Olá!
Estava lá. Um pedaço de fita isolante na manopla do carrinho
de feira, já se desprendendo e deixando os vãos dos dedos grudentos.
Inicialmente, pensou-se em algum reparo à brasileira, o tal jeitinho – uma
ferpa que machucasse, um parafuso meio solto, um material escorregadio, sei lá.
O fato é que, uma vez extraída, todas essas teses foram derrubadas. A fita não
deixou nenhum vestígio de seu propósito, a não ser mais e mais adesivo
gosmento.
É incrível, mas isso gerou debate quente em casa. O mistério
sherlockiano: quem colocou a fita no carrinho e para quê? Consenso geral: “eu
não”. Passa-se a especular alternativas. Eu sugeri alguma molecagem do Saci.
Reputaram-se outras hipóteses, como alienígenas, maldições ou milagres. Vai-se
saber os desígnios de Deus... No final das contas, não se chegou a conclusão
alguma, restando apenas uma aura de desconfiança entre todos na casa.
Será este um episódio que demonstra nossa sanha em achar um
culpado para tudo? De certa forma sim, muito embora o motivo real deva ser uma
besteira qualquer, e que não causou maiores danos. Mas a verdade é que somos,
antes de tudo, seres curiosos. Sempre prontos a tentar dar explicações para
tudo, não nos conformamos quando há algum buraco em nosso conhecimento, e
facilmente preenchemo-lo com alguma explicação colhida do nada. É o princípio
geral do Deus das Lacunas, falácia informal que já abordei nesta casa.
Só que nem toda tentativa de explicar fenômenos que não
compreendemos bem pode cair nessa pecha. Toda hipótese científica nasce de uma
especulação, que vai ganhando força na medida em que seus rumos vão obtendo
comprovações.
Mas vamos com cuidado. Enquanto o Deus das Lacunas procura
uma explicação de qualquer natureza para os lapsos do conhecimento, em especial
de ordem divina ou mágica, outros métodos procuram a racionalização das
questões, e, normalmente, este é o caminho que a Ciência segue. Como as
metodologias de investigação científica são muito rigorosas, há uma tendência
em se dar um bom nível de credibilidade aos seus corolários. Mas, como eu disse
aqui, antes de ser Ciência, uma hipótese é Filosofia, ou seja, nasce da
especulação amarrada pela lógica. Em outras palavras, um novo conhecimento
nasce de uma ideia que alguém teve, antes de ser comprovado. É óbvio que, do
meio de tantas investigações, brotem conclusões inesperadas, como o clássico
caso do pesquisador de micro-ondas que descobriu, largando seu sanduíche em
lugar errado, que estas servem para aquecer alimentos, mas mesmo aqui foi
necessário pesquisa para descobrir o porquê e retirar o fato do campo
claudicante dos milagres.
Aqui, temos um ponto de bifurcação perigoso. Podemos ir para
o lado do método, que desenvolve uma hipótese até o ponto onde ela pode ser
testada com os mecanismos atuais, e, daí para frente, restando aguardar meios
para prosseguir com a pesquisa, até que se fixe como teoria ou seja descartada.
Ou podemos caminhar até um momento em que a hipótese não tenha como ser
testada, não pelo fato de não haver ainda tecnologia disponível para fazê-lo, mas
por se recorrer a instâncias não materiais para dar lógica à mesma. O primeiro
caminho é a protociência; o segundo, a pseudociência*. E nem sempre são fáceis
de distinguir.
Para estabelecer bem a distinção entre ambas, vou dar um
exemplo de cada, já tendo em mente o princípio da falseabilidade, de quem já produzi meus pitacos. Comecemos pela protociência, usando, para tanto, a teoria das
cordas, de maneira extremamente sucinta.
Desde Lêucipo e Demócrito (vejam informações neste texto),
o homem indaga pelas estruturas fundamentais que compõem os corpos – os átomos.
Grosso modo, neste momento tínhamos unicamente o palpite de que tudo era feito
por partículas mínimas, baseados na observação de que um objeto qualquer podia
ser pulverizado em partes cada vez menores. A partir de Dalton, o átomo foi
retomado e estudado cada vez com mais acuidade. Daí, descobriu-se que o átomo
tinha carga elétrica, através dos desvios produzidos pelas placas eletricamente
carregadas em tubos de raios catódicos; que tinha partículas subabtômicas, que
não era um contínuo maciço, e que tinha um núcleo e uma eletrosfera, por
experiências de radiação através de folhas de ouro; que tinha partículas
neutras, sem as quais não seria possível haver estabilidade em núcleos de carga
positiva; que mesmo essas partículas subatômicas eram compostas por outras
ainda menores, como os quarks. A descoberta mais recente de todas é o bóson de
Higgs, apelidada carinhosamente de “partícula de Deus”, e que foi obtida a
partir de um enorme e sofisticadíssimo aparelho chamado de colisor, que visa
acelerar partículas a velocidades próximas à da luz, até que as mesmas se
choquem e liberem enormes quantidades de energia.
