Olá!
Como eu já disse tantas vezes, gosto de viajar sem destino
certo. Instalado em determinado posto, rodeio por toda a região à procura de
lugares e pessoas interessantes, sendo que elas mesmas são os referenciais de
minhas próximas capturas, especialmente por conhecerem recantos mais discretos,
fora dos circuitos normais. Estando em Caxambu e seguindo esse script,
havia uma recomendação óbvia e quase unânime: “Vá a São Thomé das Letras”, a
terra de adoção do Ventania, roqueiro minimalista e cidadão psicodélico do
mundo. Ordem dada, ordem cumprida.
Mas havia qualquer coisa de errado. Por mais que eu variasse
a pesquisa, o resultado era sempre o mesmo: de Caxambu a São Thomé das Letras,
cerca de 50 Km e 1h30 de viagem. Ora, com esse tempo, dá para comer muito mais
asfalto. Tanto é verdade que o mesmo Google Maps previa 50 minutos para chegar
a Cruzília, 40 quilômetros distante. Coisas do universo GPS, pensei eu. Não. É
que a maior parte da estrada é de terra.
Boa estrada de terra, na verdade. Vermelha de ponta a ponta,
dada à seca na ocasião. Os caminhões que ali transitam trataram de socar bem o
barro, de forma a seu tráfego não ser um desafio infactível ao pobre Bedelho.
Só ficou mais difícil já na chegada ao núcleo urbano de São Thomé das Letras,
quando o excesso de poeira tornou os aclives escorregadios. Mas, antes disso,
começa a rota das cachoeiras, sendo que passei pela Eubiose e Flávio, que
estavam apinhadas de gente vindas de excursões e motos.
A cidade é algo realmente incomum, tanto na parte rural quanto
em sua estranha fauna urbana. São Thomé das Letras tem tudo a ver com a gruta
que deu origem à povoação do local. Há duas lendas que tentam lhe contar a
história: uma fala em um escravo fugitivo, outra de um padre jesuíta, que
teriam a utilizado como morada, vivendo anacoreticamente.
De qualquer forma, um fazendeiro, chegando ao local para
tomar posse das terras, deparou-se com a gruta vazia, contendo apenas uma
imagem de São Tomé, aquele que só acredita vendo, em seu interior. Adaptar a
história do escravo ou do padre é critério de cada um.
O que parece favorecer a hipótese do eremita cristão é a
explicação para o designativo “das Letras”. No alto da gruta, existiam algumas
inscrições que lembrariam letras, e os índios Cataguazes contam que teriam sido
feitas por Sumé (síncope de São Tomé?), um homem branco que lhes ensinou
técnicas agrícolas e regras morais. Hoje, o local se presta como ponto de venda
de artesanatos.
De toda forma, a gruta, afora seu valor histórico, é ponto
de intensa religiosidade, cheia de artigos votivos, como velas, rosários e
fitinhas. É um espaço bem apertado e escuro, um desafio para pançudos como eu, quase
como uma quitinete do Glicério.
O tal fazendeiro, João Francisco Junqueira (aqui o terreno
das hipóteses fica menos movediço), diante daquilo que encontrou, tomou-se de
sentimento religioso, e mandou construir uma ermida ao lado da gruta, para onde
transferiu a imagem de São Tomé lá encontrada, dando origem ao que hoje é a
igreja matriz.
Na gruta, vamos começar a perceber que não é só o misticismo
que cerca a cidade, mas também sua constituição geológica, que tanto lhe dá
característica. São quartzitos foliados, que se apresentam em camadas, como se
fossem um pavê.
E a extração dessas rochas se tornou a principal atividade
econômica da terra, porque se presta à fabricação de tijolos e de base para
sustentação de produtos siderúrgicos, dada a sua alta capacidade refratária. Do
alto de um dos mirantes, pode-se ver uma das pedreiras ainda ativas e seu
efeito modificador da paisagem.
Os resíduos da produção serviram para formar uma das marcas
registradas da cidade, as inúmeras construções de pedra. Um de seus usos mais
notáveis é o calçamento. Normalmente, teríamos a aplicação de macadames sequenciados,
mas aqui são utilizados inúmeros fragmentos irregulares, assentados
criteriosamente um a um.
Um edifício de pedra digno de nota é a igreja de Nossa Senhora
do Rosário, mais conhecida como (oh!) Igreja de Pedra, feita para que os
escravos pudessem celebrar em lugar diverso ao dos seus senhores, e que foi,
obviamente, erigida em material mais ordinário para os padrões da época. Hoje,
faz parte do mesmo patrimônio histórico e cultural da matriz (talvez seja até
mais relevante).
