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quinta-feira, 20 de abril de 2017

País do futebol: o que precisamos avaliar para saber se isso é ou não uma verdade

Olá!

Você gosta de futebol? Não há nenhum mérito se sim, nenhum constrangimento se não. E vice-versa. Corre uma lenda no senso comum de que o Brasil é o país do futebol. É bem verdade que há alguns indicadores seguros disso. São cinco títulos mundiais da seleção, um monte dos clubes, onipresença em copas do mundo, times mundialmente reverenciados como alguns dos melhores de todos os tempos e bons jogadores espalhados pelos quatro cantos do planetinha azul. Além disso, os meninos recém-nascidos têm um presente praticamente garantido: macacõezinhos com o distintivo do time de preferência do pai. E, cada vez mais, o mesmo tem acontecido com as meninas. A não ser que haja uma grave desavença entre pai e uma mamãe especialmente fã do time rival. Mas o consenso aparece quando a criança começa a andar: lá vem a bola de presente. Nesse sentido, o senso comum parece ter plena razão.

Mas a afirmação, por outro lado, é facilmente contestável. A imensa maioria dos jogos não chega a ter metade de sua ocupação, quase todos os estádios são precários (neste particular, não tenho grandes problemas, pelos motivos que se verão adiante) e não há um esquema bem fornido para a transmissão das divisões inferiores, que são, afinal de contas, os maiores empregadores e os piores pagadores do universo da bola. Além do mais, a formação de opinião se dá nos grandes centros. A situação no interior do país é de total penúria, invisíveis que são. Mas também são sonhadores; o êxodo é o objetivo de todo aquele que postula um lugar aos refletores. Um autêntico país do futebol não trataria seus filhos menores e mais carentes dessa maneira. Mas a pecha de população mais apaixonada do mundo permanece. E tento entender por que.

Bom... eu gosto de futebol e minha maneira de encarar a questão tem a ver com minha infância e juventude, e uma boa parte do meu contato com esse mundo já foi descrito aqui. Mas vou acrescer alguns detalhes.

Nasci em um momento onde ainda resistiam muitos campos de várzea. Eles não proliferavam mais, mas ainda existiam aos montes. Aquele que eu mais frequentava era próximo a quatro das casas onde cheguei a morar, peregrino do aluguel que era à época. Meu pai era zagueiro grosso e meu tio era bom goleiro no time que lá jogava, o Disparada. Como faz parte do rito, os pais levavam os filhos para assistir os rudimentos do esporte colocados em prática, e de lá, sentado em um montinho de barro, nasce não propriamente o torcedor, mas o apreciador de futebol. É óbvio que uma criança de seus cinco ou seis anos não tem a cognição necessária nem a paciência de suportar 90 minutos de caneladas ali parada, mas o ambiente de socialização é muito atraente. No campo do Disparada, por exemplo, havia a birosquinha do seo Geraldo, pequena e suja como ele próprio, fundidor que era de profissão. Lá, os pais tinham crédito livre, possibilitando-nos o empanturramento com toda sorte de porcarias, para a aflição de nossas mães. Também sempre havia uma bolinha sobrando nas laterais do campo, estimulando a reprodução da peleja em escala menor pelos alegres petizes filhos dos “craques”, eu incluso. Era o aprendizado por imitação, tão caro a Albert Bandura, de quem não deixarei de falar oportunamente.

No momento em que nossa bola ia parar no campo, a lição de hierarquia era inevitável: Não atrapalhem! Nem sempre dito de maneira tão gentil. Aliás, nem sempre dito. Ocorria por vezes de a ordem vir na forma de um chutão a mandar nossa bola para fora do perímetro do campo, inclusive para a perigosa estrada da Vila Ema. A regra de ouro diz: atrás de uma bola, sempre vem uma criança. Alguns dizem que é essa consciência nos motoristas, outros que é o anjo da guarda, mas o fato é que nunca ocorreram atropelamentos nessa circunstância naqueles eventos; só alguns sustos. Bem grandes, eu diria.

