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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Sobre couraças psicológicas e pênaltis mal batidos

Olá!

Ainda tratando da novela “Avenida Brasil” (da qual já falei em meu post anterior), outros aspectos, além daquele já tratado, foram bastante interessantes. Relembro, por exemplo, de um determinado momento em que não era possível definir com clareza quem era herói ou quem era vilão. Os sentimentos estavam tão misturados (o que foi repassado com habilidade ao público) que tivemos um reflexo bastante pertinente do que é a vida real. Ninguém (com a exceção do personagem Tufão e de sua irmã) conseguiu manter uma pureza que permitisse ao público um alinhamento confortável, como costuma acontecer nessas novelas. As armações da Nina e as reações ensandecidas da Carminha derrubaram muitas vezes os limites morais com os quais a sociedade é acostumada a lidar.

Mas queria neste momento recordar de outro momento que achei bastante relevante, apesar de efêmero: o término do capítulo final, quando o personagem Adauto se livra de seu trauma, conseguindo anotar o tão almejado pênalti. Sua história é simples: movido por uma frustração da puberdade, quando foi flagrado pelos colegas de escola fazendo uso de uma chupeta, viu ruir sua expectativa de se tornar um herói de sua comunidade, ao desperdiçar a cobrança de um pênalti da qual foi incumbido. O detalhe sórdido foi a insegurança causada no personagem ao ser admoestado por um adversário, que lhe sussurrou algo no ouvido. Mais tarde, soube-se que a maldade do rival foi chamá-lo pelo incômodo apelido de infância, “chupetinha”.


Talvez não surtiria efeito a outra pessoa, mas no jogador em tela foi disparada uma série de sentimentos conflitantes que acabaram por desmontar seus sustentáculos psicológicos. Criança pobre, criado por uma família que não era a dele, não conseguiu o descolamento de uma figura materna ausente, o que trazia algum desequilíbrio à sua personalidade. Dois momentos foram explorados com sagacidade pelo diretor (que parece mesmo ter feito alguma leitura em psicanálise): o vínculo à figura materna feito com a personagem Muricy, a quem ficava observando atentamente na feitura de bolos e outros doces, e que no final das contas acabou sendo a chave para sua nova paixão, a cabeleireira Olenka, que resolveu adotar conscientemente as mesmas armas; e o uso persistente da chupeta, o bico de seio tão ausente em sua infância.

Que será que aconteceu com nosso atrapalhado herói, para ter travado de tal forma e segurar um trauma tão grande por anos a fio? Para tentar encontrar algumas respostas, e concluir se o autor da novela conseguiu buscar algum respaldo na literatura psicanalítica, vamos buscar alguns subsídios em um dos mais polêmicos seguidores de Freud, o austríaco Wilhelm Reich.

Para Reich, mais do que para ninguém, o corpo fala. Freud já havia deduzido isso, ao concluir que a histeria era uma doença de quem não conseguia expressar suas angústias em forma de linguagem codificada formalmente. No entanto, Reich percebe que as teses de Freud acabam por se circunscrever muito intimamente ao psíquico, enquanto, no seu entender, os reflexos orgânicos são tremendamente mais significativos. Todo o gestual e postural do corpo possuem um sentido na definição do indivíduo que a psicanálise freudiana não consegue atingir. Por isso, sua análise é ampliada, não se limitando à audição típica deste modelo, estendendo-se à interpretação das reações corpóreas do paciente.

Reich entende que a formação do caráter se dá no nível da vazão de energias. Quando um indivíduo tem sua constituição feita de forma equilibrada entre suas pulsões naturais e as repressões de caráter moral, teremos um adulto bem resolvido, com sua energia fluindo adequadamente. No entanto, se esse mesmo indivíduo não pode se formar de modo a conseguir lidar com suas frustrações, encontrará um represamento de energias, que refletirão em seu corpo e em seu modo de ser. Segundo Reich, este processo se inicia já no útero da mãe, o que nos dá a dimensão do quanto a emotividade processa interações com o organismo.

