Continuando com o tema conhecimento, vamos agora falar sobre
a Gnosiologia. Como já disse no texto anterior, o conhecimento começa a
partir da captação direta de um objeto feita por um sujeito através dos seus
sentidos. Essa espécie de contato nasce como intuição, ou seja, não há grandes
processos mentais envolvidos na cena. Eu vejo uma bola, ouço uma comemoração,
sinto cheiro de grama, saboreio amendoim e ralo a bunda em um degrau: pela
intuição direta, já sei que estou em uma partida de futebol. Obviamente isso
não se dá sem um depósito de experiências. Eu já sei o que é aquele objeto
esférico, já sei que aqueles gritos não são de guerra ou de desespero (bom, às
vezes são), já senti aquele cheiro outras vezes e assim por diante. Em suma,
essas experiências anteriores são registradas e posteriormente reavivadas em um
momento onde necessito abrir os arquivos. Essa é a função da memória, o
repositório de informações que permite o raciocínio. O processo de aquisição de
informações novas e o seu processamento com dados preexistentes é o que os
gregos chamavam de gnosé, que deu
origem ao termo ora estudado, a Gnosiologia.
Pode-se dizer que a Gnosiologia é a parte da Teoria do
Conhecimento que se ocupa de investigar o conhecimento de uma forma mais geral,
sem uma preocupação muito grande com o seu valor de verdade, mas de como
interagimos com o meio que nos envolve e como esse intercâmbio enriquece nosso
arcabouço intelectivo. O que importa aqui é o fenômeno do conhecimento, e não
de seu valor intrínseco.
Uma das perguntas fundamentais da gnosiologia é: Quais são
os limites do nosso conhecimento? Haverá um momento tal em que não haverá mais nada
a ser aprendido? É possível existir uma enciclopédia que contenha tudo?
Obviamente esta é uma daquelas perguntas utópicas, do tipo pedra filosofal ou
fonte da juventude, mas que está carregada de desejo de saber até onde podemos
chegar. Existem dois extremos com relação à possibilidade de conhecer. De um
lado, temos a resposta que afirma ser o conhecimento plenamente possível,
formado por verdades absolutas e imutáveis. Do outro, temos a consciência de
que nenhum conhecimento é possível de obter com firmeza, havendo sempre a
suspeita de que estejamos enganados. Traduzindo em correntes, temos o
dogmatismo e o ceticismo.
Em primeiro lugar, é preciso entender o que é um dogma e o
que é uma dúvida cética, já que essas palavras andam meio desgastadas pelo seu
uso no vulgo. De fato, quando dizemos que alguém é dogmático, pensamos naqueles
caras intransigentes em suas posições e opiniões imutáveis. Isso não se dá sem
motivo, como se verá. Mas o fato é que um dogma pode ter o mesmo sentido que se
dá, em Ciências, aos axiomas e postulados (vide este texto para
compreender um pouco melhor a terminologia técnica).
Muita coisa se apresenta evidente à nossa observação, e, com
isso, temos a tendência de achar que certas coisas são como são e ponto final.
Isso é mesmo intuitivo, porque criamos uma habitualidade na contemplação dos
fenômenos que se repetem à exaustão, como o nascer do sol, o pio das aves, o
vento que desmancha os cabelos e demais poesias. Mas é preciso pensar que em
toda absorção das informações que nos rodeiam, temos dois polos bem distintos e
intrinsecamente relacionados: um sujeito cognoscente e um objeto cognoscível,
ou alguém que se propõe a conhecer algo disponível a ser conhecido.
