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terça-feira, 28 de maio de 2019

O nazismo de esquerda na moda e o Pequeno Guia das Grandes Falácias em dose dupla: 42º tomo – A Reductio ad Hitlerum e 43º tomo – o Wishful Thinking

Olá!


Meus caros concidadãos, que tempos loucos temos vivido ultimamente. Não vou aqui discutir nenhum tipo de preferência partidária, porque nestes momentos de ânimos exacerbados não há nada que seja possível fazer sem ser vítima de cotoveladas. Ninguém ouve ninguém e os argumentos se tornam menos lógicos do que troca de porradas. Como nunca fui muito bom nas artes marciais mistas, o que posso oferecer é uma tentativa de esclarecer a falta de sentido na afirmação de que o nazismo é de esquerda, quais motivos psicológicos estão por trás da insistência na sustentação desta tese e como ela é falaciosa por dois (ou mais) caminhos distintos. Vamos partir para o desafio.



Em primeiro lugar, vou pedir humilde e encarecidamente para que você, raro leitor, dê uma passada de olhos neste meu outro texto. Em síntese, lá eu falo da minha discordância com relação a essas cinestesias ideológicas, e em como não se deve comprar pacotes fechados de ideias políticas. No entanto, o fato é que pelo mundo inteiro a dicotomia está presente e eu não fecharei os olhos para isso. Sendo assim, uma vez bem marcada minha posição, vou penetrar nesse terreno movediço.

A história do nazismo de esquerda se alastrou bem recentemente, turbinada pelo fenômeno dos comunicadores instantâneos, WhatsApp à frente. É um tema que nasceu em oposição àquilo que a política chamou de extrema-direita. Como o nazismo era crítico ao sistema capitalista, achou-se uma brecha na base da falsa dicotomia para tentar situá-lo à esquerda. “Se a direita defende o capitalismo e o nazismo o alveja, então ele é de esquerda”, dizem. Ora, isso é falsamente dicotômico porque pressupõe somente duas opções de correntes de pensamento. Se algo não é preto, é branco, sem se cotizar os incontáveis matizes de cinza, além de todas as outras cores do espectro luminoso. Mas a coisa vai bem além.

Quando nós queremos estabelecer um contraponto sério entre direita e esquerda, precisamos fazê-lo pensando na ênfase que cada um dá ao seu conjunto político. Se este se volta especialmente ao aspecto econômico, estamos em uma posição à direita; se é para o social, vamos para a esquerda. Isso não significa que pensamentos à direita só se foquem em dinheiro. Em linhas gerais, é pela saúde econômica de um país que as políticas sociais podem ter mais sustentação, em especial através da ativação de todos os componentes de uma sociedade. Por outro lado, os pensadores à esquerda não deixam de levar em conta os aspectos econômicos, já que o dinheiro necessário à manutenção do aparato social tem que sair de algum lugar, e este é o meio econômico onde a sociedade vive. Não são duas linhas de pensamento dignas? Você pode concordar com uma ou com outra; o importante é que ambas têm sua lógica e seu valor.

Mas notem que eu só falei em linhas gerais. Se queremos afirmar ser o nazismo de esquerda ou de direita, precisamos partir para os extremos. E isso implica em começar pelo começo, e pensar como se formaram as sociedades. Na aurora de nossa espécie, vivíamos em tribos que extraíam do meio natural o seu sustento, em um esquema de colaboração onde alguns eram responsáveis pela caça, outros pela manutenção da aldeia e outros pela guarda da prole, e via discorrendo.

Evidentemente, este meio físico onde habitavam os primeiros ancestrais tinha uma capacidade máxima de abastecimento, e, por este motivo, era uma espécie de espaço vital. A partir do momento em que a tribo crescesse demais, só havia dois caminhos a seguir: deixar uma parte da população morrer ou tentar ampliar este espaço, de modo a fazê-lo dar conta dos incrementos demográficos. O problema se dava quando essa expansão fazia o terreno colidir com o de outra comunidade, e tínhamos encrenca. Mas é dessa noção de espaço vital que nasceu a ideia de propriedade, que, mais tarde, atomizou-se para os indivíduos, e passou a existir a propriedade privada.

