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segunda-feira, 18 de março de 2019

Navegações de cabotagem – O Morro do Maluf no Guarujá: uma vista para a beleza e para o consumo conspícuo

Olá!


Com o tamanho da costa do país do futebol, não é de se estranhar que os nossos principais destinos turísticos sejam as cidades litorâneas. Feriados prolongados são sinônimo de formigueiro à beira-mar, com os consequentes engarrafamentos das rodovias que cumprem a árdua tarefa de dar caminho às praias. É assim mesmo – sol, mar, corpos bronzeados, cerveja e churrasquinho são a combinação perfeita para 99% por cento dos brasileiros. Eu estou no percentual restante.

Ora, direis, que te faz tão rabugento? Nada de substancial. É um misto de frustração com overdose de areia, e acabei perdendo um bom tanto da graça de ficar com o sal grudento nas costas, com a areia urticante nos pés, os mil e um cremes para evitar as queimaduras que me vêm só do mormaço, das intermináveis filas do pão, da carne e da novalgina. Enfim, houve um ponto de inflexão tal que o incômodo com o litoral se tornou maior que o prazer, só isso.

Claro que eu me refiro às repetições contumazes. Se tudo fosse uma grande novidade, com certeza pensaria diferente. Se alguém me convidar para conhecer Jericoacoara ou Porto de Galinhas, arrumo as malas em cinco minutos. Mas a costa paulista, conheço-a toda, de inúmeras farofagens feitas desde a época de pequeno, embora tenha mais de trinta anos quando fui pela última vez às praias do Vale do Ribeira. Acho que iria para lá de boa. É... boa ideia. Vai para a lista de roteiros.

Mas não é só de orla que vivem as cidades do litoral. Algumas são verdadeiramente grandes, centros importantes, tanto nas finanças quanto na cultura, e já fui a Santos só para levar a patroa para ver o time da casa. Tenho também alguns parentes em Itanhaém e um primo em São Sebastião: visitas também são bons motivos para descer a serra. E há concursos públicos.

Mais um? Mais um. Do filho mais velho novamente? Do filho mais velho novamente. É meu jeito de cooperar, entrando com gasolina e pedágio, enquanto ele entra com inscrições e sapiência, já que não posso nem quero fazer as provas em seu lugar. Estamos rumando para o Guarujá, a Pérola do Atlântico, que, para quem não sabe, é totalmente destacada do continente, acessível por balsas ou pontes.

A prova do concurso foi realizada em uma escola de Vicente de Carvalho, o distrito pobre da cidade, perto do porto que ladeia o estuário de Santos. Não tinha nada para fazer por lá em um domingo bem cedinho, nem tomar café em um boteco minimamente confiável. Nesse diapasão, melhor seria encher os olhos com alguma bela vista, nessa cidade que é conhecida como uma das mais bonitas de todo o litoral paulista. O mirante mais próximo e mais fácil é o Morro do Maluf, e é para lá que eu vou, em demanda do meu cafezinho. Achei em um bar que fica no pé de tal logradouro.


O Maluf é um promontório que se projeta mar adentro, de modo a fazer divisa natural entre as praias de Pitangueiras e Enseada. Seu nome nada tem a ver com o famoso político, mas com o empresário Edmundo Maluf, que costuma dar festas de arromba em sua casa localizada no morro. Sobrou o nome e a profunda visão que se tem do mar.


O nome oficial deste mirante é outro. Chama-se de Morro da Campina, mas foi consagrado com o nome tipicamente libanês. Há dois pontos por onde se pode acessá-lo: pela praia das Pitangueiras, cheia de cascalho, por onde temos as portarias dos principais prédios, e que é mais próximo às pedras da orla...


... e pela praia da Enseada, por onde é possível chegar à parte mais alta do morro, cuja ladeira passa por meio do que restou de bosque no local. Da orla, é possível ver o paredão que o pessoal do rapel usa em suas radicalidades. Já, já volto a falar sobre isso.


Quando nós chegamos ao morro, ainda estava bem cedo e tínhamos a “friaca” matinal, com o céu bastante encoberto e meio escurão. Os poucos corajosos que se atreviam pela orla não estavam lá para praticar banhismo. Pelo cheiro de tecido queimado, era outro tipo de atividade. Para quem já foi em São Thomé das Letras dialogar com os artesãos locais, não há muito conservadorismo a ser colocado.