Como a imagem do santo padroeiro reside na igreja matriz (em
tempo: a imagem original foi roubada há muito tempo), uma pequena capela de
pedra foi erguida para abrigar uma reprodução.
A técnica de utilização das pedras é bastante curiosa,
porque dispensa o uso de argamassa para ligá-las entre si, como se fossem
tijolos. Para quem não conhece dos paranauês, como eu, parece que podem tombar
a qualquer assoprão.
O grande segredo está no encaixe. Como a cidade tem amplo
sortimento de pedras de todas as formas e tamanhos, o principal material
necessário é paciência. Um ajuste correto e o próprio peso do material ajudam a
construir espaços de grandes dimensões.
O resultado final é exótico e bonito, bastante diferente do
que estamos acostumados a ver nas grandes cidades. A aridez inicial sempre pode
ser amenizada ou usada como pano de fundo para elementos de decoração, como a
réplica do ancião do quarto álbum do Led Zeppelin (o mais famoso de todos, que
tem Black Dog e Stairway to Heaven).
Na parte mais alta de São Thomé das Letras, no entanto, é
que podemos observar as paisagens mais insólitas do município. Lá está
localizado o Parque Antonio Rosa, que, ao contrário do que poderia se supor,
não é composto por colinas verdejantes e arvoredos frondosos, mas por um
panorama meio que lunar, composto por tablados ascendentes de camadas e mais
camadas de quartzito, rocha sedimentar obtida pela pressão dos minerais entre
si.
Um de seus atrativos é a chamada Pedra da Bruxa, que, vista
pelo ângulo correto e com um pouco de boa vontade, realmente se assemelha ao
perfil de uma feiticeira dando sua tenebrosa gargalhada. A foto que eu tirei
dela é absolutamente infeliz, mas ao vivo a coisa é bem melhor. Sugiro que os
prezados leitores pesquisem imagens na internet.
Do lado oposto do mesmo parque, temos aquele que é
provavelmente o símbolo maior de São Thomé das Letras: a Casa da Pirâmide, uma
construção de pedra com teto piramidal, construído sabe-se lá por quem,
apontando diretamente para a constelação do Escorpião.
É um local que tem vista para o horizonte nos quatro pontos
cardeais, e que, por isso mesmo, permite ao interessado assistir tanto ao nascer
quanto ao pôr do sol. Uma rampa colocada por detrás da casa leva diretamente ao
teto da pirâmide.
Ao seu redor, temos um cruzeiro, um símbolo da paz (onde se
diz que pousam naves alienígenas) e um jardim de pedras, onde se devem empilhar
pirâmides para distribuir bons fluidos pelo mundo. A coisa funciona assim:
derruba-se uma das pirâmides preexistentes, com o pensamento concentrado no bem
de seu anônimo construtor anterior; em seguida, constrói-se a própria, e
fica-se aguardando que um novo “piramidista” venha fazer o mesmo, em um ciclo
perpétuo de bons fluidos.
As redondezas da casa ficam rodeadas de hippies e artesãos,
e é lá onde se concentra outro hábito bem letrense: o consumo de ervas
“medicinais”. Vou contar uma história curiosa que aconteceu comigo e com a
patroa. Entre filtros dos sonhos, mensageiros dos ventos e outros artigos da
mesma cepa, a Mimi achou um pingente de pedra que lhe agradou.
O artesão era um peruano que fez um pequeno rito para
instalar o adereço no pescoço da patroa. Umas rezas, umas bênçãos e um nó, com
a promessa de proteção pelo tempo em que a consorte cuidar com carinho do
objeto. Tudo certo e bonito, fui pagar: uma nota de 50 golpistas para descontar
os 15 do conjunto adorno-cerimônia. Não havia troco. Lamentei e ofereci de
volta o artefato, mas o hippie inca disse que não podia, que a pedra já estava
consagrada e ademanes. Ele mesmo propôs que eu trouxesse o dinheiro mais tarde,
no que perguntei até que horas poderia encontrá-lo. “Hasta el sol se por”, disse em bom portunhol. Acontece que eu não
demorei nadinha. Na descida do parque, há um quiosque onde tentei a sorte e
consegui trocar o dinheiro. Lá voltando, o peruano não estava. Perguntei aos
dois hippies seus colegas onde ele havia ido. A menina me disse: “Ele foi até a
pirâmide dar uma sossegada”. Isso
para mim é português suficiente. Dei um pulo até uma das janelas e encontrei-o
marolando. Paguei-o e ele agradeceu respondendo “gracias... é servido?”. O resto é história.
