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sexta-feira, 13 de março de 2020

O cesto da gávea de onde observo o mundo – Epílogo: onde continuarei escrevendo minhas histórias?

Olá!


Sabe aquela sensação estranha de coisa incompleta? Tipo quando você vai no estádio ver um jogo que não sai do 0 X 0, ou quando você vai na casa da avó e não come bolinho de chuva? Era mais ou menos o que estava acontecendo com a falta deste texto, que ficou pendente por tempos, desde que concluí os relatos da minha viagem à Vertente Oceânica Norte, nome besuntado de glamour para a região de Paraibuna, São Luiz do Paraitinga e vizinhanças. Gestalt explica? Pode ser, leiam aqui. Tinha deixado este epílogo em stand by, aguardando um retorno ao Núcleo Santa Virgínia, reserva ambiental que fica encravada na Serra do Mar, e que demandaria alguns dias para percorrer algumas de suas longas trilhas. Acontece que eu fui para bem perto de lá nesses últimos dias, e enriqueci esta série com mais quatro textos. Sendo assim, decidi compor este post de fechamento, para tirar esse inútil peso da consciência. Tão logo vá ao Núcleo, farei as inserções necessárias. Esse é o lado bom de ser o patrão das próprias palavras, uma das poucas coisas em que tenho autonomia na vida.

Depois de passar em tanta parte, na maioria das vezes cidades pequenas, com muito pouco a ver com a megalópole paulistana, passei a ficar um pouco mexido nas minhas convicções tipicamente urbanas, e passei a pensar no que eu quererei para daqui a alguns anos, quando certas amarras que ainda me ligam à Terra da Garoa já estiverem suficientemente desatadas.

Vou dar uma ideia do meu estado mental. No último sábado, passei por um lugar em que eu era frequente nos tempos de moleque. A Avenida Renata ligava a Vila Diva à região do cemitério da Vila Formosa, um dos maiores do mundo. Todas as vezes em que um professor pedia um trabalho um pouco mais elaborado, a desmilinguida sala de livros de minha escola não dava conta (leiam a aventura que isso me gerou aqui) e eu acorria para a biblioteca situada naquele logradouro, a menos ruim daquela região. Para quem ia a pé, era um bocado longe, e, para disfarçar a distância, eu ia pelo meio do matagal que encimava os canos da adutora do Rio Claro. De lá, era virar à esquerda na Rua Planeta e pegar a avenida desde o começo. Era um lugar bastante calmo, cheio de casinhas e com um comércio ainda incipiente, de modo a ser um núcleo agregador daquele pedaço da Zona Leste que ainda se assemelhava um pouco às cidades interioranas. Neste sábado passado, muito pelo contrário, fiquei pelo menos meia hora para cruzar seu aproximado quilômetro, coisa que fazia mais rápido na caminhada. Tentei ver o que havia de errado, mas não há nada além de um intenso comércio e uma Avenida Abel Ferreira para conturbar o fluxo, onde antigamente ficava um hoje desaparecido córrego. Das casinhas, meia dúzia ainda resta, e senti uma estranha solidariedade com gente que nunca vi, e que deve pedir prestimosa licença para conseguir sair de casa. É muito estranho alguém que mora no Centro desta nervosa metrópole falar isso, mas… sério. Não sei se eu teria saco de encarar voltar para um bairro e ter uma fila indiana na janela do quarto. Para isso, já estou psicologicamente preparado para o deserto dominical das traseiras do Corpo de Bombeiros, quando mais utilizo transporte individual.

Mas não é só uma questão de impaciência. Talvez, na verdade, essa seja só uma consequência de um tipo de mal-estar que ainda não diagnostiquei com muita precisão. Afinal de contas, por mais que São Paulo seja uma cidade que cansa no trânsito intenso, nas miríades de semáforos, no asfalto lunar, na insegurança das vielas, nas enchentes das baixadas, na indiferença dos concidadãos, ainda é o núcleo para onde o país converge. E aqui há tudo, simplesmente tudo: as melhores escolas, os melhores museus, os melhores médicos, os melhores estádios, os melhores cinemas, as melhores lojas. Esse porre provavelmente tem outra origem, e aventar a hipótese de morar no interior passa por uma análise bem cuidada (e pela transitoriedade do aluguel).

É curiosa a reação das pessoas do interior quando confrontadas com suas convicções. Várias pessoas com as quais conversamos sequenciam as vantagens de se morar no campo. Quando você aprofunda um pouco na história delas, é gente que viveu nas grandes cidades, stress após stress, e foi buscar a paz no mundo rural. Mas há uma galera que, pelo contrário, sonha com as capitais, com suas oportunidades exponencialmente maiores. Reclamam do tédio e da falta de perspectivas, e em geral são jovens que nasceram por lá mesmo. O valor para uns e para outros estão em polos diametralmente opostos. É estranho esse ser chamado homo sapiens, não é mesmo?