Pela entrada de Pitangueiras, a rampa é toda murada, e, mesmo naquela hora da manhã, não há lá muitas vagas para se parar o carro. Entretanto, é dali que se pode observar a água do mar batendo nas pedras e fazendo sua espuma. Já sentiram uma estranha sensação de que o mar te puxa em mergulho suicida? Pois é, neste lugar me dá esse negócio.


Já pela entrada da Enseada, é possível chegar no topo do mirante. O morro tem uma culminância de 40 metros de altura, contando, evidentemente, do nível do mar. O que lhe restou de vegetação é de gramíneas na parte exposta ao front marítimo, e um quase desaparecido pedacinho de mata atlântica na parte de trás.


É daqui que temos a vista mais bonita, de toda a longa praia da Enseada, e é daí que aprendemos um pouco de geografia: uma enseada é uma espécie de curvatura na linha costeira que forma uma reentrância, mais aberta que uma baía, mas mesmo assim facilmente delimitável. Neste caso, a praia fica entre o Maluf e o Morro da Península, lá do outro lado.


Os antigos marinheiros gostavam de aproveitar estes acidentes geográficos porque os cabos produzem quebra-mares naturais, fazendo com que as águas em seu interior fiquem mais mansas do que em mar francamente aberto. Além disso, os avanços de terra adentrando o mar costumam propiciar um pouco mais de profundidade para as embarcações acostarem.


Podem perceber que, pela mudança de luminosidade e pelo incremento populacional, nós ficamos um tempão lá em cima, já que não havia pressa nenhuma. A princípio, era possível complementar as contemplações ambientais, como as várias ilhas que guarnecem aquele pedaço de litoral, como a Pompeba, para o lado das Pitangueiras; a Moela, para quem olha no sentido das Astúrias, ou a das Cabras, fotografada aí em embaixo.


No entanto, a preguiça matinal vai se esvaindo e intervenções humanas passam a ser mais frequentes que ilhotas ou ondas que batem em pedras. O Maluf, como eu já disse, tem um belo paredão para quem gosta de praticar rapel. Sinceramente, não me vejo praticando esse tipo de diversão, pelo mero aspecto prático de que é muito tempo perdido com parafernálias e segurança para descer uma encosta. Mas admiro quem curte – sou cagão para alturas.


Mais longe, sim, algo que eu adoraria. Uma burguesíssima lancha singrando o mar e fazendo rodeios para lá e para cá, a esmo. Também vi alguns jet-skis, e meu grande barato nem seria uma lancha, mas um barco a vela, o que não significa que não aceitaria de bom grado fazer um rolê náutico em uma dessas.


Algo muito digno de nota, que necessitará de um relatozinho básico: quando eu era pequeno, meu padrinho tinha uma Kombi e outro tio tinha uma Variant, as duas em um estado de conservação que não passaria nem em uma rua secundária, quanto mais em uma rodovia. Mas eram outros tempos e isso não vem ao caso. O que importa era que meu avô elegia uma praia qualquer e para lá íamos farofar em comitiva, com veículos cheios como um ovo cozido. Lembro bem do Maluf, porque era diferente das habituais “planícies” do litoral sul. Já existia o Grande Hotel, mas, no geral, era possível ver uma boa parte dele de longe. Acontece que sua parte traseira está absolutamente tomada por prédios. Não se sabe que há uma elevação quando se chega pela avenida praieira. Ela está completamente cercada pelas edificações.


É bem verdade que ainda existe uma pequena parte do bosque, mas somente é possível entrevê-lo entre um edifício e outro.


O mesmo pode se dizer com relação ao morro descoberto. O paredão abaixo não pode ser aproveitado para praticar rapel, já que vai dar na área dos fundos dos prédios que ficam no acesso de Pitangueiras. Também aqui boa parte do espaço está oculto. A única parte ainda aberta é aquela que está defronte ao mar.


A questão se radicaliza no topo. Se por um lado a praia da Enseada é visível de maneira majestosa, a de Pitangueiras ficou praticamente toda escondida, sendo necessário encontrar um ponto exato para conseguir enxergar uma nesga da areia. Que puta desperdício de beleza. Desperdício, não; privatização, isso sim. Quem está nos prédios tem a visão que foi roubada dos transeuntes.