Sim, tem muito disso em São Thomé das Letras, especialmente
naquele recanto. A cidade guarda muito misticismo, e o uso de substâncias
psicoativas tem a reputação de auxiliar no desvio das rotas da percepção. O
comércio local costuma vender vários artigos desse tipo específico de
tabacaria, ainda que legalmente disfarçados para usos legais. Há as sedas, por
exemplo, que, em tese, servem para sustentar o fumo e que possibilita
queimá-lo. Nos meus tempos de rapaz, era comum se utilizar a embalagem interna
dos maços de cigarro, que davam uma medida boa para o baseado.
Também há vários narguilés e bongs (esse é o nome correto. Boing
é onomatopeia para mola), que funcionam de maneira mais ou menos correlata: a
erva é colocada numa pipa para ser queimada e inalada, passando antes por um
vaso vaporizador que contém água, onde é tornada mais fresca que em um cigarro.
A diferença entre ambos é que a erva no bong
precisa ser acendida com um isqueiro, enquanto no narguilé isso é feito com
carvão. Tem gente que gosta de vaporizar com bebida alcoólica destilada ao
invés de água, o que é PERIGOSO. Uísque, vodka ou cachaça inflamam facilmente,
e um acidente é muito possível, quebrando todo o barato.
Também encontrei várias maricas, esse cachimbinho
especialista. Atenção: eles NÃO SERVEM PARA CRACK. Quer dizer, até servem, mas
os cracudos detestam cachimbos de madeira ou durepox, porque estes
impossibilitam a reutilização da resina produzida pela queima, o que é possível
fazer com as cânulas de metal feitas de antenas quebradas, tão típicas da Luz e da
Santa Ifigênia. E cracudo aproveita até a alma da pedra para tentar dar um
tirinho extra. A grande vantagem de se usar marica está no fato de que o
baseado fica muito quente quando se aproxima do fim, o que não acontece com
esta peça, e permite aproveitar toda a erva disponível. E ela também serve para
dar um tapa na pantera final nas pontas que sobram dos fininhos e charuletas.
Desta forma, São Thomé das Letras é um local tomado pelo
misticismo, não sei exatamente porque. Talvez o fato de ter sido erguida sobre
pedra pura, o que fez fracassar a agricultura, e que lhe tornou uma ilha de
natureza com aberturas de grandes clareiras pétreas, tenha colaborado para lhe
tornar um lugar único e recoberto de lendas, principalmente relacionadas ao
contato com alienígenas e elementais, como fadas, duendes e gnomos. Só que não
é todo mundo que chega aqui e entra em êxtase, e há a opinião corrente que, às
vezes, é necessária uma “forcinha” para impulsioná-lo, e o uso de mantras,
meditações e substâncias psicoativas podem fazer o serviço. Como alteram o
nível de percepção da realidade, especialmente os alucinógenos (como os
cogumelos azuis), ou causam relaxamento (como a cannabis), seu consumo é bastante intenso entre os entusiastas do
esoterismo (ou do embalo mesmo). É importante notar que drogas estimulantes,
que deixam o usuário “bichão”, como o crack e a cocaína, não fazem parte da vibe do lugar, também pelo fato de serem
sintéticas.
Já falei sobre drogas neste espaço. É inevitável que se
faça. O tema da drogadição é recorrente todas as vezes que falamos em
mazelas sociais, e continuo com a mesma opinião que eu tinha: entre ter de
cuidar para que as pessoas não caiam na desgraça do vício e desfazer um espaço
por onde a criminalidade grassa, é preferível que seu consumo seja liberado;
sob forte regulamentação, é bem verdade. Vejam: o álcool é uma droga de livre
consumo? Não. Há restrições na publicidade, na faixa etária, nos locais de uso,
na direção e operação de máquinas, tudo isso sem que se proíba a bebida, que,
posso garantir a vocês, adultera muito mais a consciência do que a maconha,
e.g. Aliás, a liberação regulamentada desta última vem sendo encaminhada, mas
não resolve o problema. O mesmo deve ser feito com outras drogas, porque só
assim a longa cadeia infracional se quebrará, e isso leva tempo. Há um nicho de
mercado a ser explorado e ele continuará a sê-lo, queiramos ou não, porque essa
é a lógica do capitalismo: onde houver gente disposta a comprar, haverá quem
queira vender. A diferença é que hoje um drogado é um doente e uma engrenagem
da máquina do crime. Esta última condição seria extinta com a mudança da lei. E
a venda legítima das substâncias acaba com uma imensa cadeia de criminalidade,
que inclui corrupção de agentes públicos, delinquência de crianças e jovens e
muitos mortos. Mais mortos na manutenção da organização criminosa do que no
consumo. E muito mais caro, sendo certo que é mais barato tocar campanhas que
evitem que os jovens entrem nas drogas. Uma boa parte da má impressão que a
drogadição traz é fruto de sua associação com a criminalidade, e repito o que
disse sobre o alcoolismo: um bêbado pode ser vinculado a uma condição clínica,
mas não aos ciclos de delinquência. Mas isso tudo eu já falei antes. Haverá
ainda mais algum motivo para vislumbrar algum futuro benéfico na utilização de
substâncias psicoativas? Essa é uma pergunta que vem ecoando desde a década de
60, com as experimentações do psicólogo norte-americano Timothy Leary.
