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terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - 10º sopro: São Thomé das Letras, ligue-se, sintonize-se...

Olá!


Como eu já disse tantas vezes, gosto de viajar sem destino certo. Instalado em determinado posto, rodeio por toda a região à procura de lugares e pessoas interessantes, sendo que elas mesmas são os referenciais de minhas próximas capturas, especialmente por conhecerem recantos mais discretos, fora dos circuitos normais. Estando em Caxambu e seguindo esse script, havia uma recomendação óbvia e quase unânime: “Vá a São Thomé das Letras”, a terra de adoção do Ventania, roqueiro minimalista e cidadão psicodélico do mundo. Ordem dada, ordem cumprida.


Mas havia qualquer coisa de errado. Por mais que eu variasse a pesquisa, o resultado era sempre o mesmo: de Caxambu a São Thomé das Letras, cerca de 50 Km e 1h30 de viagem. Ora, com esse tempo, dá para comer muito mais asfalto. Tanto é verdade que o mesmo Google Maps previa 50 minutos para chegar a Cruzília, 40 quilômetros distante. Coisas do universo GPS, pensei eu. Não. É que a maior parte da estrada é de terra.


Boa estrada de terra, na verdade. Vermelha de ponta a ponta, dada à seca na ocasião. Os caminhões que ali transitam trataram de socar bem o barro, de forma a seu tráfego não ser um desafio infactível ao pobre Bedelho. Só ficou mais difícil já na chegada ao núcleo urbano de São Thomé das Letras, quando o excesso de poeira tornou os aclives escorregadios. Mas, antes disso, começa a rota das cachoeiras, sendo que passei pela Eubiose e Flávio, que estavam apinhadas de gente vindas de excursões e motos.


A cidade é algo realmente incomum, tanto na parte rural quanto em sua estranha fauna urbana. São Thomé das Letras tem tudo a ver com a gruta que deu origem à povoação do local. Há duas lendas que tentam lhe contar a história: uma fala em um escravo fugitivo, outra de um padre jesuíta, que teriam a utilizado como morada, vivendo anacoreticamente.


De qualquer forma, um fazendeiro, chegando ao local para tomar posse das terras, deparou-se com a gruta vazia, contendo apenas uma imagem de São Tomé, aquele que só acredita vendo, em seu interior. Adaptar a história do escravo ou do padre é critério de cada um.


O que parece favorecer a hipótese do eremita cristão é a explicação para o designativo “das Letras”. No alto da gruta, existiam algumas inscrições que lembrariam letras, e os índios Cataguazes contam que teriam sido feitas por Sumé (síncope de São Tomé?), um homem branco que lhes ensinou técnicas agrícolas e regras morais. Hoje, o local se presta como ponto de venda de artesanatos.


De toda forma, a gruta, afora seu valor histórico, é ponto de intensa religiosidade, cheia de artigos votivos, como velas, rosários e fitinhas. É um espaço bem apertado e escuro, um desafio para pançudos como eu, quase como uma quitinete do Glicério.


O tal fazendeiro, João Francisco Junqueira (aqui o terreno das hipóteses fica menos movediço), diante daquilo que encontrou, tomou-se de sentimento religioso, e mandou construir uma ermida ao lado da gruta, para onde transferiu a imagem de São Tomé lá encontrada, dando origem ao que hoje é a igreja matriz.


Na gruta, vamos começar a perceber que não é só o misticismo que cerca a cidade, mas também sua constituição geológica, que tanto lhe dá característica. São quartzitos foliados, que se apresentam em camadas, como se fossem um pavê.


E a extração dessas rochas se tornou a principal atividade econômica da terra, porque se presta à fabricação de tijolos e de base para sustentação de produtos siderúrgicos, dada a sua alta capacidade refratária. Do alto de um dos mirantes, pode-se ver uma das pedreiras ainda ativas e seu efeito modificador da paisagem.


Os resíduos da produção serviram para formar uma das marcas registradas da cidade, as inúmeras construções de pedra. Um de seus usos mais notáveis é o calçamento. Normalmente, teríamos a aplicação de macadames sequenciados, mas aqui são utilizados inúmeros fragmentos irregulares, assentados criteriosamente um a um.


Um edifício de pedra digno de nota é a igreja de Nossa Senhora do Rosário, mais conhecida como (oh!) Igreja de Pedra, feita para que os escravos pudessem celebrar em lugar diverso ao dos seus senhores, e que foi, obviamente, erigida em material mais ordinário para os padrões da época. Hoje, faz parte do mesmo patrimônio histórico e cultural da matriz (talvez seja até mais relevante).