Isso me obriga a retomar a questão tratada no texto anterior, e recomendo sua leitura. Mas dá para entender este post com independência. Mercadorias tem valor de uso e valor de troca, e só assim são mercadorias. Algumas coisas têm só valor de uso, como o ar que se respira, e não existe essa coisa que tenha valor de troca puro. Mas existem muitas relações de equivalência. O valor de uso só se realiza no próprio uso ou no consumo, e só ganha valor de troca quando se permuta com valor de uso de outras espécies, que dificilmente possuem correlação direta, do tipo “um quilo de arroz vale um quilo de feijão”. Por exemplo, Karl Marx utiliza a comparação entre uma peça de roupa e o tecido necessário para fazê-la. Pensando em termos de uso, um casaco serve para guarnecer o corpo contra o frio, e o linho serve, ora essa, para fazer casacos. Digamos que, colocados em seus valores de troca, um casaco equivalha a duas medidas de linho. Em um pensamento simplista, poderíamos afirmar que a correlação direta se dá na quantidade necessária de linho para manufaturar o casaco, mas, na realidade, esta dá e sobra – há mais linho do que o necessário. 

Por que essa diferença nos valores de troca? Por que há um terceiro elemento, um valor de trabalho embutido no casaco que majora aquele próprio com relação ao material linho. Afinal, não basta jogar o fio para o céu e obter a peça pronta. É preciso tecer, cortar, alinhavar, costurar e dar acabamento. Da mesma forma, qualquer mercadoria carrega consigo uma parcela de valor do trabalho que foi aplicado para constituí-la, mesmo que seja um simples extrair da natureza.

Todas as mercadorias guardam entre si uma correlação de valores de troca, ainda que de maneira distante. Um casaco vale duas medidas de linho, que vale três garrafas de uísque, que valem um quintal de alface, que valem cinco barras de estanho e assim sucessivamente, todos determinados pelo somatório do valor concreto dos materiais e do valor abstrato do trabalho, lembrando que o valor dos materiais já inclui o trabalho que se houve para obtê-lo.

Acontece que, na prática, não vamos à quitanda com barras de estanho para comprar alface. Há inúmeros contratempos para limitar o escambo direto: dificuldade de mobilidade, falta de interesse em uma das partes, limites na avaliação dos valores, impossibilidade de fracionamento em mercadorias indivisíveis. Para solucionar o problema, nasce uma mercadoria cujo valor de uso consiste exatamente no seu valor de troca: o dinheiro, um equivalente universalmente aceito que resolve a questão dos valores de troca. Assim, um casaco custa a mesma quantia em dinheiro das medidas de linho, das garrafas de uísque, da alface, do estanho e de tudo o mais que possua valor de troca, de modo a ser sua posse a necessidade básica para comerciar.

Ocorre que o dinheiro funciona tão bem que esquecemos a verdadeira razão de sua existência, a de representar valores de troca vinculados a mercadorias fisicamente existentes, e passa a ter vida própria. Ele ganha a primazia na relação comercial, e tudo dentro dela passa a ser expresso em cifras, como se o dinheiro fosse uma espécie de fantasma, um componente que surge não se sabe de onde, mas que embute em si todo o campo de relações de trabalho que são parte integrante dos valores de troca das mercadorias. As coisas têm preço, mas já não sabemos bem de onde vem, aparecendo como um feitiço, e não de nossa força de trabalho. Esse é o fetiche da mercadoria.

Percebam que o termo fetiche não tem aqui a conotação sexual que normalmente lhe damos, danadinhos que somos. Portanto, não está ligado apenas ao desejo e ao consumo excessivo, tão característico das elites, mas a toda e qualquer relação de consumo. Afinas de contas, a mercantilização se dá até com bolinhas de gude, e sua cotação no mercado não é algo que se explicite facilmente na etiqueta à borda do pote que as guarda. O fetiche vem da ideia de enfeitiçamento que dá ao dinheiro uma espécie de carga sobrenatural. Portanto, Marx não estava se ocupando em explicar o fenômeno do culto ao supérfluo, e sim à alienação causada pelo fetiche da mercadoria. Mas o fenômeno do preço caro que atrai mais compradores também já foi estudado, e seu principal analista foi o norte-americano de origem norueguesa Thorstein Veblen.

