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terça-feira, 28 de agosto de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (19 - Filosofia da Mente)

Olá!


Mesmo precária, como de resto são quase todas as escolas públicas, a que eu estudei no Fundamental tinha lá os seus atrativos. Duas quadras, uma delas muito boa, dois níveis de pátio, cantina bem fornida, com seu famoso x-miséria (pão, tomate, alface e maionese) e um laboratório. Não era grande coisa, e os professores de Ciências sofriam para acomodar todo mundo lá dentro, mas ele tinha um cérebro em uma cuba.

Se estava imerso em formol, álcool ou outra beberagem qualquer, não sei dizer. Sei que era um líquido incolor, que servia para conservar aquela massa cinzenta feiosa, pouco mais consistente que um pudim, cheio de volutas e reentrâncias. Duas coisas me traziam questionamentos: a primeira e mais infantil era como aquele troço imenso cabia em uma caixa craniana, ao que a paciente professora Vera Lúcia explicou que o cérebro na cuba não estava em seu tamanho convencional, porque o relaxamento causado pelos líquidos e a ausência da “embalagem” da cabeça faziam com que este se expandisse. A segunda era, proporcionalmente à idade, mais humanista e filosófica: quem seria o ex-dono daquele cérebro? Certamente era um indigente, de nome incerto e não sabido, proveniente de algum gueto desse mundão. Eu me perguntava se ele concordava em estar ali, exposto na nudez extrema da sede de seus pensamentos, mas depois eu mesmo me respondia que ele não estava ali porra nenhuma, que aquilo à minha frente era um salvado do saco de ossos que virou seu cadáver após a morte, quando ele já não sabia de mais nada, nem do final da novela, nem dos resultados da loteca, quanto mais a destinação de seu telencéfalo extremamente desenvolvido, apesar da pobreza. Eu era criança, mas pensava nessas coisas.

Mas teve gente que tinha outras ideias quando via diante de si um cérebro encerrado em uma cuba. Partindo da premissa de que o cérebro é a matriz que processa toda a realidade ao redor de um corpo, cujas informações chegam a ele captadas pelos sentidos e transmitidos pelas fibras nervosas, imagina-se uma situação em que toda essa parafernália seja substituída por dispositivos computacionais. O cérebro seria ligado ao computador de tal forma que este lhe estimularia cada área de maneira a simular sensações visuais, táteis e demais quejandos como se fossem de uma pessoa com todos os seus órgãos e vacinas em dia. Que tipo de realidade esse cérebro vivenciaria? Ela seria menos real do que a nossa? Aliás, não poderíamos, nós mesmos, ser cérebros em cubas? Somos aquilo que nossas mentes dizem que somos? Essas são perguntas de um dos mais novos campos de investigação filosófica, a Filosofia da Mente. Vamos falar sobre ela.


Toda a experiência mental que eu descrevi acima pressupõe uma dificuldade em definir o que é essa tal de mente (que vem do latim mens). Se a professora Vera Lúcia permitisse, poderíamos tirar aquele cérebro da cuba e fazer picadinho dele. Ainda que com pouca clareza naquela maçaroca, veríamos que tal órgão é composto por dois hemisférios divididos em lobos, que, por sua vez, são ligados por um conjunto de fibras chamado de corpo caloso, uma ilha de substância branca espraiada pelas estruturas cinzento-opacas (falei sobre a função dessa ligação neste texto). Se pudéssemos olhar em um microscópio, veríamos as células cerebrais, os neurônios, com sua inconsueta forma alongada e ramificada, sabendo que as sinapses entre eles conduziam os impulsos elétricos que fariam aquele mendigo pensar, seja para bolar novas maneiras de pedir comida, seja para encontrar o canto onde, abatido por uma pneumonia, por um golpe de faca ou por indisposição em seguir na miséria, bateu com as vinte-e-uma. Mas, vejam vocês, ainda que chegássemos a nível molecular, não conseguiríamos saber nada sobre o pensamento de nosso pobre-diabo. Não está inscrito no corpo físico nenhum indício do que ansiava ou gostava. Não posso vasculhar o cérebro do gajo para encontrar uma plaquinha onde está escrito “coisas que eu gosto”, e lá encontrar um minúsculo camarão, uma micro-batata cozida ou um copúsculo de chope. Daí, encontramos a grande dificuldade de identificar cérebro com mente. Eles não são a mesma coisa; na verdade, um é suporte para o outro. Notem bem a natureza da questão. Temos algo em comum como seres humanos: cérebros. Também temos mentes, mas a única forma que se tem de pesquisar o que há nela é o depoimento. Ou seja, a subjetividade é insondável, porque é possível mentir, é possível se enganar e é possível ter visões distintas da realidade, em um claro problema gnosiológico. A observação do cérebro só permite que se analise alterações de calor e fluxo elétrico, e ainda que isso indique a existência do pensamento, não lhe aclara o conteúdo. E isso só piora o guaio. Se cérebro e mente não devem se confundir, o que aciona a segunda?

