Olá!
Ao cabo do texto em que falei sobre a síndrome das falsas memórias, prometi trazer apontamentos complementares sobre o tema. Afinal
de contas, os pesquisadores que detectaram tal fenômeno levantaram teses sobre
o modo como o mesmo acontece (a reconstrução da memória com peças equivocadas),
mas outros cientistas procuraram determinar o porquê de tal fato ocorrer. Vamos
a eles?
De cara, informo que nenhuma das observações que se seguirão
é conclusiva, permanecendo no campo do hipotético. Afinal de contas, trata-se
de neurociências, um campo ainda novo e com um universo inteiro por desvendar.
Não me lembro se vi na TV, se ouvi no rádio ou se li em algum lugar, mas algum
cientista certa feita falou que hoje em dia sabemos quase tudo sobre o coração,
e quase nada sobre o cérebro. De fato, o nível de complexidade entre ambos tem
a diferença de um abismo, sem desmerecer nenhum dos dois. O coração é
basicamente uma maquininha, cujas panes são bem conhecidas: excessos de
gorduras que obstruem as artérias, enrijecimento dos vasos, necroses causadas
por infartos, arritmia, disritmia e outras deturpações do ritmo e etc. Mas
alguém poderá dizer: “Seu parlapatão! Se o coração é uma mera maquininha, o
cérebro não passa de uma maçaroca pouco mais consistente que um pudim”. É
verdade, mas é um pudim por onde corre a consciência e o pensamento, coisa que
o coração, burrinho, burrinho, só faz na lírica dos poetas.
Pois bem. Como já dissertei neste texto, importante
para a compreensão geral do que escrevo agora, o cérebro não aceita bem a
exposição a um fato, acontecimento ou conhecimento do qual há uma discrepância
entre o percebido e o processado em seu interior, a dissonância cognitiva. Com
isso, há a possibilidade de erro, porque temos uma pressão interna para ajustar
estes dois panoramas. O resgate de memórias pode ajudar o cérebro a acomodar a
dissonância, mesmo que a custa da coerência da cognição. É o que acontece
quando, por exemplo, vemos uma pessoa que nos cruza na rua e começa a nos
cumprimentar insistentemente. Pode ser que nunca tenhamos visto de fato a
pessoa, mas se ela acertar seu nome porque o leu no crachá (que você nem
percebeu que estava pendurado no pescoço), você vai buscar na memória algum
rosto semelhante, e poderá mesmo ficar convencido de que conhecia o tal
transeunte.
Mas o problema continua, porque essa é só mais uma
constatação do resgate indevido das memórias. Não entendemos muito bem porque o
cérebro se força a encontrar uma solução para a situação desconfortável.
Bastaria, mui simplesmente, conformar-se em não recordar a pessoa, mas aquele
sentimento de aflição fica remoendo em nosso interior, até que o girar do mundo
nos faça esvaí-lo ou achamos outra solução mental, como o erro cometido acima. Essa
propensão em forçar a barra para dar um desfecho tem algumas hipóteses
interessantes, muito embora, conforme já cuidei de estabelecer, estejam ainda
no parque de diversões teórico. Prossigamos.
Vilayanur Ramachandran é um neurocientista indiano que investigou
pacientes com deficiências motoras e cognitivas derivadas de acidentes
vasculares cerebrais. Um dos reflexos mais comuns é uma doença chamada
hemiplegia, que consiste na paralisia de um dos lados do corpo. Como já
sabemos, o controle dos movimentos corporais é cruzado: o lado direito do cérebro
é responsável pelos sentidos e movimentos do lado esquerdo do corpo e
vice-versa. Há estranhos casos em que o paciente nega, com veemência, os
sintomas de sua paralisia, em um fenômeno denominado com o trava-línguas anosognosia, construção vinda do grego
(“a” – negação; “nosos” – doença; “gnosis” – saber). Desta forma, por mais
evidente que sejam as sequelas motoras causadas pelo AVC, o paciente as nega, como
se nada houvesse acontecido, em clara distorção da realidade. E o mais estranho
de tudo é que isso somente ocorre a pacientes com lesão no hemisfério direito
do cérebro, e consequentemente com hemiplegia do lado esquerdo. Obviamente
foram descartados os casos em que outras faculdades mentais tenham sido
afetadas – mesmo indivíduos cuja única sequela tenham sido motoras eram candidatos
a desenvolverem agnosognosia.
A tese de Ramachandran é que os hemisférios cerebrais têm
especialização no que diz respeito à absorção e processamento da realidade.