É estranho que se aborde um personagem tão polêmico neste
espaço? De forma nenhuma. Leary é um dos maiores outsiders dos nossos tempos, que desafiou os paradigmas vigentes e
cujo pensamento reflete na questão até os dias de hoje, por mais que
discordemos de suas abordagens. Não é esse um dos caminhos para fazer boa
Filosofia? Só o fato de um cara como Richard Nixon considerá-lo “o homem mais
perigoso da América” já me faz olhá-lo com enorme simpatia.
Mas o que propunha Leary? Bem, ele não era exatamente um
cara convencional. Em uma viagem que fez ao México, experimentou uma espécie de
cogumelo rico em psilocibina, uma molécula com características alucinógenas, e
que era utilizada a séculos pelas comunidades indígenas em seus rituais para se
comunicar com suas divindades. Leary ficou tão impressionado com os efeitos que
resolveu estudar a fundo a sua ação no cérebro. Com uma versão sintetizada do
princípio ativo, conduziu uma pesquisa junto a detentos do presídio de Concord.
Seu objetivo era aferir os percentuais de reincidência em pacientes tratados
com psilocibina em relação a um grupo controle. Evidentemente o uso da droga
não era isolado, sendo associado com psicoterapia e tratamento de rehab convencional. O medicamento
deveria ser um coadjuvante que despertasse perspectivas diferenciadas com
relação aos padrões mentais impostos socialmente. O resultado final agradou
muito Leary, muito embora tenha sido vivamente contestado por uma série de
outros pesquisadores.
Daí por diante, segue por uma vida de porra-louquice que o
fez virar um mito da contracultura. Leary e seus associados fundaram um
instituto destinado a ampliar suas pesquisas dentro da universidade de Harvard,
mas aqui seus problemas começam de verdade. Discordando dos métodos dos
pesquisadores, que forneciam psilocibina e LSD aos alunos (adendo: essas drogas
não eram proibidas ainda), a direção da universidade cancela o programa e deixa
Leary a pé. No entanto, suas pesquisas interessaram à milionária família
Hitchcock, que lhe disponibilizou uma mansão em Millbrook para desenvolver suas
atividades. Esse trabalho atraiu muitos artistas da cena beatnik, como Allen Ginsberg e William Burroughs. Participou do
festival Human Be-In em 1967, que
reuniu mais de 30.000 hippies em San Francisco. É lá onde lapidou sua
frase-lema: Turn on, tune in, drop out,
da qual falarei mais tarde. Tentou concorrer ao governo da Califórnia, com uma
plataforma que lhe favorece suas teses, mas foi impedido de continuar na
disputa por porte de maconha. Combateu duramente a proposta do Senado
norte-americano para proibição de drogas alucinógenas, onde foi vencido. Foi
condenado à prisão por dez anos, mas o grupo de extrema-esquerda
norte-americano Weathermen, que
combatia o envio de tropas ao Vietnã, tratou de ajudá-lo a escapar, indo para a
Argélia, de onde começou um périplo pela Suiça, Áustria, Líbano e Afeganistão.
Lá, foi preso por agentes da CIA e ficou preso por seis anos. Nesse meio tempo,
desenvolveu sua teoria dos oito circuitos da consciência, uma espécie de
divisão cerebral por especializações. Isso o habilitou a escrever livros e
organizar palestras que viraram seu ganha-pão daí para a frente.
Algo muito importante a se falar é que Timothy Leary não era
um mero maluco beleza tentando justificar o uso de substâncias alucinógenas
para seu gáudio e bel-prazer. Ele era um PHD em psicologia e neurociências
cujas ideias carregavam muito da psicanálise de Freud e da epistemologia de Kant.