Quando o ponto de vista é dogmático, entendemos que o cerne
do conhecimento está no objeto, que nos é entregue pronto e acabado para ser
conhecido. Os dogmas são centrais nas religiões, que necessitam de fundamentos
constituídos por pontos indisputáveis e verdades absolutas; do contrário, teriam
desmanchadas as estruturas que as constituem, com divindades mutáveis e
imperfeitas. As religiões professam a existência de uma verdade revelada, em
que não há discussão possível – a deidade a concede, o crente a obedece. Isso
significa que os dogmas religiosos estão errados? Não foi isso que eu disse,
mas essa é a mecânica da coisa. E o pensamento dogmático não está
obrigatoriamente ligado à Religião, mas à certeza que se tem sobre o objeto.
Mesmo a Ciência, de certa forma, usa dogmas, na medida em que axiomas e
postulados são tidos como evidentes em si próprios. A diferença talvez consista
no fato de que axiomas não são discutidos porque já o foram anteriormente e
devidamente consolidados.
Mas elucubremos. É-nos dada uma cebola e começamos a
descascá-la, enfadonhamente. Removemos a fina casca parda, tiramos a primeira
camada, a segunda, a terceira... Choramos com o gás emanado e chegamos ao miolo
esverdeado, sem novidade nenhuma. Nosso vizinho faz o mesmo, mas não chora, e
animadamente despela o vegetal. Ao chegar no miolo encontra uma bela lagarta
(não sei se dá lagarta em cebola). Outra pessoa, que sente os olhos arder
apenas, quer se livrar logo da tarefa e encontra o miolo apodrecido, escuro e
mal-cheiroso. Outra ainda nem passa da casca, toda melada que se encontra sua
cebola. Faz o dever de maneira indiferente, mas é tão sensível que já chora só
de pegá-la.
A primeira conclusão é que analisar uma cebola não significa analisar todas as cebolas. Cada uma tem suas sutilezas, e para chegar a uma
teoria geral das cebolas eu precisaria analisar todas as amarilidáceas do
mundo, o que é impossível. A segunda é que cada uma das pessoas tem seu próprio
conjunto de sentidos e de motivações, o que lhes causa diferentes reações
físicas e psicológicas na análise. E a terceira é que cada uma delas tem um
conjunto próprio de pré-concepções, que variam desde um contato inédito com o
bulbo até seu uso diário. Daí, podemos perceber que o sujeito não é um polo
passivo na relação do conhecimento, como quer o dogmatismo. Diferentes
percepções e diferentes pontos de vista fazem com que tenhamos algo que os
religiosos se arrepiem só de ouvir falar: o relativismo, que, uma vez
exacerbado, leva a crer que toda correlação cognitiva está do lado do sujeito.
O conhecimento seria uma doação de sentido do sujeito para o objeto, e, uma vez
reconhecida sua individualidade e irrepetibilidade, conclui-se ser impossível
conhecer. Essa é a posição do ceticismo.
Mas não é bom ser cético? Sim, é. Precisamos duvidar por uma
mera questão de sobrevivência: o leão que hoje passa ao nosso lado saciado pode
estar faminto amanhã. O problema é que o ceticismo absoluto é imobilizante e
contraditório, porque quando decretamos que o conhecimento é impossível, já
estamos estabelecendo uma lei. Então sabemos
que não pode ser sabido. Duvidar apenas por duvidar é mera intransigência.
E por onde trafega então esse tal de conhecimento? Como não
há objeto sem sujeito e vice-versa, a relação cognitiva não pode ser vista de
modo desmembrado. É uma interação que não tem um lado mais importante – todos
são intrínsecos à relação, como se fosse um organismo: posso pensar que o
cérebro é o órgão mais importante, mas tenho uma massa muscular lisa que só se
presta a bombear incessantemente, tolamente, acriticamente, quase idiotamente,
mas sem a qual eu não vivo. De fato, o conhecimento é constituído por uma
relação entre pensamento e realidade que se dá de forma muito complexa. Quando
um fato se desenrola em nossa frente, muito do significado que é dado a ele
reside em nós mesmos.
