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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Sobre tristeza e barcos a vela

Olá!

Aconteceu um negócio muito chato no prédio em que trabalho há poucos dias atrás. Uma funcionária, bem menina ainda, cometeu suicídio por ingestão excessiva de medicamentos, a famosa overdose. Ao que parece, começou a desenvolver ainda recentemente um quadro depressivo, logo após ter sofrido algum tipo de problema locomotor. Não me constam muitas informações a mais, a não ser o fato de que ela estudava na mesma faculdade que meu filho. Triste, verdadeiramente triste.

Já cuidei do tema suicídio por algumas vezes neste espaço, como quando falei sobre a pulsão de morte neste texto, ou quando pensei em sua dimensão estética (aqui), quando o associei ao martírio (neste), ou ainda quando discuti sobre a eutanásia. Mas o fato é que, quando nos defrontamos de maneira direta com o assunto, não podemos deixar de pensá-lo como resultado das dificuldades em lidar com o próprio eu, o que farei agora.




Em primeiro lugar, precisamos pensar no que é a consciência de finitude e na função individual no mundo. Se levado a cabo e a rabo, perceberemos que os motivos racionais pelos quais permanecemos no mundo são bastante pobres. Por mais que sejamos bem sucedidos em tudo na vida, o que é uma enorme utopia, a sensação de que as cortinas do palco podem ser fechadas a qualquer instante perpassam nossos pensamentos e relações. Sempre pensamos em nosso legado como método de permanência em um mundo que já não terá nossa presença. É uma das poucas maneiras que encontramos para justificar que nossas práticas éticas não se baseiem unicamente no máximo de prazer pelo maior tempo possível. Há uma coisinha chamada alteridade que nos impede de um hedonismo completo, porque, afinal de contas, eu preciso pensar no outro, me colocar diante do outro, fazer com que o outro me reconheça em seus próprios sentidos de alteridade. Eu sou eu para mim e para o próximo, é o que tentamos fazer reconhecer. E apostamos na persistência da memória e em sua transmissão para que, de uma forma ou outra, sejamos eternos. Por conta disso, sonhamos sempre em deixar não só uma obra concreta e tangível, mas também abstrata, um morar eterno nas mentes e principalmente nos corações. Gostamos de nos sentir queridos e reconhecidos por aqueles que nos rodeiam, e sentimos necessidade de que esse círculo tenha o maior diâmetro possível, tanto em seu plano temporal quanto em sua dimensão espacial.

Acontece que nem sempre isso é possível. Em nossa vida, há uma tão constante alternância entre aquilo que queremos e aquilo que podemos, e por consequência há um tão constante ir e vir de convicções que dificilmente podemos arrogar uma firmeza de propósitos que dure pela vida inteira. E a cada vez que atingimos estes pontos de inflexão, algo fica para trás, com sua tristeza correspondente.

Toda tristeza está ligada a uma perda. E é de acordo com nossa capacidade de detectar seu foco que podemos melhor isolá-la (e, talvez, resolvê-la). 

Quando pensamos em tristeza, muito provavelmente lembramos imediatamente daquelas mais agudas, como a morte de uma pessoa querida. Nesse tipo de perda temos um objeto bem claro e bem definido, que varia de intensidade: perdemos nossos pais, e geralmente isso é muito dolorido; perdemos um amigo de longa data, perdemos um emprego, perdemos um objeto que gostávamos muito, perdemos uma oportunidade, perdemos uma viagem, um encontro; tudo isso são perdas, que nos causam maiores ou menores danos. Como sabemos exatamente o que nos entristece, damos a esse sentimento o nome de luto.

Como o luto é bem marcado, conseguimos ritualizar facilmente nossa conduta enquanto durar seus efeitos. Deixamos de fazer certas coisas, como comparecer a festas, ficamos um tanto reclusos, e até algum tempo atrás, era costume vestir-se de preto e rezar-se uma missa de sétimo dia. No caso da morte de alguém, há também o esvaziamento dos armários, a distribuição dos badulaques. Se o problema foi a perda de um emprego, compra-se um jornal com classificados, corre-se ao banco para sacar direitos, vai-se homologar a rescisão do contrato e tudo o mais. Vejam como tudo isso é facilmente identificável e vinculável a um evento. Desta forma, o luto é uma forma de tristeza com causa certa e bem delineada. E, salvo exceções, tem algo como uma data de validade, que chega com a cura das feridas, mesmo que estas deixem cicatrizes. Após o período de baixa, as cabeças se reerguem e a vida continua.