Tudo isso vem sendo demonstrado experimentalmente, mas um
próximo passo vem sendo tentado, e é muito ousado, já que unificaria a teoria
atômica com a teoria das forças**, e, em um limite mais extremo, unir
relatividade e mecânica quântica. Segundo a hipótese das cordas, as partículas elementares
do átomo não seriam uma espécie de “pedrinhas” fundamentais, ou seja, uma forma
de matéria extremamente reduzida, mas sim um filamento de energia que vibraria
incessantemente em qualquer direção, e que assumiria também qualquer formato,
como se fosse um elástico daqueles de enfeixar dinheiro. Desta forma, toda
matéria que existe é, na verdade, energia. Tudo é energia. Se essa hipótese for
comprovada, não só serão resolvidos problemas da teoria atômica, como a dupla
natureza onda-partícula da luz, mas também as energias gravitacional,
eletromagnética e nuclear serão definitivamente reconhecidas como uma só,
diferindo unicamente em seus aspectos. Sensacional!
Só que a teoria das cordas ainda não a é de fato no sentido
formal da palavra. Recebe este nome mais por uma questão de absorção do público
geral do que por haver se consolidado de vez. E ela não se tornará uma teoria
definitiva enquanto não puder ser demonstrada experimentalmente ou, melhor
ainda, não puder ser falseada, ainda que tenha bom suporte de modelos
matemáticos e coerência na sua construção. Será uma hipótese e comporá uma
protociência até conseguir atingir os requisitos necessários à sua subida de
degrau. A academia científica costuma ser muito rigorosa com essas coisas.
Agora vamos para a outra vertente. Poderia usar como exemplo
a homeopatia, a astrologia, a frenologia ou o biorritmo, mas vou partir para um
caso em que tive um testemunho pessoal: a radiestesia, e mais especificamente a
rabdomancia, técnica para localizar pontos exatos para perfurar poços. Senta,
que lá vem história...
Nos anos 90, trabalhei em uma fábrica de suturas. Para quem
não sabe, certas suturas precisam ser absorvidas pelo organismo, e, para tanto,
são fabricadas com material orgânico. O mais comum deles é a serosa de tripa de
boi, conhecida por categute, que precisa ser lavada e relavada para ficar
adequada à manufatura, para extração do sal que a conserva e das sujeiras
óbvias que lhe acompanham, além da aplicação de outros banhos químicos para
amaciamento, colagenação, cromação e outros processos. Cheira mal, viu?
Isso tudo gera uma enorme demanda de água, que, extraída da
torneira da Sabesp, custa uma nota preta. Acontece que a empresa tinha os
fundos de seu terreno desocupados, e ocorreu de algum filósofo pronunciar da
porta de um botequim que deveria haver água naquele subsolo. Como não parecia
má ideia, contrataram uma empresa de prospecção para fazer as pesquisas
necessárias.
O caso caiu no meu esquecimento até que, dia desses, vi meu
colega Bira observando os tais fundos do terreno, mãos para trás e leve sorriso
de ironia. Percebendo minha passagem, fez um sinal para que me aproximasse.
Disse em tom sarcástico: “Vem ver o levantamento do terreno que estão fazendo
para o poço”.
O Bira não era exatamente chegado a uma gracinha. Seu
trabalho consistia em cobrar devedores insolventes, o que incluía hospitais e
santas-casas em petição de miséria, além de pilantras abundantes na área em
questão. Era, por isso, um cara meio soturno, e sua feição jocosa no momento
denunciava algo entre o insólito e o burlesco no fenômeno à sua frente. Fiquei
ao seu lado e mirei na mesma direção, também de mãos às costas.
Da parte alta do morro, víamos um senhor que realizava uma
espécie de ritual: dois passos para frente, um passo para trás, com um certo
molejo no corpo que fazia lembrar aqueles estranhos cerimoniais aborígines, e,
dessa forma, ia perscrutando todo o terreno. De tempos em tempos, ficava
imóvel, e logo em seguida se agachava, ato em que aproveitava para cravar uma
estaca no gramado, para logo em seguida retomar seu balancê. Não resisti à
tentação de me adiantar uns dez ou quinze passos, para observar melhor o
aparelho que ele carregava nas mãos. Em um dos meneios, o explorador virou de frente
para mim e pude verificar com clareza. Não era uma sonda, um ultrassom, um raio
X, um laser ou alguma outra modernidade. Na verdade, era algo bem mais antigo:
uma forquilha!
Voltei-me boquiaberto para o Bira, que adensou o incomum sorriso.