Como a imagem do santo padroeiro reside na igreja matriz (em tempo: a imagem original foi roubada há muito tempo), uma pequena capela de pedra foi erguida para abrigar uma reprodução.


A técnica de utilização das pedras é bastante curiosa, porque dispensa o uso de argamassa para ligá-las entre si, como se fossem tijolos. Para quem não conhece dos paranauês, como eu, parece que podem tombar a qualquer assoprão.


O grande segredo está no encaixe. Como a cidade tem amplo sortimento de pedras de todas as formas e tamanhos, o principal material necessário é paciência. Um ajuste correto e o próprio peso do material ajudam a construir espaços de grandes dimensões.


O resultado final é exótico e bonito, bastante diferente do que estamos acostumados a ver nas grandes cidades. A aridez inicial sempre pode ser amenizada ou usada como pano de fundo para elementos de decoração, como a réplica do ancião do quarto álbum do Led Zeppelin (o mais famoso de todos, que tem Black Dog e Stairway to Heaven).


Na parte mais alta de São Thomé das Letras, no entanto, é que podemos observar as paisagens mais insólitas do município. Lá está localizado o Parque Antonio Rosa, que, ao contrário do que poderia se supor, não é composto por colinas verdejantes e arvoredos frondosos, mas por um panorama meio que lunar, composto por tablados ascendentes de camadas e mais camadas de quartzito, rocha sedimentar obtida pela pressão dos minerais entre si.


Um de seus atrativos é a chamada Pedra da Bruxa, que, vista pelo ângulo correto e com um pouco de boa vontade, realmente se assemelha ao perfil de uma feiticeira dando sua tenebrosa gargalhada. A foto que eu tirei dela é absolutamente infeliz, mas ao vivo a coisa é bem melhor. Sugiro que os prezados leitores pesquisem imagens na internet.


Do lado oposto do mesmo parque, temos aquele que é provavelmente o símbolo maior de São Thomé das Letras: a Casa da Pirâmide, uma construção de pedra com teto piramidal, construído sabe-se lá por quem, apontando diretamente para a constelação do Escorpião.


É um local que tem vista para o horizonte nos quatro pontos cardeais, e que, por isso mesmo, permite ao interessado assistir tanto ao nascer quanto ao pôr do sol. Uma rampa colocada por detrás da casa leva diretamente ao teto da pirâmide.


Ao seu redor, temos um cruzeiro, um símbolo da paz (onde se diz que pousam naves alienígenas) e um jardim de pedras, onde se devem empilhar pirâmides para distribuir bons fluidos pelo mundo. A coisa funciona assim: derruba-se uma das pirâmides preexistentes, com o pensamento concentrado no bem de seu anônimo construtor anterior; em seguida, constrói-se a própria, e fica-se aguardando que um novo “piramidista” venha fazer o mesmo, em um ciclo perpétuo de bons fluidos.


As redondezas da casa ficam rodeadas de hippies e artesãos, e é lá onde se concentra outro hábito bem letrense: o consumo de ervas “medicinais”. Vou contar uma história curiosa que aconteceu comigo e com a patroa. Entre filtros dos sonhos, mensageiros dos ventos e outros artigos da mesma cepa, a Mimi achou um pingente de pedra que lhe agradou.


O artesão era um peruano que fez um pequeno rito para instalar o adereço no pescoço da patroa. Umas rezas, umas bênçãos e um nó, com a promessa de proteção pelo tempo em que a consorte cuidar com carinho do objeto. Tudo certo e bonito, fui pagar: uma nota de 50 golpistas para descontar os 15 do conjunto adorno-cerimônia. Não havia troco. Lamentei e ofereci de volta o artefato, mas o hippie inca disse que não podia, que a pedra já estava consagrada e ademanes. Ele mesmo propôs que eu trouxesse o dinheiro mais tarde, no que perguntei até que horas poderia encontrá-lo. “Hasta el sol se por”, disse em bom portunhol. Acontece que eu não demorei nadinha. Na descida do parque, há um quiosque onde tentei a sorte e consegui trocar o dinheiro. Lá voltando, o peruano não estava. Perguntei aos dois hippies seus colegas onde ele havia ido. A menina me disse: “Ele foi até a pirâmide dar uma sossegada”. Isso para mim é português suficiente. Dei um pulo até uma das janelas e encontrei-o marolando. Paguei-o e ele agradeceu respondendo “gracias... é servido?”. O resto é história.