Essas antigas tribos evoluíram, progressivamente, para aquilo que hoje chamamos de cidades e países. Na concepção à direita, está tudo bem. A propriedade se desenvolveu naturalmente, e, portanto, é natural que exista como direito. O território de um país é a propriedade da coletividade e é por isso que a direita é nacionalista, uma de suas grandes características. Para a esquerda, o conceito é o contrário. Como há uma relação de exploração de classes em todas as sociedades, a nação, com suas hierarquias e privilégios, é um mal. As fronteiras, ao contrário da tese do espaço vital, são erigidas artificialmente com o propósito de ser uma grande propriedade que alija pessoas de seus grupos, com o objetivo de manter estes mesmíssimos privilégios. Por isso, a esquerda é internacionalista.

Só aí, já seria o suficiente para derrubar a tese do nazismo de esquerda. O regime alemão não era só ultranacionalista, desejoso de expulsar de seu território toda minoria estranha ao modelo ariano, mas também em absorver para si todos os demais países onde houvesse algo de teutônico, como a Áustria, os Sudetos tchecos e parte da Polônia, como propriedade sua, do povo alemão. É o nacionalismo extremo, a extrema-direita.

Mas não é só. Quando se afirma que o governo nazista compunha um Estado com presença incompatível ao livre mercado ou à livre iniciativa, pilares da política à direita, traz-se o foco para o período de curso da Segunda Guerra, quando as necessidades bélicas levaram a uma intervenção muito forte. No entanto, a guerra foi antecedida por um boom econômico baseado no binômio obras públicas – estímulo a empresas privadas. Isto incluiu privatizações e abolição da atividade sindical, o que não me parece muito à esquerda. Ademais, o empresariado alemão se propôs a apoiar o regime nazista por contraposição ao avanço dos comunistas que se erguiam a leste. Basf, Krupp, Oetker, Bayer, BMW, Siemens, Daimler-Benz e outras empresas de renome não só apoiavam, mas eram parceiras do regime. Parece estranho combater extrema-esquerda com extrema-esquerda. Na verdade, esse apoio vinha do âmbito do conservadorismo – para evitar que se tocasse na instituição da propriedade privada (às vezes travestidos de manutenção das tradições morais), aceitou-se transformar o Estado como um tutor para mitigar o risco da estatização dos meios de produção. No extremo, tinha um Estado tão forte e presente quanto na União Soviética, mas que defendia a propriedade privada ao invés de absorvê-la.

Mas por que tanta sanha em querer se afastar do nazismo, ou, mais ainda, jogá-lo para o “outro lado”? Ouvi, certa feita, um desses youtubers assumidamente conservador levantar um questionamento como esse: governos indiscutivelmente de direita foram os de Margareth Tatcher ou de Ronald Reagan, conhecidos pelo amplo liberalismo econômico. Qual a semelhança que o governo nazista tinha com eles? Não seria ele muito mais parecido com a ditadura de Stalin, reconhecidamente de extrema-esquerda, que lançou mão de tirania, censura, expurgos e violência policial? A pergunta é cheia de malícia, apesar de revestida de uma aparência lógica. Estamos falando, no caso, de governos que não abriram mão da democracia, e isso não é privilégio de tendências liberais de direita. Governos como o de Olof Palme na Suécia, Gro Brundtland na Noruega ou François Mitterrand na França, todos socialistas (de esquerda, portanto) também não se assemelham em nada com o nazismo de Hitler, nem com o comunismo de Stalin. Por ambas as vias é possível, por outro lado, descambar para a tirania, que já existia ainda antes dessa divisão do mundo entre coxinhas e “mortandelas”. Dizer que não há tirania possível em um dos espectros é a aplicação da falácia do escocês.

É que quando queremos sintetizar uma representação do mal, sempre pensamos em Hitler. Pode ser que outros tiranos tenham sido ainda mais opressores ou violentos, como os imperadores romanos, mongóis, hunos ou babilônicos, mas o fato é um só: nosso registro acerca das ações dos nazistas é abundante. Do nazismo, temos o regime tirânico, com o racismo em seus fundamentos, elevado à enésima potência a ponto de não suportar a presença do outro. De Hitler, temos fotos, filmagens, áudios, gente ainda viva que o conheceu pessoalmente. Temos os sobreviventes dos campos de concentração, temos equipamento de guerra, temos prisões, temos numerosos documentos, tudo agrupado no butim de guerra que foi encontrado pelos aliados a partir de 1945, o dia de ontem no tempo histórico. Haverá quem diga que somente o demônio é pior que Hitler, mas há duas coisas substanciais: há quem ache essa história de diabo uma emérita baboseira (como eu), e, além disso, eles não se encontram em qualquer esquina, metafísicos que seriam. Hitler, por outro lado, é o real palpável, a maldade personificada, o mal colocado à nossa frente, e ninguém gosta de saber do que o ser humano é capaz, e muito menos ser associado ao mal.

