Olá!
Quem me acompanha com um pouco mais de frequência, sabe das minhas
intenções em sair da cidade de São Paulo, tão logo eu esteja um pouco mais
solto com relação àqueles velhos compromissos de sempre. Como venho volta e
meia namorar a região do Vale do Paraíba, seja na Serra
da Bocaina, seja na Vertente
Oceânica Norte, seja nas encostas
da Mantiqueira, é de se esperar que alguma cidade que esteja no entremeio
destas regiões seja algo razoavelmente atraente. É o caso de Taubaté, terra de
bom porte e bons recursos, além de ser próxima da própria capital. Quando ‘inda
não vivíamos nos pandêmicos dias e não precisávamos de máscaras até para buscar
um pãozinho na padaria, fui até lá para a filha mais nova fazer umas tentativas
de emprego e estudo. Enquanto ela se debatia com questões e sabatinas, fui
procurar o que fazer no tempo disponível, como sempre faço. E fiquei sabendo da
existência de um museu dedicado a um dos principais comediantes da velha guarda
brasileira, Amácio Mazzaropi. Vamos lá conhecer mais sobre a vida do Jeca.
Em primeiro lugar, algumas informações. Mazzaropi, apesar da localização do museu, não era taubateano, mas paulistano da Santa Cecília. Só aos dois anos mudou-se com os familiares para a terra onde tinha muitos dos seus parentes. Lá, encantou-se primeiramente pelo circo, e que desembocou na decisão de utilizar um meio então mais moderno para a arte de representar. Foi um dos primeiros brasileiros a enriquecer com o negócio do cinema.
Ele produziu e atuou em dezenas de filmes do gênero comédia, principalmente evocando tipos populares da cultura brasileira, como o caipira e o suburbano, geralmente deslocados do próprio meio onde vivem, em uma paródia da real questão do êxodo rural e das transformações do meio urbano, cada vez mais rápidas.
O museu fica localizado no mesmo local onde era sediada a
PAM Estúdios, que nada mais era que a produtora de filmes de Mazzaropi. É uma
região da periferia de Taubaté, quase no meio rural, e onde também está
localizado um hotel-fazenda, que era originalmente utilizado pelas equipes e
elencos para estadia.
Trata-se de uma instituição paga, mas de valor quase simbólico, dado seu acervo de mais de 20000 peças. A separação dos espaços é temática, mas por todo lugar para onde se olhe vamos encontrar referências ao homenageado em tela. Como sua produção foi muito grande, há bastante material disponível para visitação, bem como artigos itinerantes que vêm e vão para exposição em outros rincões de Terra Brasilis.
Começa-se pela ala de equipamentos cinematográficos que
foram utilizados pela PAM, que não são exatamente iguais aos que se utilizam
hoje em dia, mas que, por isso mesmo, podem dar uma ideia mais precisa de como
certos processos eram muito mais morosos, porque o mundo analógico de outrora
exigia uma habilidade que os preparados digitais contemporâneos não deixam
entrever. Lembrem-se: há um ponto em que se torna indistinguível magia e
tecnologia. Aqui temos projetores, microfones, bobinadores, câmeras e outros
aparelhos utilizados da metade para frente do século passado.
Em seguida, temos uma ala biográfica, representada por vários painéis circulares (para remeter a um rolo de filme?) com amplo sortimento de fotografias e textos. Aqui, temos a descrição da memória de vida e da carreira de Mazzaropi. Já dá para ficar a manhã toda só lendo estes conteúdos e entendendo como se desenrolou sua trajetória. Um dos painéis contém um zootrópio, antiga máquina de simular movimentos.
Há também uma ala que se dedica a explicar como os princípios óticos são utilizados para produzir o cinema, inclusive começando pelo começo: como funciona o olho e como seu esquema é reproduzido na projeção das imagens. Há um olho gigante que pode ser visto por dentro, para entender a dinâmica da inversão e correção daquilo que vemos.
É esse tipo de coisa que vai dando riqueza a uma visita, porque amplia o conhecimento. No mesmo setor, temos explicações sobre os diferentes processos que levam à ilusão de ótica típica do cinema, como um aparelho giratório que faz entender a sucessão de imagens que faz a constituição de uma imagem plena. Nestas fotos, está ruim, mas dá para captar como funciona a coisa: sucessões de imagens estáticas colocadas em movimento modificam o modo como as percebemos, e a persistência dessas várias imagens dão a impressão de serem uma coisa só.
Em outra ala, pelas estantes e armários, há inúmeros objetos pessoais e cenográficos utilizados em suas diferentes produções, incluindo as célebres camisas xadrezes.
Há um pequeno auditório no interior do próprio museu, onde também há coleções de prêmios recebidos. Lá são ministradas aulas e debates sobre a vida e a obra de Mazzaropi. Embora estivesse fechado naquele dia, há também um anfiteatro maior, onde são oferecidas projeções de filmes, alguns deles remasterizados.