Mas a atitude do chutão dava a noção, em nossas vazias cabecinhas, da importância do que acontecia nas quatro linhas – algo que flutuava entre o rito sagrado e a prática da guerra. Afinal, se nossos pais e vizinhos nos falavam abruptamente, eles que eram tão legais, que nos pagavam doces, que nos compravam bolinhas de gude, que nos deixavam sujar suas calçadas e berrar até tarde em suas portas, não era alguma coisa frívola que era disputada naquele terreno esburacado e cheio de linhas de cal. E sentíamos necessidade de ter participação ativa nesse universo.

O clímax era o intervalo entre o primeiro e o segundo tempo. Abandonado pelos combatentes, que iam à precitada bodega refrescar a garganta e reorganizar as táticas, o terrão ficava disponível por restritíssimos quinze minutos para nós, rascunhos de pernas-de-pau. Não eram as pedras que delimitavam agora o arco imaginário; eram as próprias e imensas traves, ainda maiores em seus 7,32 x 2,44 metros para os minúsculos jogadores de pés descalços. Os meninos maiores praticamente ignoravam os pequeninos, mas é só uma questão de espera e vingança – haverá de chegar nossa vez de crescer e pregar a mesma peça nos recém-chegados. Mas sempre sobrava uma bola na medida para batermos de bico na direção do gol, com força insuficiente; mas está lá a defender a meta outro minúsculo ser, e a bola entrando dá a sensação de triunfo na final de um campeonato, justo a mim, caneludo como meu pai. A ruindade futebolística pode até não ser hereditária, mas parece. Só que, dessa forma, a várzea dava uma sensação de proximidade, de pertencimento e de emulação da glória que se arrastaria pelo restante da vida, independentemente da qualidade pessoal de passes e arremates.

Meu avô materno também viria a ter sua participação. Não tinha mais idade para ele mesmo jogar, mas era um amante da várzea, igualmente. Cansei de ir nas manhãs de domingo com ele no CMTC Clube para assistir ao Desafio ao Galo. Com esse aporte, dá para perceber porque não tenho problemas com lugares precários, mesmo concordando que muita coisa poderia melhorar. Não tenho medo de sujar a bunda de barro, em resumo, mas acho mesmo que é melhor sair com o pé um pouco mais limpo. Foi com meu avô que fui a primeira vez (e a segunda, a terceira...) a um estádio de futebol. Não, não foi... Lembrando bem, foi com o meu pai mesmo, na rua Javari para assistir um jogo do Juventus. O que meu avô fez foi me levar pela primeira vez a um jogo do meu time, o Corinthians, no mítico Pacaembu. Assistir um jogo no estádio tinha a mesma diferença com relação a um campinho de várzea que assistir um filme no cinema ou na TV; que levar uma criança, acostumada às piscinas, para ver o mar. A sensação é de assombro ou de admiração; de qualquer forma, de deslumbramento. E o que pode ser mais filosófico que o deslumbramento?

Daí por diante, ir ao estádio passou a ser um hábito, que se manteve até o final da década de 80, sem time certo, e apenas pelo prazer de ver um bom jogo, objetivo nem sempre alcançado. Sempre gostei de assistir os jogos sentado, com observação atenta. Não tenho nada, rigorosamente nada contra os torcedores que pulam e cantam – eles são a autêntica alma dos estádios – mas meu jeito de assistir um jogo é outro, fora das extintas e legítimas gerais, e não acho isso um defeito, apenas uma maneira diferente de acompanhar e apreciar legitimamente o futebol. Isso tira o estatuto de sem graça a uma partida com pouca presença de público.