Dei mais uma olhada para a prospecção-rito e regressei silente ao lado de meu
colega, ainda mais uma vez com as mãos atrás do abdômen, e lá ficamos por mais
algum tempo, até um olhar para a cara do outro e achar se tratar de brincadeira
ou sacanagem. Eu sabia que era hábito rural e vetusto esse sistema, mas não
imaginava seu uso por empresas com CNPJ e registro no Conselho de Engenheiros.
O velho, logo em seguida, cessou a parte coreografada do
trabalho e começou a cruzar barbantes de uma estaca a outra, sem uma lógica
perceptível. Pouco tempo depois, acenou para nós dois descermos até o
emaranhado, onde estava o fruto final do desempenho de seu inabitual mister: no
ponto de maior incidência de seus barbantes, fincou uma estaca mais grossa,
cilíndrica, oca, metálica, com um logotipo da firma pintado em azul: “É aqui.
Podem liberar para o pessoal da broca. Avisem que é fundo”.
Não tínhamos nada com o assunto, mas não nos furtamos de
comunicar aos interessados. O resultado final é que brotou água, e que era
funda de fato. Penso que, em razão de estarmos a menos de 50 metros do córrego
do Ipiranga, aquele das margens plácidas, não fosse difícil haver água no
subsolo. Some-se a altura do morro em que nos encontrávamos e temos explicada a
profundidade. Apesar de tudo isso, que lógica pode haver na indicação de água
subterrânea por um pauzinho?
As explicações geralmente estão relacionadas a mistérios. No
caso, a “teoria” geral da radiestesia diz que os corpos têm a capacidade de
mútua atração, o que é real e reconhecido pela Ciência, bem como a emissão de
radiações que seriam captáveis. O que é difícil de explicar é porque
funcionaria com um pedaço de madeira e não com um pedaço de plástico. Aí surgem
histórias: o plástico é industrializado e distanciado de seu estado natural, o
plástico é privado de água no seu interior, o plástico não tem certos
princípios ativos que existem na madeira, essas bossas. Outra coisa: por que
uma forquilha de angico (digamos) funciona melhor que uma de nogueira? Mais
uma: por que o “equipamento” funciona bem em certas mãos e não em outras?
São estes os pontos de falseabilidade que não existem na
pseudociência. Ao se afirmar que a forquilha somente funciona em determinadas
mãos ou que captam energia indetectável por instrumentos, temos à nossa frente
apenas evidências anedóticas, os depoimentos que não dependem de
comprovações concretas, e que se apoiam na crença. E é justamente por causa da
crença que as pessoas têm na eficiência da Ciência em produzir resultados
confiáveis, que os defensores de pseudociências gostam de se revestir de uma
aura científica real, buscando depoimentos de autoridades acadêmicas e
generalizando os resultados de pesquisas, de modo a acomodá-los às suas
necessidades.
Só para deixar bem claro. O que dá estatuto de pseudociência
a uma determinada prática não é o fato dela funcionar ou não. A acupuntura, por
exemplo, tem bons indicativos de causar verdadeiros alívios à dor, em uma
proporção que suplanta o placebo. Mas a Ciência acadêmica ainda não conseguiu
fechar um veredito sobre sua causação. A pseudociência está na conversa sobre
centros energéticos, concentrações de miasmas e outras justificativas que
surgem metafisicamente. Sempre há um componente indetectável nesse tipo de
fenômeno, e, portanto, algum ponto que não pode ser falseado. Repito: a
discussão aqui não é sobre a eficácia, mas sobre a cientificidade da coisa. A
Ciência não é tudo no universo – se existe algo metafísico por trás de
fenômenos que funcionem, que assim seja. Só que está fora do escopo científico.
Eu já mencionei o confronto entre Ciência e pseudociência
neste espaço várias vezes, mas voltei ao assunto porque eu queria fixar bem a
questão do surgimento do conhecimento novo. Ele nasce como uma
ainda-não-ciência e é confirmado ou não. Se confirmado, vai para a academia dar
arcabouço para novas pesquisas, novas protociências e novos devaneios
metafísicos, que novamente alimentarão o ciclo, ad infinitum. Se é refutado, então o jeito é descartá-lo e voltar
ao passo anterior, talvez até mesmo à estaca zero. Mas esse é um bom momento
para surgir a pseudociência: quando alguém se agarra à hipótese moribunda e
imputa o descarte a teorias da conspiração. Podem perceber como toda
pseudociência tem por trás de si uma tese conspiratória – os cientistas não
querem admitir... a Nasa oculta da população... seriam muitas perdas para a
indústria... o conhecimento tradicional é menosprezado... blá-blá-blá...
blá-blá-blá...