Nestes tempos de selfies, o museu disponibiliza algumas brincadeiras para o pessoal fazer suas gracinhas fotográficas, como chapeuzinhos, vestidos, gravatas e algum ambiente onde possamos brincar de manequins.
Há ainda um mezanino, que contém mais algumas coisas interessantes. Logo no topo da escada, a reprodução de um velho fogão a lenha permite que se veja e ouça alguns depoimentos através de telas digitais e headphones.
Neste mesmo andar, há vários dos ambientes cenográficos utilizados em filmes, organizados do mesmo modo em que estavam dispostos nas filmagens.
Vou começar de cara com uma confissão: não sou muuuuuuuuuuuuuito apreciador da obra de Mazzaropi, embora também não tenha motivos para depreciá-lo. Meu sogro, por exemplo, é fã de carteirinha, pela via da contemporaneidade e da temática interiorana. Era daqueles que ia à porta do cinema assim que uma nova película era lançada. Nos tempos dos videocassetes e DVD’s, era hábito o genitor da patroa fazer maratonas de três ou quatro filmes. Eu assistia no máximo um, e ia, já enfadado, tirar uma pestana no colchão do quarto de cima. Ora, direis, sendo assim, o que foste fazer em casa dedicada ao gajo? Não devias procurar outro afazer, tão abundantes os locais disponíveis nesta aprazível região, ou ao menos sorver café em algum canto?
Nada disso. Ainda que eu não seja exatamente um fã, isso não
significa que eu não reconheça seu valor. Gostar ou não de um determinado
artista é do campo opinativo, mas eu estou diante de dados e fatos; de
conhecimento, em suma, ainda que seja necessário acionar certos filtros para os
excessos laudatórios tão comuns nos espaços de homenagem. É a mesma coisa: um
corinthiano debocha de um palmeirense (e vice-versa) pela paixão clubística e
pela farra, mas negar a grandeza do outro time é cegueira. Sendo assim...
Tem coisas que a gente lembra-se de quando é pequeno que nos
trazem um certo rubor. Não é bem o caso, mas não deixa de ser curioso. Trata-se
de minha lembrança mais antiga com relação a cinema. Como já contei por aqui e
ali, eu morava com outras nove pessoas, sendo que uma delas era meu primo cinco
anos mais velho. Em um dia aleatório, vi pelo vitrô ele saindo com uma galera
que eu já conhecia, seus colegas de escola, em um grande bando. Eu devia ter
uns seis ou sete anos, o que o colocava nos onze ou doze. Curioso, perguntei à
minha mãe aonde iriam Plinio et magna
comitante caterva, em tamanho estrépito e algaravia. “Ah, eles vão no
cinema”, disse a genitora com aquele delicioso defeito linguísitico tipicamente
paulistano. “E como é isso?”, redargui. “Bom, é como se fosse uma tevê, só que
imensa”. Eu-menino, na minha literalista cabeça infantil, imaginei logo um
grande televisor, com o seletor de canais e botões de volume e brilho, igual à Colorado
P&B que guarnecia a sala, que era mais ou menos assim:
Fonte:
https://vejasp.abril.com.br/blog/memoria/dez-marcas-de-tvs-de-antigamente/
Quando fui efetivamente a um cinema, pouco tempo depois,
fiquei um tanto surpreso, porque não tinha tanto a ver com a descrição que
formei na minha cabeça. A tela era muito maior do que imaginava, e não havia
nenhum vestígio de botoeira, e sim um palco e uma cortina, por baixo de onde
brotava uma luminosidade difusa. As salas de cinema, crianças, também não eram
parecidas com as que temos hoje, e alguns deles podiam servir também como
teatro. Ainda existiam cinemas de rua e, mais ainda, salas de bairros. Tinham
capacidade muito maior que os atuais cines de shopping, muitos com mais de 1500
lugares. O cine Amazonas, por exemplo, ficava na Vila Prudente e era bem perto
de casa. O mesmo aplicava-se ao Ouro Verde, na Rua da Mooca. Embora já
estivessem em declínio, serviram para me dar um encantamento que, mais tarde,
foi substituído pelo teatro. Sim, é verdade. Eu
mais vou ao teatro que ao cinema*, mas de forma nenhuma isso significa que
eu não goste da tela grande. Muito pelo contrário.
É que sempre tivemos, como espécie, uma propensão em contar
nossas histórias. Há razões práticas e emotivas para isso. Pragmaticamente: se
no exato momento estamos vivos, é porque alguma coisa deu certo em nossas existências,
e, levando em conta que há uma espécie de consciência coletiva de espécie, é de
bom proveito que todos aqueles ao nosso redor tomem conhecimento das
estratégias que tomamos diante de nossas bifurcações. Mas é claro que não somos
esses robozinhos**, que fazem tudo de acordo com uma programação. Quando meu
tataravô conseguiu fugir do mamute, por exemplo, toda uma carga de emoções veio
junto – o pânico inicial, o medo vencido, o insight intuitivo, a apreensão pelo
livramento do perigo e a sensação de euforia no sucesso, tudo isso resolvido em
um átimo. O resgate dessas memórias se dá com vivacidade, com muito mais
subjetividade do que poderia ser uma mera descrição de quem vê tudo à distância.