Veblen foi um economista que abraçou um socialismo não-marxista, cujo principal objeto de estudo foi a classe ociosa gerada pelo capitalismo. Os magnatas dos inícios da Revolução Industrial auferiram ganho tal que lhes era impossível consumir toda a própria riqueza, por mais perdulários que pudessem ser. Como distintivo dessa nova classe, nasce um novo culto ao ócio e o consumo conspícuo, termo utilizado por nosso autor para designar o ato de adquirir bens com o único propósito de ostentar riqueza.

A humanidade, diz Veblen, só saiu da sociedade igualitária quando a noção de propriedade individual passou a fazer parte dos objetivos de cada um de seus membros. Mas uma das chaves do sucesso não está apenas na maior aquisição de terras, e sim na apropriação do trabalho alheio, começando justamente pelo das próprias mulheres. Uma vez desobrigado de atividades laborais, essa casta passou a cultuar o ócio, que ganhou um aspecto de quase sacralidade. Devemos nos lembrar que a própria religião dá ao trabalho um estatuto de castigo (“comerás o pão com o suor do seu rosto”), o que reflete o pensamento que vê na atividade voltada a coisas supérfluas como uma espécie de recompensa pela capacidade de ter posses, o que deve ser ostensivamente demonstrado a todos os nichos sociais que o cercam.

De fato, no espectro das classes, quem mais tem interesse em se diferenciar são aquelas do topo da pirâmide. É a posição psicológica de quem precisa ser fonte de determinação de regras. Em uma sociedade guiada pela mercadoria, quem nos indica quais são as melhores são aqueles que as podem consumir sem limites. Passa imediatamente pela nossa cabeça que as mercadorias mais caras são aquelas que melhor se enquadram como objetos de desejo. Portanto, o melhor champagne, o melhor carro, a joia mais preciosa, o estilista mais renomado são justamente aqueles consumidos por quem podem pagar mais. E isso inclui casas à beira-mar.

Percebam como as marcas que produzem mercadorias caras nunca baixam seus preços. Não há uma Ferrari popular, uma Mont Blanc linha B, uma Gréville de baixo custo. Fazer isso significaria perder o seu público habitual, que está disposto a pagar muito caro.

E caro é o preço de um imóvel no interior da faixa de areia, principalmente em um morro como o Maluf. Caríssimo. Somente um estado psicológico em que alguém deseja provar que pode mais do que os outros explica o tanto que se paga a mais por um patrimônio nesta posição. Um imóvel do outro lado da via é muito mais em conta, e a única diferença é atravessá-la. Somente o desafio da inveja, de causá-la, pode explicar o tanto a mais que se investe. Ainda mais porque, junto com este sentimento, vem a raiva pela privatização da paisagem. A visão que se tem da elite é duplamente malfazeja: por um lado, invejamos a posição e as benesses que possuem; por outro, morremos de ódio porque esfregam sua opulência em nossas caras.

O problema é quando sua capacidade de ostentar interfere diretamente em direitos básicos, simples como ter a visão de um morro na beira da praia. Os diferentes governos não deveriam permitir, na minha humilde opinião, a construção de empreendimentos em área que deveria ser pública. O que custa para alguém subir o morro ao lado de todos os outros cidadãos para apreciar o mirante? Os impostos pagos não podem justificar a concessão à vaidade de meia dúzia de abastados em detrimento de todos os demais, mas o fato é que isso ocorre.

O Morro do Maluf, nesse sentido, é um monumento à exclusão que beira a tolice. Por mais que eu entenda que os sonhos de uma sociedade equânime sejam utópicos, certas compras o dinheiro não deveria poder fazer. Nestes tempos em que elegemos governos que primam pela prosperidade das camadas mais abastadas, desprezando ações sociais, não dá para manter muito otimismo. Bons ventos a todos, na medida do possível.

Recomendações:

O Guarujá tem se notabilizado não só pela beleza, mas pela balneabilidade de suas águas. Para quem estiver a fim de uma praia, é o passeio ideal. Fica bem perto, a cerca de 90 Km da capital.

A teoria de valores de Marx está logo nos primeiros capítulos de seu capolavoro, O Capital, a quem já recomendei, com as devidas contingências, neste texto. Vão lá.

Veblen tem uma abordagem bastante original sobre o consumo conspícuo, embora tenha sido considerado um outsider da Economia por um bom tempo, já que a pauta racionalizante era mais significativa do que os aspectos psicológicos que ele gostava de lançar mão. Segue sua obra mais importante:

VEBLEN, Thorstein. A Teoria da Classe Ociosa. Col. Os Economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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