Um dos mecanismos para justificar a validade das
pseudociências é o apelo à ignorância, também conhecido por argumentum ad ignorantiam, falácia informal
de dispersão e relevância que se baseia na seguinte lógica: eu tenho um
argumento qualquer sobre um tema em que não há conhecimento suficiente,
portanto, ele é verdadeiro.
Não, não é. O fato de se ter uma hipótese sobre um buraco no
conhecimento não a torna válida automaticamente. Se de fato as forquilhas
apontam para águas profundas, a resposta para o porquê é um clamoroso e sonoro
“não sei”. Mas é exatamente aí que o argumento da ignorância funciona. Como
temos a tendência infantil de dar crédito a qualquer coisa que preencham os
vazios do nosso conhecimento, achamos essas bazófias fiáveis. É tudo muito
parecido com o Deus das Lacunas, com a diferença de que não enfiamos uma
divindade na explicação, mas um argumento que não encontra contraposição no outro
lado do debate. E também se assemelha à falsa dicotomia, na medida em
que, para que sua lógica opere, apenas dois caminhos podem ser possíveis: se o
argumento contrário não pode ser corroborado, então o favorável somente pode
ser verdadeiro.
É aquela velha história... Propõe-se um sistema de governo
diferente, como a atual moda do anarcocapitalismo. Em um determinado ponto, há
um questionamento em que não há resposta possível – como lidar com conflitos de
fronteira com outros países, por exemplo. Será lícito a um proprietário
particular declarar guerra a um país vizinho? Como não há experiências
anteriores e existiram desencontros de interesses, a resposta será a dúvida. E
o apelo à ignorância decretará que o anarcocapitalismo é um devaneio, o melhor
é o liberalismo clássico.
Duas coisas nesse caso. Mesmo que eu ache de verdade o ancap
uma barca furada, isso não se deve ao fato de que ele não tenha respostas
prontas para tudo. Isso é retórica de político. Sempre haverá uma situação
imprevisível, que mesmo o mais bem engendrado dos sistemas não saberá lidar. E,
além disso, o anarcocapitalismo ser ruim não quer dizer que a melhor via
possível seja o liberalismo clássico (no exemplo específico). Outras vertentes
políticas e econômicas podem ser cotejadas, como os estados de bem-estar
social, o socialismo e mesmo um capitalismo de estado, como o fascismo – sempre
haverá quem ache que estes modelos de condução de governo melhores, e terão lá
suas razões. Deste exemplo, podemos notar o caráter dicotômico e desviante que
tal falácia possui. Cuidado com ela.
E, por fim, há possibilidade de apelo à ignorância não falacioso? Apesar da malícia com que geralmente é usado, é preciso que se siga as mesmas regras da falsa dicotomia. Isso significa que, sabendo existir duas e apenas duas hipóteses possíveis, ter a consciência de uma das hipóteses já descarta automaticamente a outra. Exemplo boçal: se chego em casa e não vejo ninguém, ainda que eu ignore onde, sei que todo mundo saiu para dar um rolê. Ignorar onde o povo está não faz com que eles estejam em casa. Portanto, se eles não estão em casa, eu sei que estão fora. Entendeu ou ficou confuso?
E, por fim, há possibilidade de apelo à ignorância não falacioso? Apesar da malícia com que geralmente é usado, é preciso que se siga as mesmas regras da falsa dicotomia. Isso significa que, sabendo existir duas e apenas duas hipóteses possíveis, ter a consciência de uma das hipóteses já descarta automaticamente a outra. Exemplo boçal: se chego em casa e não vejo ninguém, ainda que eu ignore onde, sei que todo mundo saiu para dar um rolê. Ignorar onde o povo está não faz com que eles estejam em casa. Portanto, se eles não estão em casa, eu sei que estão fora. Entendeu ou ficou confuso?
Recomendação de leitura:
Nunca é simples falar sobre coisas não simples, como é o
caso da teoria das cordas. O livro abaixo é apropriado para isso, de modo a ser
possível acompanhar de maneira razoável o desenvolvimento desse conjunto de
ideias. Mas, mesmo com todo o cuidado, sempre haverá escorregões para que não é
da área, como eu.
GREENE, Brian. O
universo elegante. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
* Proto, em grego,
significa “primeiro”. No sentido aplicado, quer dizer aquilo que vem antes,
aquilo que dá início, como em protótipo, um modelo que pretende dar origem a
uma série. Já pseudo significa falso,
o que não demanda maiores explicações
** As leis da Física levaram, até o presente, à descoberta de
quatro tipos de energia que intermedeiam as interações entre os corpos: a força
gravitacional, a força eletromagnética, a força nuclear forte e a força nuclear
fraca. Há a forte suspeita de que o princípio geral que as rege seja um só, mas
ainda não existe uma teoria consolidada para fundamentá-la.
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