Somos “contaminados” por nossa História e isso reflete em nossas histórias.
Eu falei em vivacidade e isso nos remete ao estereótipo dos
imigrantes italianos, que agitam as mãos como uma linguagem própria, e como se
fosse impossível comunicar-se apenas com as palavras – a gesticulação
complementa o ato comunicativo de maneira imperativa. Isso é só para dar um
exemplo, já que muito antes de se sonhar em Itália é provável que os homens
lançassem mãos de recursos para ampliar suas representações. Em uma dessas,
imagino uma pessoa aproveitando a luz projetada por uma fogueira nas paredes da
caverna para fazer sombras com suas próprias mãos, dando mais ânimo ao seu
relato. Olha, eu digo a vocês que sou bom nisso, e dá muito certo com crianças.
Deve ser porque faltava muita energia elétrica no bairro onde morava, e acabei
aprendendo a fazer vários bichinhos com as mãos: cachorros, elefantes, burros,
camelos, patos, coelhos, pombos, caramujos, aranhas e congêneres... e com eles
contava historinhas aos meus filhos e afilhados, conseguindo uma adesão muito
maior de suas atenções. É um truque da pareidolia?
É, mas, de uma forma ou de outra, é assim que se forma o nascedouro do cinema:
uma necessidade de contar histórias e uma vontade de torná-las mais
encantadoras.
E com isso entendemos que há mais alguma coisa a se falar
filosoficamente sobre o cinema. Como máquina de contar histórias, a tela grande
coloca-se na posição de quem fala, e de quem interage com quem está do lado de
cá; entretanto, essa interação não se dá de maneira completamente livre. O
cinema é essencialmente um lugar de escuta, não há cinema sem alguém que esteja
lá para fechar o circuito da comunicação. E exercitamos algo que tem sido perdido
nos últimos tempos, podem notar. Sempre que sentamos com alguém para ouvir seus
problemas, rebatemos os mesmos com nossas próprias aflições, e isso é um defeito
no sistema de comunicação. Eu tomo por mim mesmo. Tenho uma dificuldade
incrível em me abrir, em colocar alguma coisa para fora, e, se chego a este
ponto, o de me colocar na posição de confessante, é porque tem algo clamando
por ser vomitado. Se neste exato instante meu interlocutor passa a ele mesmo
tirar de dentro aquilo que lhe faz mal, meu objetivo estará frustrado.
Provavelmente me recolherei novamente e perderei a oportunidade de extravasar
aquilo que me corroía internamente. Quando estamos em uma sala de projeção,
podemos ter a mesmíssima aflição que nos levaria a interromper a confissão que
nos é arremessada pelos atores e pelo diretor, mas ali não é esse lugar. Ali
temos que exercer e exercitar nossa audição, porque por trás da tela não há
quem nos ouça. O diretor é imperativo, a fala dele é agora, e só há duas opções
– ouvir ou fugir. O cinema faz um quê de divindade, poderosa e inamovível, a
quem não adianta contestar durante a fala. Só depois, aí sim, podemos levantar
o debate, quando a comunicação já foi completa, quando o artista já pode se
manifestar inteiramente. E com isso aprendemos a ser melhores audientes, a
escutar uma totalidade antes de nós mesmos nos colocarmos, e a compreender uma
narrativa como uma completude. Há momentos para o debate, e há momentos para
nos colocarmos no momento de passividade da escuta, para chegarmos ao momento
ativo do entendimento.
Recomendações:
Vou recomendar o canal de Max Valarezo, dedicado à sétima
arte. Encontrei-o quando estava pesquisando sobre a indução das risadas nos
filmes, e me inscrevi de bate-pronto. Ele se chama Entre Planos, e não se
limita a análise de filmes, mas do cinema como atividade.
https://www.youtube.com/channel/UCZq_CYXRoRjKqidapMPujaQ
Comprei um livro na loja do próprio museu, que traz muitos e
muitos dados sobre a filmografia de Amácio Mazzaropi. Não é um livro
propriamente para ler numa tarde de domingo, mas para consultar quando se
quiser saber algum detalhe sobre a carreira do artista.
SILVA NETO, Antonio Leão da. Enciclopédia Mazzaropi de Cinema. São Bernardo do Campo: Edição do
Autor, 2019.
Por fim, é claro, recomendo o próprio museu. Seu endereço é
o que segue:
Estrada Amácio Mazzaropi, nº 249
Itaim
Taubaté/SP
Aproximadamente 140 Km a partir do centro de São Paulo
* Sempre se lembrando dos impeditivos da atual pandemia.
** Não?
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