Alguns exemplos banais para entendermos melhor: uma final de
Campeonato Paulista. Recentemente, Corinthians e Palmeiras se digladiaram em
uma partida cheia de controvérsias, que terminou nos pênaltis. Fiz uma
experiência de cunho científico – coloquei um esfigmomanômetro no pulso e pus
para medir a cada penalidade cobrada. O ápice não foi no resultado final, mas
na cobrança desperdiçada pelo Fagner, lateral-direito do Timão: 20 por 12. Nesse
meio-tempo, uma ligação inoportuna reboa em meus tímpanos. Olho para o número
no bina e lá está: minha sogra. Deixa tocar que já-já a patroa retorna. Minha
reação a futebol é essa mesma. Se vejo pela TV, parece que estou no estádio; se
estou no estádio, parece que estou no campo. Não sou do tipo de torcedor que xinga
e grita a cada instante, mas estamos em momento extremo. É uma final, e chego a
ficar de olho seco de tanto não piscar. Já a minha sogra está cagando para
futebol. Chega a ser uma perturbação para ela, tanto a barulheira dos fogos,
quanto o telefone que não é atendido.
Notam as inúmeras diferenças que há entre as percepções dos
fatos por conta do significado que se dá a eles? Para mim, o momento das
cobranças é o centro do universo, e a captação e absorção de imagens é
torrencial. Sei quem cobra e quem defende, observo a coreografia de quem chuta,
a movimentação do goleiro e a reação do juiz, tudo em um átimo. Sinto raiva,
desespero, aflição, angústia, para desembocar na alegria final, o dia
justificado, o sofrimento esquecido, e vou baixar a pressão ouvindo as resenhas
de fim de jogo no rádio, um hábito antigo e comum em quem tem mais de quarenta.
Para minha sogra, o jogo é só uma imagem na tela da TV, acompanhada por bombas
e gritos, nesse dia específico. Para mim, é uma consagração; para ela, uma
perturbação. Só que, para além desse jogo de significações, há a partida em si.
O fato concreto é decepcionantemente simples: vinte e dois marmanjos correndo
atrás de uma bola. Alguns de preto-e-branco, outros de verde, todos tentando vasar a
meta adversária, de acordo com regras nem sempre seguidas. O significado que
damos ao fato não retratam o fato em si. É por esse viés que se cede sentido ao
objeto e ninguém é passivo nessa relação.
Vou dar um exemplo ainda mais simples e definitivo. Vejam a
figurinha abaixo:
Isso é o que chamamos de cubo de Necker. Nada mais é do que
a simulação de um hexaedro transparente. Imaginemos se tratar de uma caixa, com
uma única boca aberta. O cubo de Necker não nos permite determinar qual das
faces representa a abertura da caixa. Se for a superior, teremos uma caixa
pronta para receber carga.
Se for a de baixo, parecerá que a caixa já foi esvaziada.
Se for uma das laterais, podemos intuir que se trata de uma
carga especial, tanto para entrar quanto para sair. O importante é perceber o
quanto nossa visão se torna confusa à proporção que nos concentramos na figura.
De quem parte o sentido dado a este objeto? Quem determina
qual é a embocadura da caixa? Parte é da perspectiva do sujeito, que “enxerga”
o cubo da maneira que melhor lhe dá a perceber os seus sentidos. Parte é do
objeto, que se apresenta como ele é para ser absorvido por um observador
qualquer, mas que, em condições normais de temperatura e pressão, não dá
informações que não tem. Ele não se mostra como uma esfera, por exemplo. E, no
final das contas, não temos caixa alguma à nossa frente, mas uma porção de
traços retos. Se não assumirmos, nós mesmos, que esses traços constituem a
abstração de uma caixa, nada representarão na relação. Portanto, tanto um
quanto o outro são partícipes inescapáveis do processo de aquisição de
conhecimento.
