque qualquer programa de computador nada mais é do que isso. Essa mesma lógica pode ser aplicada à evolução porque também ela funciona sempre da mesma maneira. Defrontada com um problema (a pressão seletiva), a evolução sempre tenderá em priorizar o organismo melhor adaptado. Se o sobrevivente não é o mais capacitado, pode ver direitinho que houve outro fator preponderando sobre a regra esperada, e o erro está nela, e não no algoritmo.

Por outro lado, os algoritmos computacionais têm sido construídos de modo a imitar a evolução biológica, justamente porque esta consegue resolver seus problemas sem a necessidade de sistemas externos. Uma das aplicações mais visíveis nos dias de hoje são os mecanismos de aprendizado de máquina, quando o algoritmo decifra qual dado melhor se adapta às respostas necessárias para a solução de um problema. É um tema ao qual voltarei, certamente.

Mas a evolução não é só uma teoria? Não há hipóteses concorrentes? As ideias criacionistas não são igualmente válidas?

Três nãos. Para o primeiro, recomendo a leitura deste texto, que já está completinho e me dispensa de reescrever. No segundo e no terceiro, falo de dentro do âmbito científico. A Evolução é uma teoria consolidada na academia e o máximo que existe são caminhos que já a consideram como um fato. E, por fim, criacionismos não seguem critérios científicos, punto e finito. Isso não é demérito algum, só há um erro de atribuição, como pode ser lido aqui. A não ser que a validade em tela seja filosófica. Aí, são outros quinhentos.

Por aqui já está bom. Percebam que não usei o termo “deus” com letra maiúscula porque não estou me dirigindo diretamente ao Deus cristão, mas a qualquer divindade, embora tenhamos uma tendência natural em pensar nessa religião ao nos confrontar com o problema da evolução. E também, como já disse, não quero arrumar briga com ninguém, apenas dar minha dose de esclarecimento a um tema que gera bastante controvérsia. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Ora (direis), se você fica cheio de dedos em dizer que não é biólogo e tal e coisa, por que não aponta simplesmente uma bibliografia e vai descansar? Pelo motivo que mencionei no começo: não há só Ciência por trás da Teoria da Evolução, mas Filosofia também. Para tudo o mais, recomendo o livro abaixo, facílimo de ler.

PEDROSA, Paulo (Pirulla); LOPES, Reinaldo J. Darwin sem Frescura. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2019.

* O parto dos seres humanos é um belo exemplo de como uma aparente desvantagem representou uma salvaguarda para a espécie. Ao contrário de outros mamíferos placentários, que já nascem mais desenvolvidos, o ser humano vem ao mundo prematuro, com grande grau de dependência com relação aos pais, o que, aparentemente, representaria uma desvantagem seletiva. Entretanto, esse foi o rumo que a evolução tomou para que a estrutura corporal das mulheres permitisse um parto, justamente porque esse tamanho menor torna possível a passagem do nascituro sem causar grandes prejuízos.

** É um exemplo meramente ilustrativo, bem distante da realidade física. Mas se eu for me aprofundar, não tenho conhecimento suficiente e vou alongar demais o texto, inutilmente.

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