Há outro tipo de tristeza, mais difuso, que não está vinculado a um evento claramente visível, mas que faz parte da constituição de uma pessoa. A tristeza aqui não tem a mesma data de validade do luto. Ela é mais permanente e menos possível de ser atribuída a uma causa. Não há nem evento crítico nem divisor de águas. É a melancolia.

Na melancolia, também existe a perda. Só que aqui não temos um objeto claro que a identifique. Talvez ela esteja muito mais ligada a uma forma de descrença na capacidade em realizar e deixar legados dignos de recordação do que propriamente em algo palpável. Há algo perdido que o melancólico tenta buscar dentro de si, e, como sempre ocorre em processos subjetivos, essa busca se torna sempre ambígua. Enquanto no luto temos uma plena consciência do que nos angustia, na melancolia é adicionado esse elemento muito mais cruel, que é o de tentar resgates dentro das instâncias inconscientes. Freud entende que o melancólico tem uma dificuldade narcísica, ou seja, é uma inadequação do si-mesmo.

(Explicando rapidinho o que é narcisismo: Narciso é um personagem da mitologia grega que seria uma representação da beleza corporal perfeita. Seduzia todos, homens e mulheres, mortais e deuses, mas era tremendamente senhor de suas qualidades, o que irritou profundamente a deusa Nêmesis, ao passar-lhe sonora esnobada. Como castigo, a nefanda divindade obrigou o orgulhoso mancebo a olhar seu próprio reflexo na água. Fascinado com a própria beleza, Narciso nunca mais conseguiu tirar seus olhos do espelho, o que o levou a definhar e morrer. Narciso, desta forma, é o símbolo da insensibilidade causada pela exacerbação da vaidade, mas também é uma representação do amor próprio).

Só que, mesmo com esse caráter soturno, onde há uma permanência do estado de tristeza intrinsecamente ligado à estrutura da pessoa, ainda assim o melancólico consegue compreender sua função e seu lugar no mundo. Há, talvez, um sentimento de alienação com relação ao sentido geral da existência, mas ainda existem porquês que o situem e lhe justifiquem. Em resumo, a pessoa tem consciência de que é útil, de que as pessoas a percebem de alguma forma, de que existe uma alteridade. Ou seja, há um eu, uma identidade, ainda que adoecida. O que aconteceria se até mesmo isso se perdesse? O que aconteceria se houvesse uma perda de si mesmo? É neste caso em que temos a depressão.

A depressão é um tipo de tristeza muito mais atroz, porque nela temos um desligamento com o mundo. Se na melancolia já temos dificuldade de localizar as perdas, no caso da depressão essa percepção se torna quase impossível. O depressivo já não se encontra no mundo, simplesmente pelo fato de não se encontrar a si próprio. Tudo o que fizer, derivará em tédio e mais tristeza, daí a imobilidade tão característica desse estado. A palavra mais característica do deprimido é desencanto.

As fontes do desencanto são muito variadas, e muitas vezes difíceis de detectar. O seu mecanismo é mais ou menos o seguinte: temos uma série de desejos e tendências na vida, que de uma forma ou outra vão sendo reprimidos no transcurso da existência. Queremos muito alguma coisa, e esse querer vai persistindo até que ocorra uma das duas alternativas – ou esse desejo se realiza, ou é abandonado. A realização do desejo, no plano psicológico, não se dá apenas na concretização. Também é possível ocorrer uma compensação, como no caso dos carros com volumes altíssimos para compensar um desempenho sexual abaixo do desejado; é possível existir uma substituição do objeto de desejo, ou lapsos e atos falhos, tão bem descritos por Freud, que são formas abstratas de realizar desejos. Isso acontece com todos, indistintamente. Só que uma das formas de lidar com o desejo é reprimi-lo, e isso faz com que, no mais das vezes, surja um ódio contra o desejo inalcançável, ainda que de forma irreal.