Em uma perspectiva dualista, a resposta é simples: a alma. O cérebro (matéria) é capaz de processar pensamentos porque há uma segunda instância, imaterial, que dispara seu uso quando necessário. Desta forma, toda a carga subjetiva, que não conseguimos investigar na pesquisa histológica suposta acima, fica residente no espírito. Esta é, aliás, na concepção dualista, a melhor diferenciação possível entre um ser humano e os demais animais. Ter uma alma é um abismo intransponível entre ambos. O que é difícil de explicar é porque certas doenças ou acidentes que danificam o cérebro fazem com que a personalidade de uma pessoa mude. Em um caso onde a pessoa virasse um eterno comatoso, ok, poderia ser inferido que a alma nada poderia fazer em um cérebro avariado, mas basta observar o exemplo de Phineas Gage* para deduzir que o ferimento foi no cérebro, e a alma, em dimensão etérea, não deveria ter sido atingida pela barra de ferro. Se cérebro e mente não têm nada entre si, e a sede da subjetividade é a alma, não haveríamos de falar em mudança comportamental. Definitivamente, a mente é assunto complexo.

Evidentemente, muitos filósofos trataram do assunto desde os primórdios, mas é com René Descartes que, pela primeira vez, a mente é adotada como critério para aferição da realidade. Insatisfeito com os malabarismos metafísicos, Descartes criou uma nova metodologia para a ordenação do pensamento. Primeiramente, pôs todo o conhecimento possível no âmbito da dúvida. Diferentemente dos céticos, a quem a impossibilidade de conhecer levava a uma desanimada desistência, ele o fez metodicamente, de modo a que toda proposição passasse pelo crivo da clareza e da evidência. Um desses questionamentos centrais dizia respeito à realidade. O que nos fará considerar que algo existe?

A resposta é clássica e positiva: o cogito. A própria dúvida é prova disso. Aquele que duvida existe, porque comete um ato de pensamento. A alegoria do gênio do mal deixa as coisas bem resolvidas. Mesmo que uma entidade maligna produzisse toda a realidade circunstante de maneira ilusória, ainda assim estaria a produzindo para um sujeito, uma consciência que tem como propriedade a capacidade de ser enganada. Se é enganada, é porque pensa, mesmo que de modo errôneo. Eu penso, eu existo.

Descartes cria então uma distinção bem marcada entre mente e corpo. Note-se como ele trata a questão da mente com o mesmo dualismo corpo-alma que tratei acima. No entanto, como sói a um bom filósofo, não de maneira tão simples. Para ele, toda entidade humana possui duas instâncias, a res cogitans e a res extensa. Esta última é aquela que existe fisicamente, que se pode tocar, que ocupa um lugar no espaço e por ele se movimenta, uma coisa extensa, em uma tradução direta do termo. Esse é o sentido de extensão que Descartes utiliza, o de ter presença concreta, ainda que de maneira minúscula, como um átomo. Por sua vez, a res cogitans (coisa pensante) é imaterial, é o pensamento puro, o raciocínio que se desenvolve com os limites de sua liberdade dados pela res extensa, que é onde se instalam os sentidos que lhe trazem o mundo exterior. É nela que estão os componentes da racionalidade, como a subjetividade, a consciência, a memória e a intencionalidade, e, por isso, a razão é autossuficiente como origem do conhecimento. Os conteúdos providos empiricamente pelos sentidos não são nada sem o pensamento que os elabora; são vazios se não apresentados a uma consciência, que carregam e acrescem os dados preexistentes ao sujeito. Por isso dizemos que Descartes foi o principal racionalista da filosofia moderna (ele ainda fala das res divina, a substância de Deus, mas, na minha humilde, foi uma habilidosa “passada de pano” na questão da primazia da res cogitans, em um momento em que era assaz perigoso contradizer as regras da Inquisição, como provou seu quase contemporâneo Giordano Bruno – vide aqui).

Mas agora, a partir de meados do século XX, essa visão dominante cartesiana foi sendo inscrita para aposentadoria. A evolução nas Ciências Cognitivas, que aliam Psicologia e Neurociência foram oferecendo respostas melhores para questão da mente, a partir da descoberta de seu funcionamento a nível profundo. Excluído o componente metafísico dual, a pergunta filosófica passou a se voltar para a tradução dos processos mentais: como uma atividade orgânica pode ser vertida na razão, na emoção, na dúvida e outras disposições tipicamente mentais? A mente é algo que podemos replicar de um humano para uma máquina?

