Sabe aquela sensação estranha de coisa incompleta? Tipo
quando você vai no estádio ver um jogo que não sai do 0 X 0, ou quando você vai
na casa da avó e não come bolinho de chuva? Era mais ou menos o que estava
acontecendo com a falta deste texto, que ficou pendente por tempos, desde que
concluí os relatos da minha viagem à Vertente Oceânica Norte, nome besuntado de
glamour para a região de Paraibuna, São Luiz do Paraitinga e vizinhanças. Gestalt
explica? Pode ser, leiam aqui.
Tinha deixado este epílogo em stand by,
aguardando um retorno ao Núcleo Santa Virgínia, reserva ambiental que fica
encravada na Serra do Mar, e que demandaria alguns dias para percorrer algumas
de suas longas trilhas. Acontece que eu fui para bem perto de lá nesses últimos
dias, e enriqueci esta série com mais quatro textos. Sendo assim, decidi compor
este post de fechamento, para tirar esse inútil peso da consciência. Tão logo
vá ao Núcleo, farei as inserções necessárias. Esse é o lado bom de ser o patrão
das próprias palavras, uma das poucas coisas em que tenho autonomia na vida.
Depois de passar em tanta parte, na maioria das vezes
cidades pequenas, com muito pouco a ver com a megalópole paulistana, passei a
ficar um pouco mexido nas minhas convicções tipicamente urbanas, e passei a
pensar no que eu quererei para daqui a alguns anos, quando certas amarras que
ainda me ligam à Terra da Garoa já estiverem suficientemente desatadas.
Vou dar uma ideia do meu estado mental. No último sábado,
passei por um lugar em que eu era frequente nos tempos de moleque. A Avenida
Renata ligava a Vila Diva à região do cemitério da Vila Formosa, um dos maiores
do mundo. Todas as vezes em que um professor pedia um trabalho um pouco mais
elaborado, a desmilinguida sala de livros de minha escola não dava conta (leiam
a aventura que isso me gerou aqui)
e eu acorria para a biblioteca situada naquele logradouro, a menos ruim daquela
região. Para quem ia a pé, era um bocado longe, e, para disfarçar a distância, eu
ia pelo meio do matagal que encimava os canos da adutora do Rio Claro. De lá,
era virar à esquerda na Rua Planeta e pegar a avenida desde o começo. Era um
lugar bastante calmo, cheio de casinhas e com um comércio ainda incipiente, de
modo a ser um núcleo agregador daquele pedaço da Zona Leste que ainda se
assemelhava um pouco às cidades interioranas. Neste sábado passado, muito pelo
contrário, fiquei pelo menos meia hora para cruzar seu aproximado quilômetro,
coisa que fazia mais rápido na caminhada. Tentei ver o que havia de errado, mas
não há nada além de um intenso comércio e uma Avenida Abel Ferreira para
conturbar o fluxo, onde antigamente ficava um hoje desaparecido córrego. Das
casinhas, meia dúzia ainda resta, e senti uma estranha solidariedade com gente
que nunca vi, e que deve pedir prestimosa licença para conseguir sair de casa.
É muito estranho alguém que mora no Centro desta nervosa metrópole falar isso,
mas… sério. Não sei se eu teria saco de encarar voltar para um bairro e ter uma
fila indiana na janela do quarto. Para isso, já estou psicologicamente
preparado para o deserto dominical das traseiras do Corpo de Bombeiros, quando
mais utilizo transporte individual.
Mas não é só uma questão de impaciência. Talvez, na verdade,
essa seja só uma consequência de um tipo de mal-estar que ainda não
diagnostiquei com muita precisão. Afinal de contas, por mais que São Paulo seja
uma cidade que cansa no trânsito intenso, nas miríades de semáforos, no asfalto
lunar, na insegurança das vielas, nas enchentes das baixadas, na indiferença dos
concidadãos, ainda é o núcleo para onde o país converge. E aqui há tudo, simplesmente
tudo: as melhores escolas, os melhores museus, os melhores médicos, os melhores
estádios, os melhores cinemas, as melhores lojas. Esse porre provavelmente tem
outra origem, e aventar a hipótese de morar no interior passa por uma análise
bem cuidada (e pela transitoriedade do aluguel).
É curiosa a reação das pessoas do interior quando confrontadas
com suas convicções. Várias pessoas com as quais conversamos sequenciam as vantagens
de se morar no campo. Quando você aprofunda um pouco na história delas, é gente
que viveu nas grandes cidades, stress após stress, e foi buscar a paz no mundo
rural. Mas há uma galera que, pelo contrário, sonha com as capitais, com suas
oportunidades exponencialmente maiores. Reclamam do tédio e da falta de
perspectivas, e em geral são jovens que nasceram por lá mesmo. O valor para uns
e para outros estão em polos diametralmente opostos. É estranho esse ser
chamado homo sapiens, não é mesmo?