Sim, tem muito disso em São Thomé das Letras, especialmente naquele recanto. A cidade guarda muito misticismo, e o uso de substâncias psicoativas tem a reputação de auxiliar no desvio das rotas da percepção. O comércio local costuma vender vários artigos desse tipo específico de tabacaria, ainda que legalmente disfarçados para usos legais. Há as sedas, por exemplo, que, em tese, servem para sustentar o fumo e que possibilita queimá-lo. Nos meus tempos de rapaz, era comum se utilizar a embalagem interna dos maços de cigarro, que davam uma medida boa para o baseado.


Também há vários narguilés e bongs (esse é o nome correto. Boing é onomatopeia para mola), que funcionam de maneira mais ou menos correlata: a erva é colocada numa pipa para ser queimada e inalada, passando antes por um vaso vaporizador que contém água, onde é tornada mais fresca que em um cigarro. A diferença entre ambos é que a erva no bong precisa ser acendida com um isqueiro, enquanto no narguilé isso é feito com carvão. Tem gente que gosta de vaporizar com bebida alcoólica destilada ao invés de água, o que é PERIGOSO. Uísque, vodka ou cachaça inflamam facilmente, e um acidente é muito possível, quebrando todo o barato.


Também encontrei várias maricas, esse cachimbinho especialista. Atenção: eles NÃO SERVEM PARA CRACK. Quer dizer, até servem, mas os cracudos detestam cachimbos de madeira ou durepox, porque estes impossibilitam a reutilização da resina produzida pela queima, o que é possível fazer com as cânulas de metal feitas de antenas quebradas, tão típicas da Luz e da Santa Ifigênia. E cracudo aproveita até a alma da pedra para tentar dar um tirinho extra. A grande vantagem de se usar marica está no fato de que o baseado fica muito quente quando se aproxima do fim, o que não acontece com esta peça, e permite aproveitar toda a erva disponível. E ela também serve para dar um tapa na pantera final nas pontas que sobram dos fininhos e charuletas.


Desta forma, São Thomé das Letras é um local tomado pelo misticismo, não sei exatamente porque. Talvez o fato de ter sido erguida sobre pedra pura, o que fez fracassar a agricultura, e que lhe tornou uma ilha de natureza com aberturas de grandes clareiras pétreas, tenha colaborado para lhe tornar um lugar único e recoberto de lendas, principalmente relacionadas ao contato com alienígenas e elementais, como fadas, duendes e gnomos. Só que não é todo mundo que chega aqui e entra em êxtase, e há a opinião corrente que, às vezes, é necessária uma “forcinha” para impulsioná-lo, e o uso de mantras, meditações e substâncias psicoativas podem fazer o serviço. Como alteram o nível de percepção da realidade, especialmente os alucinógenos (como os cogumelos azuis), ou causam relaxamento (como a cannabis), seu consumo é bastante intenso entre os entusiastas do esoterismo (ou do embalo mesmo). É importante notar que drogas estimulantes, que deixam o usuário “bichão”, como o crack e a cocaína, não fazem parte da vibe do lugar, também pelo fato de serem sintéticas.

Já falei sobre drogas neste espaço. É inevitável que se faça. O tema da drogadição é recorrente todas as vezes que falamos em mazelas sociais, e continuo com a mesma opinião que eu tinha: entre ter de cuidar para que as pessoas não caiam na desgraça do vício e desfazer um espaço por onde a criminalidade grassa, é preferível que seu consumo seja liberado; sob forte regulamentação, é bem verdade. Vejam: o álcool é uma droga de livre consumo? Não. Há restrições na publicidade, na faixa etária, nos locais de uso, na direção e operação de máquinas, tudo isso sem que se proíba a bebida, que, posso garantir a vocês, adultera muito mais a consciência do que a maconha, e.g. Aliás, a liberação regulamentada desta última vem sendo encaminhada, mas não resolve o problema. O mesmo deve ser feito com outras drogas, porque só assim a longa cadeia infracional se quebrará, e isso leva tempo. Há um nicho de mercado a ser explorado e ele continuará a sê-lo, queiramos ou não, porque essa é a lógica do capitalismo: onde houver gente disposta a comprar, haverá quem queira vender. A diferença é que hoje um drogado é um doente e uma engrenagem da máquina do crime. Esta última condição seria extinta com a mudança da lei. E a venda legítima das substâncias acaba com uma imensa cadeia de criminalidade, que inclui corrupção de agentes públicos, delinquência de crianças e jovens e muitos mortos. Mais mortos na manutenção da organização criminosa do que no consumo. E muito mais caro, sendo certo que é mais barato tocar campanhas que evitem que os jovens entrem nas drogas. Uma boa parte da má impressão que a drogadição traz é fruto de sua associação com a criminalidade, e repito o que disse sobre o alcoolismo: um bêbado pode ser vinculado a uma condição clínica, mas não aos ciclos de delinquência. Mas isso tudo eu já falei antes. Haverá ainda mais algum motivo para vislumbrar algum futuro benéfico na utilização de substâncias psicoativas? Essa é uma pergunta que vem ecoando desde a década de 60, com as experimentações do psicólogo norte-americano Timothy Leary.