Neste caso, a simples menção de que o nazismo é de extrema-direita faz com que aqueles que tem ideias mais achegadas à direita, seja pelo viés do conservadorismo, seja pelo caminho do nacionalismo, ou até mesmo pelo liberalismo econômico, sintam um incômodo incontornável. Os mais radicais e menos racionais buscam então um ponto de contato com a esquerda para jogar Hitler para lá. Tudo o que é associado a ele é ruim por definição, sem que se precise fazer nenhuma análise. Como não é nada raro este modelo reducionista de pensamento, é uma palha seca para a fogueira das falácias. No caso, reductio ad Hitlerum.

O que é uma redução? Em termos de argumentos, significa uma simplificação que aponta para um só elemento específico a causa de determinado fenômeno. Fazemos reduções o tempo todo, porque gostamos de explicações rápidas e concisas, e aquelas em que é fácil despejar toda uma determinada culpa, mas elas não servem quando buscamos entender o mundo a sério. Os pensadores de direita honestos não se incomodam com a presença perturbadora de Hitler porque sabem que, de fato, o espectro que abrange suas ideias é tão amplo que não se reduz ao bode na sala que é o nazismo. Idem se aplica à esquerda e Stalin. Isso só se encontra no procedimento sofismático. Afinal de contas, pensem adultamente: alguém que esteja lendo o Mein Kampf é um nazista? Pode até ser, mas está longe de necessariamente ser. Pode estar estudando este livro-base do nazismo para entender como foi possível sua ascensão; talvez esteja até enojado. Pode estar fazendo uma pesquisa, pode ser estudante de Ciências Políticas e tomando a saudável atitude de procurar fontes primárias. Lá, ele verá, por exemplo, o quanto Hitler é contrário ao marxismo e o quanto promete o extermínio dos comunistas. No reductio ad Hitlerum, tudo isso é deixado de lado, e, por isso, colocar a esquerda colada ao nome do malvadão tedesco é um recurso retórico buscado à exaustão para transformar suas doutrinas em intrinsecamente más. Para que uma afirmação que estampe Hitler na testa de alguém não seja falaciosa, ela precisa fazer sentido. Dizer que combate a minorias é uma atitude digna de Hitler faz esse sentido, porque o nazismo é estruturalmente racista.

Ok. Até aqui temos uma mecânica argumentativa, mas não podemos ainda compreender porque esse descolamento da realidade atrai tanta gente. Acontece que nossa racionalidade quase nunca é pura. Por mais que façamos força, nosso raciocínio lógico acaba sendo atravessado pelo nosso desejo de que nossas crenças sejam reais. E então acontece o fenômeno: tendemos a fazer uma seleção das evidências que são colocadas à nossa frente, valorizando as que corroboram as coisas que acreditamos, e menosprezando aquelas que as refutam. Esse é um fenômeno tremendamente humano, chamado de viés de confirmação, que dá privilégio aos fatos que reforçam nossas crenças, e que parecem direcionar a uma verdade absoluta que mesmo as mentes mais críticas tendem a perseguir. Parece que a verdade tem um só lado, justamente o meu.

Não que seja impossível existir dois pontos de vista sobre uma mesma questão, mas a robustez de duas propostas nem sempre se equilibram. É o caso dos defensores do nazismo de esquerda: apoiam-se em argumentos fragílimos, como a questão da tirania e outros piores, como o nome oficial do partido nazista, este um argumento simplesmente idiota. Daqui a pouco vamos falar que prova de vida em Marte é o fato de existirem caboclos chamados Marciano.