Vou iniciar com mais uma habitual historinha. Vou tentar ser breve, não desanimem. Quando eu estava na época de ir para o colegial, havia uma área em moda: Processamento de Dados. Movido por essa onda, fui estudar no caro colégio Anchieta, já que o Colégio Técnico Federal, o único curso público disponível, era impossível para alguém da minha cultura. A mensalidade comia quase todo o meu salário de arquivista, mas, mesmo assim, fui empolgado, como costuma acontecer com todo mundo que tem um novo projeto. O problema eram os livros, que custavam os dois rins e uma boa parte do fígado. Fui no sábado seguinte às demandas, em uma das livrarias do gênero. Foi a primeira vez que utilizei um recurso que nos acompanha, brasileiros, pelo resto de nossas vidas - o crediário. Em três vezes, mais especificamente. Ainda assim, eu estava contente, com duas sacolas de material didático nas mãos.

Estando alojado dentro do ônibus, me pus a conferir alguns deles. Como não sou curioso doentio, só folheei aqueles que não estavam plastificados, enquanto dos outros só batia o título com a onerosa lista. Um deles me chamou a atenção, não pela beleza, ou pela temática, ou pela dimensão, mas porque era possível sentir que havia algo pregado em sua contracapa posterior, pelo lado de dentro. Algo retangular, cheio de buracos. Não quis abri-lo dentro do busão, já estava atrapalhado com as duas sacolas plenas, e deixei para investigar o defeito em casa. Lá chegando, esqueci de tudo isso e fui jogar bola, que a vida tem sua hierarquia de importâncias.

"Lógica de programação" era o singelo título do livro, para uma disciplina chamada Fundamentos da Informática I. Só peguei o dito cujo no dia em que a matéria estava na grade, e o fiz tão correndo que nem lembrei do detalhe da contracapa. Só fui me desvencilhar do plástico de proteção em plena aula, e pude averiguar do que se tratava: uma placa de plástico transparente, com uma série de desenhos geométricos, como se fossem aquelas réguas de crianças: triângulos, quadrados, círculos e que-tais. A única pergunta cabível era: que porra é essa? Enquanto o professor mandava abrir o livro na página tal, eu estava contemplando a peça insólita, já meio alheado ao tema. Esqueci que não era curioso e aproveitei um respiro do professor Estanislau (vulgo Lalau, na época em que isso não era demérito) para levantar a dúvida existencial.

“Ô, professor... Prá que serve essa reguinha geométrica?”

A resposta do mestre revelava sua indignação:

“Isso não é uma reguinha geométrica, meu caro. É um normógrafo vazado para diagramas de blocos, e serve para fazer fluxogramas”.

Normógrafo vazado... Fiquei um tempo até decorar esse nome, mas aprendi que era uma forma interessante de descrever a linha de fluxo lógico de um processo, contendo todas as suas operações: a entrada dos dados, o seu processamento, as intervenções externas, as decisões que bifurcam os caminhos e os possíveis resultados finais. Tudo isso mais ou menos assim:


Por que contei toda essa historinha? Porque uma corrente expressiva de filósofos da mente entende que, mesmo sem querer, o computador funciona tão bem pelo simples fato de reproduzir, em circuitos eletrônicos, o mesmo funcionamento do cérebro humano.

Com uma boa dose de determinismo (leiam mais aqui), esses filósofos entendem que a mente humana possui uma espécie de algoritmo que lhe guia a conduta, de maneira a existir uma programação muito semelhante àquela dos computadores. Sob medida para essa linha de pensamento é que surge a máquina de Turing, nome dado mais a um conceito do que a um equipamento em si, e foi imaginada por Alan Turing, um dos nomes mais seminais da informática.

O princípio geral da máquina de Turing, bem grosso modo, baseia-se em quatro componentes: um dispositivo de entrada, outro de leitura, uma tabela de ações e um registro de estados. Pelo dispositivo de entrada, são encaminhados os dados e as instruções, sempre sequencialmente, que são lidas pelo dispositivo de leitura. Através da tabela de ações, o equipamento realizará uma tarefa qualquer que lhe encaminhará para um determinado estado. As entradas poderão ser ilimitadas, mas os estados devem estar bem circunscritos. Mantendo a tosquice da proposta, vou dar um exemplo prosaico: vamos catar feijão.

