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quarta-feira, 1 de junho de 2016

A dialética entre os hemisférios cerebrais e o Intérprete - propostas para explicar a síndrome das falsas memórias e outras peculiaridades mentais

Olá!

Ao cabo do texto em que falei sobre a síndrome das falsas memórias, prometi trazer apontamentos complementares sobre o tema. Afinal de contas, os pesquisadores que detectaram tal fenômeno levantaram teses sobre o modo como o mesmo acontece (a reconstrução da memória com peças equivocadas), mas outros cientistas procuraram determinar o porquê de tal fato ocorrer. Vamos a eles?


De cara, informo que nenhuma das observações que se seguirão é conclusiva, permanecendo no campo do hipotético. Afinal de contas, trata-se de neurociências, um campo ainda novo e com um universo inteiro por desvendar. Não me lembro se vi na TV, se ouvi no rádio ou se li em algum lugar, mas algum cientista certa feita falou que hoje em dia sabemos quase tudo sobre o coração, e quase nada sobre o cérebro. De fato, o nível de complexidade entre ambos tem a diferença de um abismo, sem desmerecer nenhum dos dois. O coração é basicamente uma maquininha, cujas panes são bem conhecidas: excessos de gorduras que obstruem as artérias, enrijecimento dos vasos, necroses causadas por infartos, arritmia, disritmia e outras deturpações do ritmo e etc. Mas alguém poderá dizer: “Seu parlapatão! Se o coração é uma mera maquininha, o cérebro não passa de uma maçaroca pouco mais consistente que um pudim”. É verdade, mas é um pudim por onde corre a consciência e o pensamento, coisa que o coração, burrinho, burrinho, só faz na lírica dos poetas.

Pois bem. Como já dissertei neste texto, importante para a compreensão geral do que escrevo agora, o cérebro não aceita bem a exposição a um fato, acontecimento ou conhecimento do qual há uma discrepância entre o percebido e o processado em seu interior, a dissonância cognitiva. Com isso, há a possibilidade de erro, porque temos uma pressão interna para ajustar estes dois panoramas. O resgate de memórias pode ajudar o cérebro a acomodar a dissonância, mesmo que a custa da coerência da cognição. É o que acontece quando, por exemplo, vemos uma pessoa que nos cruza na rua e começa a nos cumprimentar insistentemente. Pode ser que nunca tenhamos visto de fato a pessoa, mas se ela acertar seu nome porque o leu no crachá (que você nem percebeu que estava pendurado no pescoço), você vai buscar na memória algum rosto semelhante, e poderá mesmo ficar convencido de que conhecia o tal transeunte.

Mas o problema continua, porque essa é só mais uma constatação do resgate indevido das memórias. Não entendemos muito bem porque o cérebro se força a encontrar uma solução para a situação desconfortável. Bastaria, mui simplesmente, conformar-se em não recordar a pessoa, mas aquele sentimento de aflição fica remoendo em nosso interior, até que o girar do mundo nos faça esvaí-lo ou achamos outra solução mental, como o erro cometido acima. Essa propensão em forçar a barra para dar um desfecho tem algumas hipóteses interessantes, muito embora, conforme já cuidei de estabelecer, estejam ainda no parque de diversões teórico. Prossigamos.

Vilayanur Ramachandran é um neurocientista indiano que investigou pacientes com deficiências motoras e cognitivas derivadas de acidentes vasculares cerebrais. Um dos reflexos mais comuns é uma doença chamada hemiplegia, que consiste na paralisia de um dos lados do corpo. Como já sabemos, o controle dos movimentos corporais é cruzado: o lado direito do cérebro é responsável pelos sentidos e movimentos do lado esquerdo do corpo e vice-versa. Há estranhos casos em que o paciente nega, com veemência, os sintomas de sua paralisia, em um fenômeno denominado com o trava-línguas anosognosia, construção vinda do grego (“a” – negação; “nosos” – doença; “gnosis” – saber). Desta forma, por mais evidente que sejam as sequelas motoras causadas pelo AVC, o paciente as nega, como se nada houvesse acontecido, em clara distorção da realidade. E o mais estranho de tudo é que isso somente ocorre a pacientes com lesão no hemisfério direito do cérebro, e consequentemente com hemiplegia do lado esquerdo. Obviamente foram descartados os casos em que outras faculdades mentais tenham sido afetadas – mesmo indivíduos cuja única sequela tenham sido motoras eram candidatos a desenvolverem agnosognosia.