De onde eu morava, o campo da Rua Javari era o mais fácil de ir, 20 ou 30 minutos de ônibus era o suficiente. O mesmo se aplica ao campo do extinto Saad, de São Caetano do Sul, que jogava no Lauro Gomes (hoje Anacleto Campanella) e também exigia só um ônibus. Outros estádios davam um pouquinho mais de trabalho para ir: Fazendinha (sim, é verdade. Até a década de 80, era comum o Corinthians mandar seus jogos menores lá, com suas arquibancadas enviesadas e sua biquinha de água mineral benta) ficava próxima, mas fora de mão. Para ir ao Canindé, precisava pegar metrô. Para a Comendador Souza, trem. O mesmo valia para o Bruno Daniel, em Santo André, acrescido de ônibus. O Pacaembu era fácil também: ônibus até o Ipiranga e de lá o Pompéia, descendo no cemitério do Araçá. Dali, era morro abaixo. Deu para perceber que não tínhamos carro, correto? O mais complicado era o Morumbi, que ficava longe, longe mesmo. Um jogo no Morumbi te tomava o dia inteiro, não dava para ver jogos lá a toda hora. E é exatamente lá que os grandes clássicos aconteciam. Além do mais, é um estádio imenso. Dependendo do lugar, é muito difícil ver o que se passa em campo. Por isso mesmo, era o estádio em que eu menos ia; em geral, só quando o Corinthians enfrentava os outros grandes. No Parque Antarctica eu nunca fui, por uma ética que hoje acho tola, e a Vila Belmiro conheci mais recentemente, apoiado pela patroa santista.

Com a explosão da violência da década de 90, deixei de ir aos estádios. Já não havia mais campos de várzea para levar meus filhos, e a corrente se quebrou, infelizmente. Mas recordei dos pequenos jogos dos igualmente pequenos clubes e voltei a frequentar os igualmente pequenos estádios. Voltei, em suma, a comparecer nos jogos dos quais nunca deveria ter me afastado: aqueles que dispensam grandes preparações e gastos vultosos das novas arenas. Aqueles jogos em que basta dar na telha e ir, com poucos problemas para encontrar ingresso, para se acomodar no primeiro lugar que se achar e assistir a partida procurando novos craques e reconhecendo antigos operários da bola que ainda resistem à aposentadoria. Se o campo fracassar, há sempre um canolo (canoli é plural, gente) ou um bolinho de bacalhau para fazer compensar a viagem. E tenho lá minhas camisas. A do Santos é da patroa.

Falta a da Lusa, que apanhou anteontem do Oeste de Itápolis
Tem gente que acha ridículo que eu vá em um sábado à tarde assistir a um Juve-Nal pela Copa Paulista. São pessoas que só vão a jogos do seu próprio time, que acham que não existe sentido em acompanhar outras agremiações, a não ser que seja para secá-las, o que pode ser feito remotamente pela TV. Respeito a posição, mas acho que quem faz isso não gosta de futebol, gosta do seu time. Mais ainda: gosta das vitórias do seu time, e acompanhar equipes que passam a maior parte de sua existência mais preocupados em sobreviver do que em conquistar títulos já é, por si só, um fracasso. É o mesmo fenômeno que afeta as viúvas do Senna; a despeito da excelência do precitado piloto, as pessoas que dizem que acabou a graça de levantar cedo no domingo para assistir uma corrida não gostam de automobilismo, gostam de brasileiros vencendo. Por isso mesmo, entendo que a galera que só se preocupa com seu próprio e único time gostam exclusivamente de seu próprio e único time; gostar de futebol é outra coisa. E quem só se ocupa de grandes jogos, gostam de grifes, não de futebol. O futebol nasce e vive nesses pequenos clubes, que não ostentam grandes etiquetas nem vendem camisas a trezentos dinheiros, mas que representam uma determinada comunidade, uma cidade do interior. Um time de futebol, antes de mais nada, é o representante de um determinado conjunto de pessoas que, não necessariamente, precisa ser o time da moda, como o Barcelona ou o Bayern. Sim, são times ótimos de se ver, mas é preciso que exista um Alavés ou um Bochum para o campeonato existir.

Por falar em grifes, há uma tendência em se transformar um jogo de futebol em eventos rodeados pelo espetáculo, e embora não tenha essencialmente nada contra em ser bem tratado, vejo um certo risco em se tirar a importância do jogo em si, além de se fazer com que o ato de se comparecer a um jogo se torne mais significativo pelo aspecto midiático do que pelo esportivo.

Sem dúvida que precisamos atentar um pouco às transformações em nosso sistema social para entender um pouco melhor a pasteurização à qual me refiro. Ou, melhor dizendo, tentar compreender como os níveis da realidade que procuro analisar ficam em consonância entre o que percebemos e o que efetivamente temos. E é aqui que precisamos entrar com os conceitos de simulação e simulacro de Jean Baudrillard, sociólogo e filósofo francês que atacou a fundo a questão da influência da mídia na maneira como as pessoas constroem suas impressões sobre as identidades do que percebemos.