Estamos sentados em uma mesa, com uma toalha branca a recobri-la. À nossa esquerda, temos uma tigela cheia de feijões crus, recém-saídos do seu pacote. À direita, dois destinos possíveis. Um escorredor, para os grãos em ordem; e um cartucho à guisa de lixo, para os rejeitos. Instalados todos os apetrechos, iniciamos a operação. Pega-se um feijão da tigela para ser examinado. Analisa-se peso e cavidades, busca-se orifícios, constata-se se o grão está quebrado. Se estiver bom, vai para o escorredor; ruim, para o saquinho. Um a um, o processo segue até que se esvazie todo o recipiente original. Pode ser que a tarefa continue, sendo a tigela enchida novamente. Não importa, a operação continua a mesma, com a verificação de um escopo finito: o feijão presta ou não presta, com sua destinação preestabelecida. E aqui entra a magia da coisa. Não importa o meio utilizado para catar o feijão. Pode ser um robô, uma esteira automatizada ou um caboclo que goste de feijão. A máquina de Turing está no conceito, e não no meio físico que se usa. Tudo o que funciona com algoritmos é uma máquina de Turing.

Se é verdade o que eu disse acima, então é possível, ao tempo certo, que venha a existir inteligência artificial. É o próprio Alan Turing que propõe um teste para aferir sua eficiência, um teste muito simples. Imagine alguém que dialogará digitalmente com outras duas pessoas, sendo que seu único contato com elas será através de um computador. Uma das pessoas é uma mulher, a outra é um homem. À mulher é destinada a tarefa de convencer ao indagante seu verdadeiro gênero; já o homem deverá tentar persuadir ser ele a mulher. E a pobre cobaia terá que acertar, através de perguntas adequadas, quem é quem de fato. O melhor da brincadeira vem agora. Substituamos o homem por um computador. Se este conseguir convencer o pesquisador ou tornar sua opinião indefinida, terá passado pelo teste de Turing e poderemos considerá-lo inteligente.

Dá medo. Se isto é verdade, nossa mente é comparável a um computador. Uma organização funcional é um programa, tanto para um homem quanto para uma máquina, como deduziu o filósofo Hillary Putnam, a quem voltarei outro dia, e nos dá a sensação de que as máquinas terão pensamento em algum momento, aflorando tantas perguntas da ficção científica. Mas há gente de peso, como John Searle (a quem também voltarei) que acha que a proposição da inteligência artificial é falsa, ao menos nos termos em que vem se delineando. Para tanto, cria o argumento do quarto chinês, que é assim:

Temos alguém encerrado em um quartinho perdido pelo interior da China. Este quarto só tem um contato com o mundo exterior: um buraco por onde entram mensagens escritas em chinês e por onde saem mensagens que ele usa para se comunicar com as pessoas de fora. O problema é que o contribuinte encarcerado não sabe uma única palavra em chinês. Nesta situação, não há como estabelecer nenhum tipo de comunicação. No entanto, há no quarto um subterfúgio disponível: um livro que contém os ideogramas chineses traduzidos para a língua do prisioneiro. Desta forma, é possível que ele consiga ler o que lhe é enviado, e até mesmo responder, invertendo a lógica – localizar uma resposta no dicionário e escrevê-la na folha de papel. Esse processo permite que o preso se comunique, e é indistinguível para quem está fora se ele é chinês ou estrangeiro. Só que ele continua não sabendo nada de chinês. Consegue ler mensagens, mas não sabe interpretá-las. Sabe da sintaxe, mas não da semântica. É como se a inserção em contexto daquilo que se lê fosse uma operação tão complexa e tão necessária a uma correta interpretação da realidade circunstante que o simples processo descrito por Turing não seria suficiente para dar dimensão cognitiva a um equipamento. Sendo assim, pensa Searle que a consciência e a intencionalidade são resultados de processos orgânicos. Elas são processos cerebrais assim como a digestão é um processo estomacal e a respiração é um processo pulmonar. Emulá-las em meio digital vai além de saber ler e decodificar instruções em uma lista de instruções e uma tabela de estados conhecidas.

É isso. Vou parar por aqui porque a tempestade cerebral (mental?) já está me dando dor de cabeça (nos chips?) e vou indo longe demais em tempos de abominação aos textões. Bons ventos a todos.

Recomendação de filme:

O melhor que tenho a indicar é o filme que fala sobre a atribulada vida de Alan Turing, que, se não me engano, está disponível no Netflix. Interessante e tocante, com boa atuação de Benedict Cumberbatch.

TYLDUM, Morten. O Jogo da Imitação. Filme. Estados Unidos: Warner Brothers, 2014. Cor. 114 min.

* Para quem não estiver com saco para ler, faço um resumo rápido. Gage era um operário de estrada de ferro que, no século XIX, sofreu um acidente em seu trabalho: uma barra de ferro atravessou sua cabeça após uma explosão. Não morreu, não entrou em coma, não teve problemas motores dignos de nota, mas mudou completamente de personalidade até sua morte, tornando-se irritadiço, briguento e indisciplinado, em contraste com sua sociabilidade anterior.

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