Para explicar como funciona essa sinergia entre corpo e mente, Reich desenvolveu a teoria das couraças. De acordo com essa tese, o corpo reflete organicamente as frustrações mal resolvidas durante toda a vida, e ainda que a condição física não seja permanente, o seu registro o é, o que faz com que a patologia possa ser disparada instantaneamente diante de qualquer evento que a faça reaflorar, como a nova vivência de uma situação constrangedora. Ou seja, temos uma somatização, que nada mais é do que uma conseqüência corporal de um fenômeno psíquico.

Como funciona isso? Ao se ver diante de uma situação conflitante, o psicológico do contribuinte produz conexões mentais que lhe informam como agir. Em um caso de perfeito equilíbrio, o corpo articula essa informação e a traduz em ação, liberando a energia requerida para tanto. Caso a situação represente uma ameaça (que não precisa ser real nem imediata), a couraça age, armazenando essa energia e impedindo que o impulso ocorra. O objetivo dessa couraça é proteger o cidadão de um agravamento de sua frustração, o que inconscientemente o livraria de danos maiores. Essa ação da couraça pode desencadear um travamento, um freio, uma dor, ou seja, uma reação fisiológica.

É o caso de nosso desafortunado Adauto. Provavelmente, ele estava apto a bater o pênalti, com a tensão normal de quem tem a responsabilidade de definir um campeonato. Ao cochichar seu apelido de infância, seu adversário fez recrudescer toda a tensão, multiplicando-a a ponto de interferir no seu correto funcionamento orgânico. Reich diria que Adauto tentou combater sua couraça, mas esta teve seu efeito devastador: a cobrança foi mal feita, por um processo de travamento e desconcentração. Ao trauma preexistente, sucedeu-se outro ainda maior, que o impediu até mesmo de prosseguir na carreira. Somente com a mitigação de partes significativas de sua frustração (com a descoberta feita pela personagem Olenka, seguida de seu “tratamento” liberatório de energias) o restante do desequilíbrio pode ser resolvido, e o caráter do moço, ao menos neste aspecto, conseguiu atingir seu leito normal.

Esta é uma interpretação bastante simplista e reducionista de minha parte, mas serve para introduzir um pensamento que tem sido visto com mais seriedade nos últimos tempos, principalmente com o desenvolvimento da psicossomática, área afeita à psicologia que estuda as alterações físicas produzidas a partir de fenômenos psíquicos, como as alergias, taquicardias, suores e outros sintomas desencadeados por motivos não relacionados à esfera fisiológica. E lembrando ainda que Reich fez aproximações interessantes com algumas filosofias orientais. Ele dizia, por exemplo, que o represamento de energia se dava em sete pontos do organismo, correspondentes aos chakras do corpo sutil descritos pela Yoga, e que cada um destes segmentos regia uma determinada característica do complexo emocional. Também definia a sexualidade como válvula de descarga de toda forma de energia, que se acumulava na região pélvica. O orgasmo era a representação máxima da harmonia físico-psicológica humana. Em uma época onde a livre manifestação sexual era vista como deturpadora de valores, Reich sofreu grande oposição e perseguição, com a proibição total de suas obras (chegou mesmo a ser levado à prisão, onde terminou seus dias).

Portanto, reputo como feliz a escolha do final da novela pelo diretor, que conseguiu produzir um grand finale a partir de uma trama lateral, que poderia ser facilmente esquecida, mas que representa a resolução de um mal nem sempre fácil de se perceber: o quanto a infância e puberdade podem interferir na constituição do ser adulto, e de como a cabeça da pessoa influi muito mais do que podemos supor no funcionamento do organismo. A fisiologia, a psicologia e ciências biomédicas têm olhado com muito mais atenção alguns aspectos que eram pouco levados a sério em um passado relativamente recente.


Recomendação de leitura:

Como já disse, todo o ideário de Reich é extremamente polêmico, contando com grande número de opositores. Mas como a psicanálise é bastante cara à Filosofia, é importante verificar como se deu o desenvolvimento de um pensamento que tem encontrado mais eco nos dias de hoje do que no auge de seu surgimento.

REICH, Wilhelm. Análise do caráter. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

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