É estranho que se aborde um personagem tão polêmico neste espaço? De forma nenhuma. Leary é um dos maiores outsiders dos nossos tempos, que desafiou os paradigmas vigentes e cujo pensamento reflete na questão até os dias de hoje, por mais que discordemos de suas abordagens. Não é esse um dos caminhos para fazer boa Filosofia? Só o fato de um cara como Richard Nixon considerá-lo “o homem mais perigoso da América” já me faz olhá-lo com enorme simpatia.

Mas o que propunha Leary? Bem, ele não era exatamente um cara convencional. Em uma viagem que fez ao México, experimentou uma espécie de cogumelo rico em psilocibina, uma molécula com características alucinógenas, e que era utilizada a séculos pelas comunidades indígenas em seus rituais para se comunicar com suas divindades. Leary ficou tão impressionado com os efeitos que resolveu estudar a fundo a sua ação no cérebro. Com uma versão sintetizada do princípio ativo, conduziu uma pesquisa junto a detentos do presídio de Concord. Seu objetivo era aferir os percentuais de reincidência em pacientes tratados com psilocibina em relação a um grupo controle. Evidentemente o uso da droga não era isolado, sendo associado com psicoterapia e tratamento de rehab convencional. O medicamento deveria ser um coadjuvante que despertasse perspectivas diferenciadas com relação aos padrões mentais impostos socialmente. O resultado final agradou muito Leary, muito embora tenha sido vivamente contestado por uma série de outros pesquisadores.

Daí por diante, segue por uma vida de porra-louquice que o fez virar um mito da contracultura. Leary e seus associados fundaram um instituto destinado a ampliar suas pesquisas dentro da universidade de Harvard, mas aqui seus problemas começam de verdade. Discordando dos métodos dos pesquisadores, que forneciam psilocibina e LSD aos alunos (adendo: essas drogas não eram proibidas ainda), a direção da universidade cancela o programa e deixa Leary a pé. No entanto, suas pesquisas interessaram à milionária família Hitchcock, que lhe disponibilizou uma mansão em Millbrook para desenvolver suas atividades. Esse trabalho atraiu muitos artistas da cena beatnik, como Allen Ginsberg e William Burroughs. Participou do festival Human Be-In em 1967, que reuniu mais de 30.000 hippies em San Francisco. É lá onde lapidou sua frase-lema: Turn on, tune in, drop out, da qual falarei mais tarde. Tentou concorrer ao governo da Califórnia, com uma plataforma que lhe favorece suas teses, mas foi impedido de continuar na disputa por porte de maconha. Combateu duramente a proposta do Senado norte-americano para proibição de drogas alucinógenas, onde foi vencido. Foi condenado à prisão por dez anos, mas o grupo de extrema-esquerda norte-americano Weathermen, que combatia o envio de tropas ao Vietnã, tratou de ajudá-lo a escapar, indo para a Argélia, de onde começou um périplo pela Suiça, Áustria, Líbano e Afeganistão. Lá, foi preso por agentes da CIA e ficou preso por seis anos. Nesse meio tempo, desenvolveu sua teoria dos oito circuitos da consciência, uma espécie de divisão cerebral por especializações. Isso o habilitou a escrever livros e organizar palestras que viraram seu ganha-pão daí para a frente.