Esse grande desejo de estar certo em tudo e ser muito refratário a ideias opostas acontece pelo simples fato de que há um conjunto de coisas que reputamos por boas, e que as desejamos como fidedignas. É um fenômeno clássico das religiões, que têm dificuldades em se manterem firmes quando confrontadas com a realidade, mas cuja base é muito atraente para seres frágeis como nós. Como a ideia de um deus que nos cuida e que há uma vida post-mortem que é muito mais reconfortante do que a mera sensação de finitude, é natural que muita gente feche os olhos à segunda opção, mais árida e desesperançada. A realidade nos mostra que morremos, e ça tout. O que vem depois, é pura especulação, sem provas, sem evidências, sem transparência, sem garantia. A fé se arma como única autodefesa, e ela tem a resistência de uma fortaleza, porque nossos afetos excitam nossos nervos muito mais do que nossa razão. Em Psicologia, este desejo ardente de continuidade entre crença e concretude é conhecido por wishful thinking, o pensamento desejoso.

É nessa confusão entre afetos e verdades, que contamina nossa capacidade de julgamento, que opera a tese do nazismo de esquerda. Seus adeptos gostariam tanto que houvesse uma cristalização dual entre o bem e o mal, e que este estivesse do lado de lá, que mesmo os melhores argumentos antagônicos são colocados na bacia das teorias conspiratórias. Vão contra o consenso acadêmico – nas cadeiras de História, Filosofia e Ciência Políticas não existe essa discussão. Vão contra a dinâmica política, o desenrolar da História, as declarações de gente que tem representatividade para falar, como o governo alemão e o Museu do Holocausto israelense (vocês sabiam que o governo de Israel é de direita?). Vão contra até mesmo os próprios princípios basilares explícitos do nazismo: os comunistas eram rechaçados e perseguidos pelos seus seguidores, tanto quanto judeus e ciganos, e o próprio Hitler desanca com o marxismo em sua obra. Em suma, apoiam-se em uma vontade, a de que não é possível que o mal emane de seus próximos, de sua crença, de sua fé, e tomam isso como escudo.

E dá-lhe falácia. Não é porque você acredita em algo que isso é verdade, cara-pálida. A falácia do wishful thinking se baseia neste efeito psicológico, que tira quem a profere do seu contexto real. É porque muitas vezes a realidade é dura, de um modo que não gostaríamos que fosse. Convencemo-nos, por exemplo, de que nossa pouca disposição para o trabalho deriva de uma falta de reconhecimento alheio pelos nossos talentos. Não! É possível que sejamos simplesmente preguiçosos, e queremos do fundo do nosso coração que ninguém nos veja como tal, nem nós mesmos.

Recomendações:

Vai de baciada hoje.

Página do Yad Vashem, o Museu do Holocausto de Israel, onde está expresso que o nazismo é de direita:

Página em português da emissora alemã Deustche Welle, explicando o absurdo das declarações do atual chanceler brasileiro, de que o nazismo é um fenômeno da esquerda:


Artigos do professor catalão Germá Bel, falando sobre os programas de privatizações dos nazistas antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial:

BEL, Germá. Against the mainstream: Nazi privatization in 1930s Germany. Universitat di Barcelona. Disponível em http://www.ub.edu/graap/nazi.pdf.

BEL, Germá. The coining of “Privatization” and Germany’s National Socialist Party. Jounal of Economic Perspectives – Volume 20. Disponível em https://www.aeaweb.org/articles/pdf/doi/10.1257/jep.20.3.187

Eu entendo que uma das boas formas de entender o nazismo é ler seu livro base. Não se preocupem: ninguém vai sair por aí matando comunistas por causa do que está escrito aqui. Tem essa versão online que eu encontrei, mas é possível procurar versões comentadas para ter algum apoio a mais. Este livro, no meu entender, derruba completamente qualquer tentativa de tese mais séria de nazismo à esquerda, por isso o recomendo com as devidas ressalvas e cuidados.


Sobre o wishful thinking, segue um pequeno artigo que demonstra sua influência em modelos computacionais: 
https://cocolab.stanford.edu/papers/HawthorneGoodman2017-Wishful.pdf

Por fim, um bom filme para desopilar o fígado: o Hitler humanizado (não no sentido de se tornar bonzinho) d’A Queda, que mostra o que teriam sido as últimas horas do ditador. Ficou mais conhecido no Brasil pela quantidade agrícola de memes da cena do enfurecimento, mas é bom à beça, podem assistir sem medo.

HIRSCHBIEGEL, Oliver. A Queda. Filme. Alemanha: Constantin Film, 2004. Cor. 155 min.

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