Para ele, o hemisfério esquerdo é aquele que armazena os modelos estáticos do
mundo. É nele que estão guardados os paradigmas de como tudo deve ser. No
exemplo do amigo desconhecido, é nele que está sedimentado que eu devo conhecer
uma pessoa que me cumprimenta e me chama pelo nome, porque esta é uma regra
geral bem estabelecida – só me chama pelo nome quem me conhece. Portanto, o
lado esquerdo do cérebro (em estranho paradoxo com a política) é conservador,
porque procura manter o modelo mental a qualquer preço, mesmo com distorções.
Já o hemisfério direito é progressista, afeito a mudanças. É a partir dele que
surgem as hipóteses de modificações dos paradigmas que temos em nossa cabeça. É
dele que vem o impulso para não reconhecer a pessoa que me cumprimenta e
acrescentar essa possibilidade ao rol de hipóteses. Esse embate entre os
modelos estabelecidos pelo lado esquerdo e a revisão constante do lado direito
é que nos possibilita aprender e estabelecer novos conceitos, sem, no entanto,
perder o juízo crítico e a segurança do que já sabemos.
E o que ocorre no caso da agnosognosia? Ramachandran entende
que, estando desativado o lado direito do cérebro, que “cutuca” insistentemente
o lado esquerdo para repropor uma estrutura mental que se modificou (no caso, a
paralisia de um lado do corpo, até então inexistente), este último não consegue
se desvencilhar do modelo anterior e estabelecer uma nova lógica para a
realidade, e a consequência final é a sua distorção, no caso, através de sua
negação. Coisa de maluco, né?
Mas a coisa não para por aí. Depois das conclusões de
Ramachandran, outros neurocientistas procuraram aprofundar estes estudos para
compreender como se dá esse “embate” (confabulação, no jargão técnico) entre
ambos os hemisférios cerebrais, onde há destaque para o norte-americano Michael
Gazzaniga e seus colaboradores, que investigou pacientes com o cérebro
dividido, que consiste mais ou menos no seguinte:
Como é possível supor pelo descrito até agora, o reacionário
hemisfério esquerdo e o revolucionário hemisfério direito debatem entre si, e,
para tanto, é necessário que exista algum canal de comunicação. Esse meio é
constituído por um conjunto de milhões de fibras nervosas, chamado de corpo caloso, que fica enfiado na
fissura longitudinal. Em pacientes onde o corpo caloso é inutilizado por uma
intervenção denominada calosotomia (normalmente para produzir aplacamento de
sintomas graves de epilepsia), temos uma condição conhecida pela comunidade
científica como split brain, cérebro
dividido. Através de estudos nesses pacientes, foi possível observar como o
cérebro possui não só uma divisão dialética entre manutenção e revisão de
modelos, mas também uma série de especializações divididas em módulos, sendo
que alguns estão no lado esquerdo (como o domínio da linguagem), outros no
direito (como a noção de espacialidade). Um desses módulos se encarrega
justamente de fazer a ligação entre os demais módulos, e é forçado a fazê-lo
sempre, ainda que com elementos destoantes entre si. Esse módulo foi chamado
por Gazzaniga de intérprete, e está
localizado no lado esquerdo.
Como foi deduzida a existência desse intérprete? Através de
um sem-número de testes, que tinham por princípio básico a diferença de
comportamento entre os dois hemisférios. É sabido que as pessoas que tem o
corpo caloso cindido, por vezes, apresentam comportamentos inesperados, como
realizar com uma das mãos alguma atividade totalmente discrepante da outra,
como tentar se vestir de um lado e se despir do outro. Parece engraçado, mas só
na ficção. Dependendo do lado do corpo em que uma sensação é obtida, a reação
do hemisfério correspondente é diferente do que seria se o hemisfério oposto a
tivesse recebido. Os testes, portanto sempre se baseiam em produzir um estímulo
em um lado do corpo – tátil, visual ou auditivo – sem permitir que a mesma
sensação seja percebida pelo outro. Por exemplo: para expor um quadro ao cérebro
esquerdo, tapa-se o olho esquerdo e deixa-se aberto apenas o olho direito. Pelo
cruzamento dos nervos, temos o cérebro esquerdo ativado e o cérebro direito
inibido. Vice-versa também vale.
Vamos agora pensar em um bom exemplo para que a coisa fique
simples. Imagine uma atividade corriqueira, como o ato de se lavar o carro.
Alguns passos são absolutamente típicos, como tirar o carro da garagem, separar
o sabão e as flanelas para secagem, encher um ou dois baldes com água,
esfregar, remover o sabão, secar e guardar o carro novamente, esvaziar os
baldes e guardar tudo em seu lugar. É um roteiro do qual não há muito como
fugir, estabelecendo uma certa estrutura sequencial da qual realizamos um
mapeamento no cérebro, na medida em que adquirimos essa experiência. Claro que
algumas circunstâncias inesperadas podem ocorrer, como a constatação de que não
há panos disponíveis, ou que há premência de chuva, mas o desenho geral da
tarefa está bem descrita. Agora imaginem que a lavagem do carro não será
efetivamente realizada, mas apresentada em fotos para uma pessoa com cérebro
dividido. Tapamos o olho direito, deixando apenas o olho esquerdo disponível e
apresentamos ao cérebro direito a seguinte sequência: Carro na calçada, lavar,
enxaguar e secar, apenas isso. Em seguida, tapamos o olho esquerdo e
apresentamos a mesmíssima sequência ao cérebro esquerdo. Até aqui tudo bem?