Entretanto, veio de um senhorzinho já bem senhorzinho uma
das frases que mais me atentou a razão. Estando tomando alguns bons copos de
vinho em sua adega, a conversa entabulada levou para a pergunta inevitável a
estranhos: De onde vocês são? Ao reportar a localidade, nosso simpático e
macróbio interlocutor afirma, com um certo ar de melancolia: “Ah, São Paulo...
São Paulo sustenta tudo mesmo”. Não sei se eu deveria ter meu ego insuflado, já
que não entendo até onde isso é um elogio e até onde isso reflete o que eu
mesmo sou, mas o fato é que acaba por se tratar de mais uma azeitona na salada
da minha cabeça. Será que eu vivo no melhor lugar possível? Será que a
quantidade de recursos disponíveis suplanta qualquer outro tipo de valor?
Sei não. Tenho sentido cada vez mais vontade de me mandar
daqui, embora ainda guarde muita relutância. É claro que um ser eminentemente
urbano como eu pode até mesmo desejar uma casa de praia ou de campo, o que
poderia suprir esse tipo de carência, só que eu superei de longe qualquer
desejo nesses moldes. Haverá que demonstre o contrário, mas cem por cento dos
casos que conheço pessoalmente resultam naquele arrependimento sintetizado na
frase “há duas alegrias na vida de quem tem sítio: uma quando compra e outra quando
vende”. Vale o mesmo para casa de praia. Parando para pensar, a empolgação
inicial vai para o inferno no primeiro carnê de IPTU, ou na primeira
fiscalização da prefeitura, ou na primeira invasão por meliantes, ou no primeiro
reparo que lhe ameaçar a estrutura da casa. Mesmo se nada disso acontecer, o
primeiro ano é de visitas a cada quinze dias. No segundo, a cada quinze semanas.
No terceiro, já é possível passar batido. Sempre a mesma coisa, mesma coisa, mesma
coisa, aditivada por manutenção recorrente e caseiro indolente. Tanta abertura
a gastos e desencantos brocham nas pessoas qualquer intenção de manter um
recanto do guerreiro. Por isso, mesmo que um dia eu possa, já combinei que não.
Quando eu achar por bem, pego minha mochila, alugo um lugar e passo os dias
desejados. Concluo que sai ferrenhamente mais barato e menos propenso a dores
de cabeça.
Mas às vezes penso mesmo em me mudar para uma dessas
pequenas urbes. Várias delas me produzem um encantamento, e de repente me vejo
projetado em algumas. Em Areias,
por exemplo, vi as casinhas que parecem pequenas por fora, mas que possuem
quintais gigantescos nos fundos, onde o insondável
Homem-Cueca poderia correr à vontade atrás das galinhas que eu certamente
passaria a criar. Já em Monte
Alegre do Sul talvez eu resolvesse bancar de pesquisador, montando um
pequeno alambique nos fundos de casa para desenvolver a cachaça ideal. Ou então
em São
Luiz do Paraitinga, onde eu me misturaria a um dos povos mais bem-humorados
que já conheci, alugando uma casinha na Vila Rosário para assar pães em um forninho
de barro a ser montado, para depois filosofar na praça defronte à igreja ou
cantar músicas da década de 80 com a patroa, nas mesas do boteco da Dani ou nos
pés da escada do Largo do Teatro, embaixo da noite estrelada.
Pensando menos romanticamente, acho que eu estou tentando
procurar novamente a minha turma. Durante estes quase nove anos que escrevo por
aqui, já choraminguei um bom tanto pelo decréscimo na circulação de gente na minha
casa. Ela trafegou de um polo
de intensa movimentação de jovens para um lugar quase que pacato, agravada
pela mudança do meu menino mais velho para o interior do Paraná, onde ele tenta
a vida. Morreu uma pá de gente importante na minha vida: minha mãe, meu pai,
meu padrinho, minha comadre, entre outros. Dei-me conta outro dia que, de todos
os nove moradores da minha casa na Vila Ema, só sobrou eu. Só eu tenho ainda
guardadas as histórias de um período meio grande da minha família como um todo,
e isso me assustou um bocado. No âmbito particular, é uma responsabilidade e
tanto ser o custodiante desta parcela do “brasão”. Não faz muito tempo, houve
uma reunião de família com parentes distantes, que não víamos há mais de 30
anos. Dos descendentes da Mariuccia, minha nonna, só tinha eu!!! E não
por falta de convite, mas de sobreviventes. Bom... Chega de chororô.
Sempre que falamos no social, pensamos na estrutura algo
mecanicista na qual os indivíduos se articulam. Mas há uma diferença essencial
entre a sociedade e a sociabilidade. A primeira diz respeito exatamente a esse
aspecto racional dos agrupamentos de seres humanos, enquanto o segundo vai na
via do afeto, no modo mais íntimo como as pessoas se relacionam. Há que se
marcar bem a diferença: enquanto na sociedade falamos em indivíduos, na sociabilidade
falamos em pessoas. Desta forma, há níveis diferentes de sintonia em que “vibramos
as nossas frequências” com relação ao nosso meio social. Eu, por exemplo, vivo
em um prédio onde mais da metade dos moradores são senhoras de uma ordem
católica muito fechada, com pouquíssimo ânimo para relacionamentos mais
profundos. Estão exatamente na margem de lá de onde eu vim, com seus
limitadíssimos bons-dias e com-licenças. É um fragmento de sociedade, não há
dúvida, mas não é um espaço da sociabilidade.