Entretanto, veio de um senhorzinho já bem senhorzinho uma das frases que mais me atentou a razão. Estando tomando alguns bons copos de vinho em sua adega, a conversa entabulada levou para a pergunta inevitável a estranhos: De onde vocês são? Ao reportar a localidade, nosso simpático e macróbio interlocutor afirma, com um certo ar de melancolia: “Ah, São Paulo... São Paulo sustenta tudo mesmo”. Não sei se eu deveria ter meu ego insuflado, já que não entendo até onde isso é um elogio e até onde isso reflete o que eu mesmo sou, mas o fato é que acaba por se tratar de mais uma azeitona na salada da minha cabeça. Será que eu vivo no melhor lugar possível? Será que a quantidade de recursos disponíveis suplanta qualquer outro tipo de valor?

Sei não. Tenho sentido cada vez mais vontade de me mandar daqui, embora ainda guarde muita relutância. É claro que um ser eminentemente urbano como eu pode até mesmo desejar uma casa de praia ou de campo, o que poderia suprir esse tipo de carência, só que eu superei de longe qualquer desejo nesses moldes. Haverá que demonstre o contrário, mas cem por cento dos casos que conheço pessoalmente resultam naquele arrependimento sintetizado na frase “há duas alegrias na vida de quem tem sítio: uma quando compra e outra quando vende”. Vale o mesmo para casa de praia. Parando para pensar, a empolgação inicial vai para o inferno no primeiro carnê de IPTU, ou na primeira fiscalização da prefeitura, ou na primeira invasão por meliantes, ou no primeiro reparo que lhe ameaçar a estrutura da casa. Mesmo se nada disso acontecer, o primeiro ano é de visitas a cada quinze dias. No segundo, a cada quinze semanas. No terceiro, já é possível passar batido. Sempre a mesma coisa, mesma coisa, mesma coisa, aditivada por manutenção recorrente e caseiro indolente. Tanta abertura a gastos e desencantos brocham nas pessoas qualquer intenção de manter um recanto do guerreiro. Por isso, mesmo que um dia eu possa, já combinei que não. Quando eu achar por bem, pego minha mochila, alugo um lugar e passo os dias desejados. Concluo que sai ferrenhamente mais barato e menos propenso a dores de cabeça.

Mas às vezes penso mesmo em me mudar para uma dessas pequenas urbes. Várias delas me produzem um encantamento, e de repente me vejo projetado em algumas. Em Areias, por exemplo, vi as casinhas que parecem pequenas por fora, mas que possuem quintais gigantescos nos fundos, onde o insondável Homem-Cueca poderia correr à vontade atrás das galinhas que eu certamente passaria a criar. Já em Monte Alegre do Sul talvez eu resolvesse bancar de pesquisador, montando um pequeno alambique nos fundos de casa para desenvolver a cachaça ideal. Ou então em São Luiz do Paraitinga, onde eu me misturaria a um dos povos mais bem-humorados que já conheci, alugando uma casinha na Vila Rosário para assar pães em um forninho de barro a ser montado, para depois filosofar na praça defronte à igreja ou cantar músicas da década de 80 com a patroa, nas mesas do boteco da Dani ou nos pés da escada do Largo do Teatro, embaixo da noite estrelada.


Pensando menos romanticamente, acho que eu estou tentando procurar novamente a minha turma. Durante estes quase nove anos que escrevo por aqui, já choraminguei um bom tanto pelo decréscimo na circulação de gente na minha casa. Ela trafegou de um polo de intensa movimentação de jovens para um lugar quase que pacato, agravada pela mudança do meu menino mais velho para o interior do Paraná, onde ele tenta a vida. Morreu uma pá de gente importante na minha vida: minha mãe, meu pai, meu padrinho, minha comadre, entre outros. Dei-me conta outro dia que, de todos os nove moradores da minha casa na Vila Ema, só sobrou eu. Só eu tenho ainda guardadas as histórias de um período meio grande da minha família como um todo, e isso me assustou um bocado. No âmbito particular, é uma responsabilidade e tanto ser o custodiante desta parcela do “brasão”. Não faz muito tempo, houve uma reunião de família com parentes distantes, que não víamos há mais de 30 anos. Dos descendentes da Mariuccia, minha nonna, só tinha eu!!! E não por falta de convite, mas de sobreviventes. Bom... Chega de chororô.

Sempre que falamos no social, pensamos na estrutura algo mecanicista na qual os indivíduos se articulam. Mas há uma diferença essencial entre a sociedade e a sociabilidade. A primeira diz respeito exatamente a esse aspecto racional dos agrupamentos de seres humanos, enquanto o segundo vai na via do afeto, no modo mais íntimo como as pessoas se relacionam. Há que se marcar bem a diferença: enquanto na sociedade falamos em indivíduos, na sociabilidade falamos em pessoas. Desta forma, há níveis diferentes de sintonia em que “vibramos as nossas frequências” com relação ao nosso meio social. Eu, por exemplo, vivo em um prédio onde mais da metade dos moradores são senhoras de uma ordem católica muito fechada, com pouquíssimo ânimo para relacionamentos mais profundos. Estão exatamente na margem de lá de onde eu vim, com seus limitadíssimos bons-dias e com-licenças. É um fragmento de sociedade, não há dúvida, mas não é um espaço da sociabilidade.