A tese de Ramachandran é que os hemisférios cerebrais têm especialização no que diz respeito à absorção e processamento da realidade. Para ele, o hemisfério esquerdo é aquele que armazena os modelos estáticos do mundo. É nele que estão guardados os paradigmas de como tudo deve ser. No exemplo do amigo desconhecido, é nele que está sedimentado que eu devo conhecer uma pessoa que me cumprimenta e me chama pelo nome, porque esta é uma regra geral bem estabelecida – só me chama pelo nome quem me conhece. Portanto, o lado esquerdo do cérebro (em estranho paradoxo com a política) é conservador, porque procura manter o modelo mental a qualquer preço, mesmo com distorções. Já o hemisfério direito é progressista, afeito a mudanças. É a partir dele que surgem as hipóteses de modificações dos paradigmas que temos em nossa cabeça. É dele que vem o impulso para não reconhecer a pessoa que me cumprimenta e acrescentar essa possibilidade ao rol de hipóteses. Esse embate entre os modelos estabelecidos pelo lado esquerdo e a revisão constante do lado direito é que nos possibilita aprender e estabelecer novos conceitos, sem, no entanto, perder o juízo crítico e a segurança do que já sabemos.

E o que ocorre no caso da agnosognosia? Ramachandran entende que, estando desativado o lado direito do cérebro, que “cutuca” insistentemente o lado esquerdo para repropor uma estrutura mental que se modificou (no caso, a paralisia de um lado do corpo, até então inexistente), este último não consegue se desvencilhar do modelo anterior e estabelecer uma nova lógica para a realidade, e a consequência final é a sua distorção, no caso, através de sua negação. Coisa de maluco, né?

Mas a coisa não para por aí. Depois das conclusões de Ramachandran, outros neurocientistas procuraram aprofundar estes estudos para compreender como se dá esse “embate” (confabulação, no jargão técnico) entre ambos os hemisférios cerebrais, onde há destaque para o norte-americano Michael Gazzaniga e seus colaboradores, que investigou pacientes com o cérebro dividido, que consiste mais ou menos no seguinte:

Como é possível supor pelo descrito até agora, o reacionário hemisfério esquerdo e o revolucionário hemisfério direito debatem entre si, e, para tanto, é necessário que exista algum canal de comunicação. Esse meio é constituído por um conjunto de milhões de fibras nervosas, chamado de corpo caloso, que fica enfiado na fissura longitudinal. Em pacientes onde o corpo caloso é inutilizado por uma intervenção denominada calosotomia (normalmente para produzir aplacamento de sintomas graves de epilepsia), temos uma condição conhecida pela comunidade científica como split brain, cérebro dividido. Através de estudos nesses pacientes, foi possível observar como o cérebro possui não só uma divisão dialética entre manutenção e revisão de modelos, mas também uma série de especializações divididas em módulos, sendo que alguns estão no lado esquerdo (como o domínio da linguagem), outros no direito (como a noção de espacialidade). Um desses módulos se encarrega justamente de fazer a ligação entre os demais módulos, e é forçado a fazê-lo sempre, ainda que com elementos destoantes entre si. Esse módulo foi chamado por Gazzaniga de intérprete, e está localizado no lado esquerdo.

Como foi deduzida a existência desse intérprete? Através de um sem-número de testes, que tinham por princípio básico a diferença de comportamento entre os dois hemisférios. É sabido que as pessoas que tem o corpo caloso cindido, por vezes, apresentam comportamentos inesperados, como realizar com uma das mãos alguma atividade totalmente discrepante da outra, como tentar se vestir de um lado e se despir do outro. Parece engraçado, mas só na ficção. Dependendo do lado do corpo em que uma sensação é obtida, a reação do hemisfério correspondente é diferente do que seria se o hemisfério oposto a tivesse recebido. Os testes, portanto sempre se baseiam em produzir um estímulo em um lado do corpo – tátil, visual ou auditivo – sem permitir que a mesma sensação seja percebida pelo outro. Por exemplo: para expor um quadro ao cérebro esquerdo, tapa-se o olho esquerdo e deixa-se aberto apenas o olho direito. Pelo cruzamento dos nervos, temos o cérebro esquerdo ativado e o cérebro direito inibido. Vice-versa também vale.

Vamos agora pensar em um bom exemplo para que a coisa fique simples. Imagine uma atividade corriqueira, como o ato de se lavar o carro. Alguns passos são absolutamente típicos, como tirar o carro da garagem, separar o sabão e as flanelas para secagem, encher um ou dois baldes com água, esfregar, remover o sabão, secar e guardar o carro novamente, esvaziar os baldes e guardar tudo em seu lugar. É um roteiro do qual não há muito como fugir, estabelecendo uma certa estrutura sequencial da qual realizamos um mapeamento no cérebro, na medida em que adquirimos essa experiência. Claro que algumas circunstâncias inesperadas podem ocorrer, como a constatação de que não há panos disponíveis, ou que há premência de chuva, mas o desenho geral da tarefa está bem descrita. Agora imaginem que a lavagem do carro não será efetivamente realizada, mas apresentada em fotos para uma pessoa com cérebro dividido. Tapamos o olho direito, deixando apenas o olho esquerdo disponível e apresentamos ao cérebro direito a seguinte sequência: Carro na calçada, lavar, enxaguar e secar, apenas isso. Em seguida, tapamos o olho esquerdo e apresentamos a mesmíssima sequência ao cérebro esquerdo. Até aqui tudo bem?