Vou dar um exemplo que ocorre comigo mesmo. Desde muito pequeno, sempre adorei a água, e, por consequência, ir à praia era o passeio por excelência. Nunca tive medo de ir para o fundo da praia, além da quebração, mesmo mal sabendo nadar cachorrinho. Da orla, gostava muito de observar os barcos ao longe, e sempre tive a vontade de navegar. Não em um navio, onde é reproduzida uma ilha – os cruzeiros, por exemplo, são simulacros de terra firme, não os compreendo muito bem. O que eu queria era um veleiro. Um veleiro pequeno, daqueles em que você controla as velas com suas próprias mãos. Vida que vem e que vai, e a cada dia que passava cada vez menos eu via possível o meu veleiro, uma vida ligada intimamente ao mar, já quase velho que sou. E daí a desilusão vai afastando as ondas dos meus sonhos, e cada vez menos a praia me seduz, a ponto de que tudo o que há de ruim em uma viagem à costa começar a aflorar com muita força. O sol excessivo e suas queimaduras, a areia que suja o corpo, o sal que torna a pele grudenta, a necessidade imperiosa de sombra, as dificuldades do saneamento básico, as filas enormes para comprar o pão nosso de cada dia... Tudo vai tornando a praia algo chato, repulsivo. A impossibilidade do veleiro não só me afasta do desejo direto de usufrui-lo, mas até mesmo do ato de ir ao litoral. Ir à praia poderia continuar sendo algo prazeroso, independentemente do barco, mas não. As uvas estão verdes. Para agravar, as crianças não precisam mais de mim para se divertir na praia. Se eu tinha o viés de transferir meu prazer para eles, isso hoje não é mais necessário.

Isso significa que eu seja uma pessoa deprimida? Não necessariamente. Pode ser que ainda eu volte a apreciar as viagens a beira-mar. Esse não é um estado permanente, já que somos humanos, variáveis por definição. Também não significa que eu não vá à praia se convidado; há o fator companhia, o fator comida, o fator histórico – não deixaria de conhecer a FLIP por ser Parati uma cidade praiana. Mas é um exemplo quase perfeito do que origina um estado depressivo. Não é perfeito porque é descritível. Na depressão isso não acontece.

A depressão vem disso: sem que reconheçamos diretamente, começamos a descrer de nossa função no mundo, e esta descrença se espraia, lentamente, para absolutamente tudo. Como as causas vão se tornando tão dispersas, todas as vezes que tentamos diagnosticar o porquê da depressão de uma pessoa damos tiros n’água.

Em indivíduos mais velhos, é mais fácil de entender os estados depressivos. As impossibilidades físicas, as doenças degenerativas, as pessoas que se vão, a percepção do pouco tempo restante, os custos de oportunidades pelas quais não se fizeram opção durante a vida, o mundo que muda, tudo isso faz com que esse processo de perda de pertença se torne mais óbvio, e é preciso muita experiência e autoconsciência para não ser afetado por uma tristeza mais persistente. Mas vemos no nosso mundo moderno quanto essa patologia se espalha por indivíduos mais jovens, como é o caso da menina que deu origem a este texto.

É sempre muito difícil tentar compreender esse fenômeno, principalmente se levarmos em conta que não há um fator único para explicá-lo. O que faz com que um indivíduo tão jovem perca seu amor-próprio pode ter diagnóstico clínico, não apenas psicológico. Há hereditariedade em jogo, há o mundo calcado no ter, há a sociedade que se prima pelo prazer, há os modelos sociais nos quais nem todos se encaixam, mas há pessoas que vivem absolutamente bem com isso. E também acho que há fatores levados mais a sério apenas em tempos mais recentes. É o caso do bullying.

Por muito tempo, achei isso uma besteira, devo confessar. Achava que bullying era algo de crianças frescas, que o mimo dos pais fazia com que não resistissem a nenhum tipo de pressão externa. Mas a informática, mais especialmente a velocidade de transmissão de informações que a internet proporciona, fez escalar o número de relatos de suicídios de jovens a índices preocupantes. São inúmeros, que podem ser pesquisados facilmente: Amanda Todd, Alyssa Funke, Andrea S., Lamar Hawkins, Felicia Garcia... Peguei esses nomes todos em menos de um minuto de pesquisa. É desesperador.