Se eu busco algum lugar onde há experiências sociais ou
compartilhamento de sensações estéticas, certamente não é neste vetusto
predinho. Quando meus mortos ainda não arrastavam suas correntes e a moçada não
tinha criado asas, esse distanciamento era todo suplantado. Quando todos se
foram, eu e aqueles da minha casa caímos no tempo das tribos de Michel
Maffesoli. É preciso readequar novamente o indivíduo isolado ao seu aspecto coletivo,
e isso só se consegue procurando uma nova tribo.
Não quero aqui dizer que colocarei flores na cabeça e
virarei hippie. O conceito de tribo em Maffesoli vai além destes simples
agrupamentos em torno de uma causa comum (embora os inclua). Segundo ele, uma
tribo é uma fusão comunitária onde ocorre uma desindividualização, uma união do
toque, da interação íntima e da união de pontos esparsos em uma única massa.
Como é no âmbito dos pequenos grupos que a magia da sociabilidade se desdobra,
esse neotribalismo dá uma ideia de como a identidade cultural torna possível
uma relação que se fundeie no gosto, uma espécie de “retorno ao dionisíaco”,
como estabelece o próprio mestre francês. E onde eu posso buscar um novo
coletivo do qual eu possa fazer parte? Onde haja algum elemento onde eu me
identifique.
Hoje, seria esse: lugares onde eu, a patroa e as crianças
(se possível) possamos estreitar aquele velho clima de vizinhança que, sim,
podemos dizer que assemelhados a tribos, considerando as quatro características
delas – a informalidade das
solidariedades orgânicas desvinculadas do racionalismo, o sentimento de pertença,
um ativismo sem vínculos a manuais e a fluidez do aqui e ali incessável, que
vai com as marés, como é a própria vida. Falando rapidamente sobre cada uma
dessas características, podemos dizer que
1. A cultura que brota das relações de uma tribo não é
formal, como aquela que é descrita pelos planos de aulas das escolas ou que
cristalizam as regras da linguagem, apenas para dar alguns exemplos. Esta
cultura informal é permeada de uma emotividade que foge do racionalismo
interposto pela sociedade mais organizada em ponto maior. Assim, as relações da
tribo surgem “de dentro”, mais orgânicas e naturais que aquelas que observamos no
distanciamento da sociedade estrutural;
2. Quando partimos da premissa que um nicho social é maior
que o indivíduo isolado, devemos assumir que um homem não vive sem determinados
elementos que vão além de si próprio, e que obrigatoriamente ele estará em
relação permanente, não só com o outro, mas com o território onde habita.
Maffesoli fala sobre a proxemia, que é a distância relacional existente entre
as pessoas e que, por proximidade, acaba por agrupá-las em tribos distintas.
Nossa noção de pertencimento é tão forte que tanto pode nos alinhar
organicamente ao grupo quanto nos distanciar dos demais;
3. Como a tribo tem razão de ser endógena, o seu ativismo
não é principal característica quando se observa seu papel na sociedade maior.
Quando ele existe, possui parâmetros totalmente particulares, como o escapismo
hippie ou a negação à autoridade punk, que fogem ao escopo social normalmente
reconhecido, com o ativismo político através de eleições ou pressão
parlamentar;
4. Grupos conformes são impermanentes, variando de acordo
com o sabor das circunstâncias ou com a própria deterioração do tempo. Essa
fluidez permite que tribos distintas se toquem e até se absorvam, se cindam e
se fundam, de modo indefinível.
É em um lugar em que eu me sinta de novo pertencente que eu
quero levar patroinha e os filhos que para lá quiserem ir, e lá manter os
registros que faço aqui constantemente, tentando trazer ao plano físico aquilo
que mantenho ainda hoje na dimensão virtual com vocês, meus ainda resistentes
leitores. Vamos ver no que vai dar e bons ventos a todos!!!
Recomendações:
Vamos para o habitual: as distâncias das cidades da série da
capital. Nenhuma delas leva mais de três horas de viagem, o que permite os
famosos bate-e-volta. Talvez Cunha fique um pouco forçado, mas não é
impossível. Vão até lá.
Jambeiro – 118 Km
Paraibuna – 123 Km
Natividade da Serra – 185 Km
Redenção da Serra – 163 Km
Lagoinha – 191 Km
Cunha – 231 Km
São Luiz do Paraitinga – 173 Km
Santa Branca – 94 Km
Salesópolis – 115 Km
Guararema – 79 Km
E também segue a indicação do livro de Maffesoli, sociólogo
ainda vivo, que desenvolveu o hoje tão propalado conceito de tribo urbana.
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. O declínio do
individualismo nas
sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
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