Algo muito importante a se falar é que Timothy Leary não era um mero maluco beleza tentando justificar o uso de substâncias alucinógenas para seu gáudio e bel-prazer. Ele era um PHD em psicologia e neurociências cujas ideias carregavam muito da psicanálise de Freud e da epistemologia de Kant. Ele acreditava no conceito de Túnel de Realidade, que se explica pela visão particular que cada um de nós tem do mundo. Os sentidos são os sistemas que intermedeiam a realidade e o reconhecimento mental. A interpretação que o cérebro faz leva o indivíduo a crer que aquilo que há diante de si é a realidade em si mesma, bem acabada e bem conceituada. A interiorização feita pelos sentidos, no entanto, não pode ser perfeita, porque os sentidos não são perfeitos e nunca são iguais de pessoa para pessoa. Basta que se pense nas diferenças que temos entre nossas percepções e opiniões interpessoais. Eu experimento um pão de alho e adoro; a esposa detesta. Por que a diferença? Não é o mesmo objeto que é experimentado? Se o pão de alho é uma fonte de prazer para mim, para a Mimi é o exato oposto. Desta forma, ela tem uma realidade, e eu tenho outra. Cada uma dessas interpretações mentais é uma hipótese do que é a realidade, uma cópia feita de impulsos neuronais advindos do trabalho da percepção que varia, ainda que minimamente, em cada indivíduo. Cada uma destas hipóteses é um túnel de realidade, que é tão válido, tão único e tão limitado quanto qualquer outro.

Mas há paradigmas, e estes são dados pelas convenções da sociedade. Ainda que as realidades sejam inatingíveis, existe uma ordem estabelecida em que as percepções dos sentidos procuram se acomodar. Isso acontece, segundo Leary, porque a consciência é dividida em oito circuitos, sendo que quatro deles são mais elementares e se constroem antes dos quatro últimos, mais extensos, tendo precedência sobre eles. O circuito que lida com o convívio social e com as relações interpessoais funciona antes de circuitos mais sofisticados, que sobem a níveis neurais e, por isso mesmo, são levados mais facilmente em conta. Portanto, as convenções sociais exercem uma grande pressão para limitar a ação de níveis de consciência mais elevados. Esse é um dos mecanismos que fazem com que o inconsciente não aflore, que seja inacessível em condições normais. Atingir um novo nível de consciência, por conseguinte, é, antes de mais nada, um ato de transgressão.

É aí que entra sua frase estandarte, que pode ser traduzida livremente por “Ligue-se, sintonize-se e dê o fora”.  Tido pelo pensamento conservador como uma declaração de irresponsabilidade, na verdade é a síntese de um roteiro elaborado por Leary para criar uma mudança cultural que retirasse o horror das pessoas aos experimentos de expansão mental. “Ligar-se” seria realizar a ativação dos circuitos mentais que são inibidos pelos circuitos mais primitivos. Não são só os psicotrópicos que podem fazê-lo. Meditação, mantras, altos contrastes, sons hipnóticos, essências inebriantes e outros reforçadores de sentidos também ajudam a levar a uma situação extática. Mas, em suma, significa se dispor a fugir das convenções através de uma nova visão de mundo. “Sintonizar-se” significa colocar em prática as novas perspectivas obtidas a partir dessa visão, ou seja, tirar essas novas sensações de dentro e harmonizá-las com o mundo ao nosso redor, e “cair fora” responde pela autossuficiência para se desenvolver como indivíduo autônomo e independente dos pactos sociais vigentes, livrar-se da visão que forma os estereótipos que amarram os nossos pés.

É exatamente por esse mesmo sistema de amarras que nos é imposto socialmente que tendemos a reconhecer Timothy Leary como um artista adoecido pelo alto consumo de drogas, mas, antes de tudo, é preciso notar que as pesquisas que ele lançou, ainda que seja possível reconhecer excessos e erros metodológicos, apontaram um caminho que é perseguido até hoje, como comprovam as pesquisas que buscam soluções para diminuir problemas com alcoolismo e comportamento prisional (vejam aqui e aqui). Não parece que o círculo vive dando suas voltas?

Vá a São Thomé das Letras despido de preconceitos. Ligue-se, sintonize-se e sossegue, do modo que melhor lhe convir.

Recomendações:

O livro abaixo é uma espécie de autobiografia dada em forma de entrevista, contendo o suprassumo das ideias de Leary. Vejam como o caboclo era contraposto ao establishment.

LEARY, Timothy. Flashbacks. Surfando no Caos. São Paulo: Beca, 1999.

E, para não dizer que eu não falei dos cogumelos, segue a recomendação do álbum de estreia de seu cidadão mais ilustre, o mítico Ventania, a quem me reportei por ocasião de uma de minhas viagens a São Luiz do Paraitinga.

VENTANIA. Só para Loucos. CD. São Thomé das Letras: Edição do Autor, 2000. 52 min.

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