Entendo que o bullying é pernicioso porque devasta os sustentáculos psicológicos da pessoa. Cada vez que alguém é atacado, principalmente por características sobre os quais não tem controle, como obesidade, homossexualidade, deficiências físicas – mesmo banais, como uso de óculos, seu amor-próprio sofre algum tipo de fratura. A pessoa começa a utilizar seus mecanismos de repulsa contra si mesmo. O barco que não posso atingir, no exemplo anterior, é externo a mim. Pode me causar sofrimento, mas não é inerente à minha sobrevivência. O bullying ataca justamente aquilo que é indissociável da pessoa, e por isso fere fundo. Não vou conseguir, por exemplo, deixar de ser baixinho, ou narigudo, ou ter sexualidade aflorada, são coisas que pertence ao meu ser, são constitutivos do meu indivíduo, e iniciar um mecanismo de repressão a estas características vão me tirar o lugar do mundo, inclusive meu desejo de legado. Tudo o que eu quererei é não-ser, e, na sequência, não-existir. Se essa ideia se multiplicar a ponto de suprimir meu instinto de sobrevivência, começarei seriamente a buscar um processo de escape definitivo, e para aplacar a dor nada melhor que não haver o que doer.

Há uma vacina para isso, embora não seja aplicável a todos os casos. Da mesma forma que a inoculação de anticorpos torna o corpo imune às doenças, é tarefa importante dos pais e orientadores educacionais preparar seus filhos para os “vírus” que enfrentarão, inevitavelmente. Se possível, ainda antes de ocorrer o contágio. Os pais são o primeiro contato que a criança tem com a sociedade, o que os torna um porto seguro. As crianças aprendem a confiar nos pais, desde que estes se tornem dignos disto (há casos em que os próprios pais são fonte de bullying, mas não tenho como me estender muito nesse assunto). Conversar claramente com os filhos sobre o modo como age a ciranda social, com o cuidado de não torná-los arredios, faz com que seu organismo psíquico esteja preparado para reconhecer e se defender de uma ação ofensiva. Não se trata de superproteger, mas de colocar o mundo como ele é e deixar um espaço disponível para o afeto. Essa correspondência entre ensinamento dos pais e realidade ocorrida no mundo lá fora fará com que essa relação de confiança aumente, e a criança terá um esteio ainda mais firme. Os parafusos que sustentam seu amor-próprio estarão bem atarraxados e o indivíduo, já adolescente, saberá que as ofensas são tão transientes quanto qualquer outro organismo que tente contagiá-lo.

Por fim, gostaria de falar algo sobre a ideação suicida. A vontade de se matar não é só uma violação moral; ela vai contra a natureza da espécie. Há casos em que situações extremas podem fazer com que a pessoa queira morrer independentemente de um processo de depressão (e até mesmo leve a cabo a tarefa), como no caso de um motorista que, por imprudência e negligência atropela e mata crianças, não suportando o arrependimento, mas essas são situações mais difíceis de prever e controlar, porque há o ímpeto no meio do caminho. Mas a confissão de uma intenção ao suicídio deve SEMPRE ser levada a sério. Temos a tendência de acreditar no senso comum que diz que alguém que quer se matar não conta nada a ninguém. Vai lá e faz. Mas procurar alguém para contar essa vontade pode ser a ÚLTIMA tentativa que um ser humano faz antes de cometer o ato. Mesmo que a intenção não seja real, essa pessoa PRECISA de ajuda, nem que seja um ombro para chorar. Há coisas difíceis de admitir, e dizer que a vida não vale mais a pena é uma das piores.

Um bom ano a todos.

Recomendação de leitura:

Citei Freud no texto, mas não detalhei pormenorizadamente como ele encara a questão da depressão no interior da psique humana. Se o fizesse, teríamos uma postagem muito longa, o que não é minha intenção. Se o assunto interessou a vocês, sugiro o livro abaixo, de onde se pode extrair o ideário freudiano relacionado ao tema.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Obrigado à Rê por deixar eu utilizar sua foto na ilustração deste texto.

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