Outra propositura gnosiológica diz respeito ao nascedouro do
processo racional. É sabido que a mente humana tem a capacidade de receber
informações do mundo que a rodeia e de transformá-la em conhecimento, como já
exposto anteriormente. Mas o que é necessário para realizar a receita? Até o
século XVIII, havia duas correntes que se opunham na resposta. Uma parte dos
pensadores entendia que o equipamento intelectual humano era suficientemente
bem construído para cumprir a tarefa da cognição por si só. Nessa visão, o
homem já possui todos os requisitos para pensar racionalmente desde seu
nascimento, e suas observações são meros ativadores de funções mentais
preexistentes. É como se o homem já nascesse podendo conhecer o que conhece,
bastando a existência de um contato com o mundo exterior para que uma rede de
correlações internas seja disparada, e o conhecimento se produza. Esses são os
inatistas, e é uma galera composta por gente do naipe de Sócrates, Platão,
Santo Agostinho, Descartes e Leibniz.
A corrente antagônica entendia que a mente humana era uma
grande folha em branco (uma tabula rasa,
em dizer mais filosófico). Ela seria constituída por aquilo que fosse escrito nela,
ou seja, unicamente pelas coisas que sua experiência, sua vivência e suas
investigações conseguiram captar do universo que a cerca, através de seus
sentidos e da acumulação de saberes. Por esta razão, os partidários desta ideia
somente admitem como reais os raciocínios que partem da aquisição de dados
sensoriais, objetos colocados como palpáveis à nossa frente. São os empiristas,
que abrangem Aristóteles, Bacon, Hobbes, Locke, Hume et caterva.
Quem aplica um ippon
na querela é Kant, que brilhantemente assevera o que cada uma das tendências
tem de certo e de errado. Dos empiristas, afirma que acertam em cheio quando
dizem que a única fonte de informações são os sentidos. Nada do que é
processado pela mente chega lá sem sua intervenção. Portanto, ideias não nascem
do nada, mas das apreensões que fazemos dos objetos que nos são dispostos. Mas
a tese da tabula rasa também não é correta. É como se a folha de nosso
intelecto não fosse meramente em branco, mas como se as experiências fossem
escritas em folhas já pautadas, numeradas e com margens bem delineadas. Essa
estrutura onde os dados empíricos são escritos é própria da natureza do
intelecto humano, e, portanto, são seus constitutivos. Em resumo, são inatas. A
estrutura da mente é inata, e seus conteúdos são empíricos. Já havia falado
anteriormente sobre isso, neste texto.
Juntando todos estes
elementos, podemos pensar em uma das frases mais emblemáticas de Sócrates,
patrono daqueles que gostam de queimar neurônios: “Tudo o que sei é que nada
sei”. Essa confissão de ignorância não é a assunção de uma parvoíce, muito pelo
contrário. É evidente que Sócrates sabia de muitas coisas, mas sua principal
sabedoria residia em não se iludir com relação a uma pretensa solidez
permanente de seus conhecimentos. Para torná-los mais consistentes, Sócrates ia
buscar o nível do conceito, muito mais profundo do que a mera aparência poderia
fazer supor. Ele queria saber o que é a justiça, e não o homem justo; o que é a
coragem, e não o homem corajoso. Esses últimos são concreções, são exemplos,
mas de quê? Será que não achamos alguém justo ou corajoso apenas pelo que
nomeia o senso comum? E é nessa busca que Sócrates exerce sua maiêutica e
admite sua ignorância, apenas para se provar verdadeiro sábio, que se inquieta
permanentemente, ao invés de se deitar nos louros do renome.
Vou ficando por aqui. Ainda tem mais um pouco da temática
conhecimento no próximo texto. Até!
Recomendação de leitura:
Sócrates não deixou nada escrito, mas Platão não nos deixa
sentir órfãos. O livro abaixo não é só uma narrativa da condenação e morte do
parteiro de ideias, mas um pequeno tratado sobre o conhecimento. Recomendo.
PLATÃO. Apologia de
Sócrates. Porto Alegre: L&PM, 2008.
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