O próximo passo será apresentar novamente um conjunto de fotos para cada hemisfério, com a diferença vital de que, desta vez, adicionaremos outras etapas na sequência, algumas que fazem sentido para o desempenho da tarefa, outras não. A pergunta será: quais das fotos que serão apresentadas agora foram exibidas também na primeira sequência? Digamos que a nova sequência apresentada seja a seguinte: carro na calçada, encher os baldes, lavar, enxaguar, dar uma pirueta e secar. Na média, o cérebro direito reconhecerá efetivamente apenas as fotos que constaram da primeira sequência, e descartará as fases de encher os baldes e dar uma pirueta. Já o hemisfério esquerdo tenderá a reconhecer o enchimento dos baldes como uma das fotografias apresentadas, e descartará apenas a pirueta.

Por que isso acontece? Pelo que deduziu Gazzaniga (lembrando que foram vários os testes realizados, alguns muito mais complexos que o tolo exemplo acima), o cérebro direito é literal e não procura fazer interpretações, limitando-se a registrar o que percebe. Já o cérebro esquerdo possui um módulo que cuida de costurar logicamente os elementos que lhe são disponibilizados, procurando desesperadamente acomodá-los ao esquema. Como faz todo o sentido encher os baldes para lavar um carro, o hemisfério esquerdo encaixa esta etapa no processo como um todo; o mesmo não ocorre com a pirueta, totalmente desencaixada do contexto, e, dessa forma, descartada.

Se as teses de Gazzaniga e colaboradores estiverem corretas, o módulo de interpretação pode ser a solução para o problema das falsas memórias apresentado por Elizabeth Loftus. Essa necessidade atávica de coordenar as impressões e preencher as lacunas existentes parece ser suprida com o aproveitamento de outras experiências gravadas, não pertencentes ao contexto, mas logicamente inseríveis ao mesmo. E dessa forma a nova amarração faz todo o sentido, mesmo sendo irreal.

Finalmente, a causa da localização do intérprete no hemisfério esquerdo parece estar ligada ao fato de que a sede da linguagem esteja situada nele. De fato, as noções de espacialidade podem estar no lado direito (o que explica sua literalidade), mas um fenômeno recorrente nos pacientes de split brain é a dificuldade de se exprimir através da linguagem quando estimulados apenas à direita. Mesmo compreendendo o que vê, não se consegue expressar através de palavras, utilizando-se de outras ferramentas para fazer suas indicações, como o uso de gestos. O mesmo não ocorre com o hemisfério esquerdo, mas, dada a coletânea de alternativas disponibilizadas pela linguagem, há um enriquecimento muito grande nas hipóteses possíveis para preencher as lacunas existentes em um determinado processo.

Difícil, né? Mas nem tanto. Um fenômeno complexo tem um explicação trabalhosa, e, mais uma vez repito, ainda não definitiva. E a partir daí, muitas outras elucubrações e propostas de resolução de outros fenômenos vão surgindo. Pode ser, por exemplo, que o conservadorismo do lado esquerdo, previsto por Ramachandran, e a presença do intérprete do mesmo lado, previsto por Gazzaniga, expliquem a questão da mente descontínua (da qual já falei também). Um cérebro adaptado a ver um mundo concreto não consegue buscar modelos opostos ao que consegue perceber, e com isso não possui conhecimento suficiente para repropor medidas gigantescas ou diminutas, minimizando o reconhecimento de processos. O mundo fica limitado ao observável e com pouca possibilidade de ser reinterpretado. Nesse sentido, é bom aprender um pouco a lição de Descartes, que imputa ao raciocínio um caminho para descobrir coisas que vão além dos nossos sentidos.

Recomendações de leitura:

O forte para ler desses autores são os artigos científicos, mas há muita coisa elucidativa nos livros abaixo:

RAMACHANDRAN, Vilayanur S.; BLAKESLEE, Sandra. Fantasmas no cérebro. Uma investigação dos mistérios da mente humana. São Paulo: Record, 2004.


GAZZANIGA, Michael. O cérebro social. A descoberta das redes do pensamento. Almada: Instituto Piaget, 1995.

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