O próximo passo será apresentar novamente um conjunto de
fotos para cada hemisfério, com a diferença vital de que, desta vez,
adicionaremos outras etapas na sequência, algumas que fazem sentido para o
desempenho da tarefa, outras não. A pergunta será: quais das fotos que serão
apresentadas agora foram exibidas também na primeira sequência? Digamos que a
nova sequência apresentada seja a seguinte: carro na calçada, encher os baldes,
lavar, enxaguar, dar uma pirueta e secar. Na média, o cérebro direito
reconhecerá efetivamente apenas as fotos que constaram da primeira sequência, e
descartará as fases de encher os baldes e dar uma pirueta. Já o hemisfério
esquerdo tenderá a reconhecer o enchimento dos baldes como uma das fotografias
apresentadas, e descartará apenas a pirueta.
Por que isso acontece? Pelo que deduziu Gazzaniga (lembrando
que foram vários os testes realizados, alguns muito mais complexos que o tolo
exemplo acima), o cérebro direito é literal e não procura fazer interpretações,
limitando-se a registrar o que percebe. Já o cérebro esquerdo possui um módulo
que cuida de costurar logicamente os elementos que lhe são disponibilizados,
procurando desesperadamente acomodá-los ao esquema. Como faz todo o sentido
encher os baldes para lavar um carro, o hemisfério esquerdo encaixa esta etapa
no processo como um todo; o mesmo não ocorre com a pirueta, totalmente
desencaixada do contexto, e, dessa forma, descartada.
Se as teses de Gazzaniga e colaboradores estiverem corretas,
o módulo de interpretação pode ser a solução para o problema das falsas
memórias apresentado por Elizabeth Loftus. Essa necessidade atávica de
coordenar as impressões e preencher as lacunas existentes parece ser suprida
com o aproveitamento de outras experiências gravadas, não pertencentes ao
contexto, mas logicamente inseríveis ao mesmo. E dessa forma a nova amarração
faz todo o sentido, mesmo sendo irreal.
Finalmente, a causa da localização do intérprete no
hemisfério esquerdo parece estar ligada ao fato de que a sede da linguagem
esteja situada nele. De fato, as noções de espacialidade podem estar no lado
direito (o que explica sua literalidade), mas um fenômeno recorrente nos
pacientes de split brain é a
dificuldade de se exprimir através da linguagem quando estimulados apenas à
direita. Mesmo compreendendo o que vê, não se consegue expressar através de
palavras, utilizando-se de outras ferramentas para fazer suas indicações, como
o uso de gestos. O mesmo não ocorre com o hemisfério esquerdo, mas, dada a
coletânea de alternativas disponibilizadas pela linguagem, há um enriquecimento
muito grande nas hipóteses possíveis para preencher as lacunas existentes em um
determinado processo.
Difícil, né? Mas nem tanto. Um fenômeno complexo tem um
explicação trabalhosa, e, mais uma vez repito, ainda não definitiva. E a partir
daí, muitas outras elucubrações e propostas de resolução de outros fenômenos
vão surgindo. Pode ser, por exemplo, que o conservadorismo do lado esquerdo,
previsto por Ramachandran, e a presença do intérprete do mesmo lado, previsto
por Gazzaniga, expliquem a questão da mente descontínua (da qual já falei
também). Um cérebro adaptado a ver um mundo concreto não consegue buscar
modelos opostos ao que consegue perceber, e com isso não possui conhecimento
suficiente para repropor medidas gigantescas ou diminutas, minimizando o
reconhecimento de processos. O mundo fica limitado ao observável e com pouca
possibilidade de ser reinterpretado. Nesse sentido, é bom aprender um pouco a
lição de Descartes, que imputa ao raciocínio um caminho para descobrir coisas que
vão além dos nossos sentidos.
Recomendações de leitura:
O forte para ler desses autores são os artigos científicos,
mas há muita coisa elucidativa nos livros abaixo:
RAMACHANDRAN,
Vilayanur S.; BLAKESLEE, Sandra. Fantasmas
no cérebro. Uma investigação dos mistérios da mente humana. São Paulo:
Record, 2004.
GAZZANIGA, Michael. O
cérebro social. A descoberta das redes do pensamento. Almada: Instituto
Piaget, 1995.
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