Ele acreditava no conceito de Túnel de
Realidade, que se explica pela visão particular que cada um de nós tem do
mundo. Os sentidos são os sistemas que intermedeiam a realidade e o
reconhecimento mental. A interpretação que o cérebro faz leva o indivíduo a
crer que aquilo que há diante de si é a realidade em si mesma, bem acabada e
bem conceituada. A interiorização feita pelos sentidos, no entanto, não pode
ser perfeita, porque os sentidos não são perfeitos e nunca são iguais de pessoa
para pessoa. Basta que se pense nas diferenças que temos entre nossas
percepções e opiniões interpessoais. Eu experimento um pão de alho e adoro; a
esposa detesta. Por que a diferença? Não é o mesmo objeto que é experimentado?
Se o pão de alho é uma fonte de prazer para mim, para a Mimi é o exato oposto.
Desta forma, ela tem uma realidade, e eu tenho outra. Cada uma dessas
interpretações mentais é uma hipótese do que é a realidade, uma cópia feita de
impulsos neuronais advindos do trabalho da percepção que varia, ainda que
minimamente, em cada indivíduo. Cada uma destas hipóteses é um túnel de
realidade, que é tão válido, tão único e tão limitado quanto qualquer outro.
Mas há paradigmas, e estes são dados pelas convenções da
sociedade. Ainda que as realidades sejam inatingíveis, existe uma ordem estabelecida
em que as percepções dos sentidos procuram se acomodar. Isso acontece, segundo
Leary, porque a consciência é dividida em oito circuitos, sendo que quatro deles
são mais elementares e se constroem antes dos quatro últimos, mais extensos, tendo
precedência sobre eles. O circuito que lida com o convívio social e com as
relações interpessoais funciona antes de circuitos mais sofisticados, que sobem
a níveis neurais e, por isso mesmo, são levados mais facilmente em conta.
Portanto, as convenções sociais exercem uma grande pressão para limitar a ação
de níveis de consciência mais elevados. Esse é um dos mecanismos que fazem com
que o inconsciente não aflore, que seja inacessível em condições normais.
Atingir um novo nível de consciência, por conseguinte, é, antes de mais nada,
um ato de transgressão.
É aí que entra sua frase estandarte, que pode ser traduzida
livremente por “Ligue-se, sintonize-se e dê o fora”. Tido pelo pensamento conservador como uma
declaração de irresponsabilidade, na verdade é a síntese de um roteiro
elaborado por Leary para criar uma mudança cultural que retirasse o horror das
pessoas aos experimentos de expansão mental. “Ligar-se” seria realizar a
ativação dos circuitos mentais que são inibidos pelos circuitos mais
primitivos. Não são só os psicotrópicos que podem fazê-lo. Meditação, mantras,
altos contrastes, sons hipnóticos, essências inebriantes e outros reforçadores
de sentidos também ajudam a levar a uma situação extática. Mas, em suma,
significa se dispor a fugir das convenções através de uma nova visão de mundo.
“Sintonizar-se” significa colocar em prática as novas perspectivas obtidas a
partir dessa visão, ou seja, tirar essas novas sensações de dentro e
harmonizá-las com o mundo ao nosso redor, e “cair fora” responde pela
autossuficiência para se desenvolver como indivíduo autônomo e independente dos
pactos sociais vigentes, livrar-se da visão que forma os estereótipos que
amarram os nossos pés.
É exatamente por esse mesmo sistema de amarras que nos é
imposto socialmente que tendemos a reconhecer Timothy Leary como um artista
adoecido pelo alto consumo de drogas, mas, antes de tudo, é preciso notar que
as pesquisas que ele lançou, ainda que seja possível reconhecer excessos e
erros metodológicos, apontaram um caminho que é perseguido até hoje, como
comprovam as pesquisas que buscam soluções para diminuir problemas com
alcoolismo e comportamento prisional (vejam aqui e aqui). Não
parece que o círculo vive dando suas voltas?
Vá a São Thomé das Letras despido de preconceitos. Ligue-se,
sintonize-se e sossegue, do modo que melhor lhe convir.
Recomendações:
O livro abaixo é uma espécie de autobiografia dada em forma
de entrevista, contendo o suprassumo das ideias de Leary. Vejam como o caboclo
era contraposto ao establishment.
LEARY, Timothy. Flashbacks.
Surfando no Caos. São Paulo: Beca, 1999.
E, para não dizer que eu não falei dos cogumelos, segue a
recomendação do álbum de estreia de seu cidadão mais ilustre, o mítico Ventania,
a quem me reportei por ocasião de uma de minhas viagens a São Luiz do Paraitinga.
VENTANIA. Só para
Loucos. CD. São Thomé das Letras: Edição do Autor, 2000. 52 min.
Nenhum comentário:
Postar um comentário