Se eu busco algum lugar onde há experiências sociais ou compartilhamento de sensações estéticas, certamente não é neste vetusto predinho. Quando meus mortos ainda não arrastavam suas correntes e a moçada não tinha criado asas, esse distanciamento era todo suplantado. Quando todos se foram, eu e aqueles da minha casa caímos no tempo das tribos de Michel Maffesoli. É preciso readequar novamente o indivíduo isolado ao seu aspecto coletivo, e isso só se consegue procurando uma nova tribo.

Não quero aqui dizer que colocarei flores na cabeça e virarei hippie. O conceito de tribo em Maffesoli vai além destes simples agrupamentos em torno de uma causa comum (embora os inclua). Segundo ele, uma tribo é uma fusão comunitária onde ocorre uma desindividualização, uma união do toque, da interação íntima e da união de pontos esparsos em uma única massa. Como é no âmbito dos pequenos grupos que a magia da sociabilidade se desdobra, esse neotribalismo dá uma ideia de como a identidade cultural torna possível uma relação que se fundeie no gosto, uma espécie de “retorno ao dionisíaco”, como estabelece o próprio mestre francês. E onde eu posso buscar um novo coletivo do qual eu possa fazer parte? Onde haja algum elemento onde eu me identifique.

Hoje, seria esse: lugares onde eu, a patroa e as crianças (se possível) possamos estreitar aquele velho clima de vizinhança que, sim, podemos dizer que assemelhados a tribos, considerando as quatro características delas –  a informalidade das solidariedades orgânicas desvinculadas do racionalismo, o sentimento de pertença, um ativismo sem vínculos a manuais e a fluidez do aqui e ali incessável, que vai com as marés, como é a própria vida. Falando rapidamente sobre cada uma dessas características, podemos dizer que

1. A cultura que brota das relações de uma tribo não é formal, como aquela que é descrita pelos planos de aulas das escolas ou que cristalizam as regras da linguagem, apenas para dar alguns exemplos. Esta cultura informal é permeada de uma emotividade que foge do racionalismo interposto pela sociedade mais organizada em ponto maior. Assim, as relações da tribo surgem “de dentro”, mais orgânicas e naturais que aquelas que observamos no distanciamento da sociedade estrutural;

2. Quando partimos da premissa que um nicho social é maior que o indivíduo isolado, devemos assumir que um homem não vive sem determinados elementos que vão além de si próprio, e que obrigatoriamente ele estará em relação permanente, não só com o outro, mas com o território onde habita. Maffesoli fala sobre a proxemia, que é a distância relacional existente entre as pessoas e que, por proximidade, acaba por agrupá-las em tribos distintas. Nossa noção de pertencimento é tão forte que tanto pode nos alinhar organicamente ao grupo quanto nos distanciar dos demais;

3. Como a tribo tem razão de ser endógena, o seu ativismo não é principal característica quando se observa seu papel na sociedade maior. Quando ele existe, possui parâmetros totalmente particulares, como o escapismo hippie ou a negação à autoridade punk, que fogem ao escopo social normalmente reconhecido, com o ativismo político através de eleições ou pressão parlamentar;

4. Grupos conformes são impermanentes, variando de acordo com o sabor das circunstâncias ou com a própria deterioração do tempo. Essa fluidez permite que tribos distintas se toquem e até se absorvam, se cindam e se fundam, de modo indefinível.

É em um lugar em que eu me sinta de novo pertencente que eu quero levar patroinha e os filhos que para lá quiserem ir, e lá manter os registros que faço aqui constantemente, tentando trazer ao plano físico aquilo que mantenho ainda hoje na dimensão virtual com vocês, meus ainda resistentes leitores. Vamos ver no que vai dar e bons ventos a todos!!!

Recomendações:

Vamos para o habitual: as distâncias das cidades da série da capital. Nenhuma delas leva mais de três horas de viagem, o que permite os famosos bate-e-volta. Talvez Cunha fique um pouco forçado, mas não é impossível. Vão até lá.

Jambeiro – 118 Km
Paraibuna – 123 Km
Natividade da Serra – 185 Km
Redenção da Serra – 163 Km
Lagoinha – 191 Km
Cunha – 231 Km
São Luiz do Paraitinga – 173 Km
Santa Branca – 94 Km
Salesópolis – 115 Km
Guararema – 79 Km

E também segue a indicação do livro de Maffesoli, sociólogo ainda vivo, que desenvolveu o hoje tão propalado conceito de tribo urbana.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. O declínio do individualismo nas 
sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

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