Baudrillard entende que a realidade tangível é algo que ficou no passado. O modo de produção capitalista surgido a partir da Revolução Industrial tornou possível uma reprodutibilidade tão intensa que não há a menor condição de distinguir um original de suas cópias. Isso foi a mola propulsora de um processo em que o mundo físico, do aqui e agora, foi paulatinamente perdendo significado em relação à sua imagem. Esse é um processo de simulação em que a cópia se confunde com o original, mas que ainda vai se agravar, em um mundo onde o virtual substitui o real, na forma de simulacro. Esse tal de simulacro é uma transformação da realidade em idealização, que vem no lugar do real palpável e que se torna objeto de desejo.

Um exemplo para deixar as coisas bem claras: as essências com sabores de fruta. Não há nada nelas que seja oriundo das próprias frutas e, sendo bem justos, algumas delas não chegam nem a lembrar o sabor da fruta a quem pretendem substituir, a não ser pelo nome que lhe foi dado. Há até mesmo essências em que nem se intenciona criar correlação com uma fruta real, como o clássico tutti-frutti, o blue ice ou o beijinho doce, que simplesmente não correspondem a nada de concreto na realidade, mas que o pessoal resolveu lançar assim mesmo porque é gostoso. Mas mesmo aquelas que, em tese, correspondem a uma fruta, tem seu sabor aperfeiçoado de modo a se tornar um paradigma, um novo ditame a ser seguido para tudo o que se relacione a determinada fruta suposta. E a fruta real, essa foge completamente da “reprodução” da essência. Pensem no seguinte: há algo mais doce-tão-doce-mais-doce-que-o-doce-de-batata-doce do que uma bala de morango? Justo ele, uma fruta cítrica, que às vezes precisa de um pouco de açúcar e creme para ser comido com mais prazer?

E assim segue com outros exemplos: a manga real é fibrosa, o abacaxi real urtica a língua, o tamarindo real é azedo de fazer chorar (e solta o intestino que é uma beleza). Suas essências não têm nenhuma dessas desvantagens. E mais ainda: as frutas reais não tem padrão de sabor, cada uma é uma surpresa. Quem já não teve a oportunidade de pegar um melão amargoso, uma melancia aguada, uma laranja insossa? No mundo dos simulacros, isso não ocorre, e o sabor é padronizado: sempre docinho, sempre equilibrado, sempre perfeito, sempre o mesmo. Desta forma, é o simulacro que se torna real, é com ele que produzimos uma referência, e não a realidade em si mesma. Interiorizamos que o sabor real da fruta é o da essência, e achamos que a pera comprada na feira não tem gosto de pera de verdade. E só desejamos o simulacro.

O problema é que o mesmo se aplica a inúmeros outros casos, incluindo o modo de vida das pessoas, o que vai se tornando perigoso. Reality shows são um caso extremo de simulacro, mas as próprias novelas reproduzem a mesma lógica, como eu já havia escrito há algum tempo atrás. Comparado com o amor quente, eterno e perfeito das tramas, temos uma vida sem sal, com relações tediosas, rotineiras, marcadas por discordâncias. Esquecemos que a vida é assim mesmo; as pessoas – todas – têm manias, têm defeitos, têm idiossincrasias, têm preferências, têm gases. O simulacro apenas nos dá a impressão de que vivemos errado, somos culpados pela vida de merda que levamos, por não nos adaptarmos a um modus vivendi que, no final das contas, não existe.

E no que isso tem relação com a vida nos estádios? Baudrillard é absolutamente radical em suas ideias. Para ele, viver uma não-realidade não é uma perspectiva, é um fato já consumado, totalmente arraigado em nosso dia-a-dia. Se observarmos a recente construção de arenas em nosso país, podemos sentir, sim, um pouco dessa profecia se cumprindo. Quando vemos o interior de um campo como a Allianz Arena, do Bayern de Munique, vemos um mundo maravilhoso, todo bem construído, confortável e desejável. Quando saímos, esta mesma realidade continua, estende-se através de uma cidade bem organizada, com transporte público eficiente a ponto de tornar quase desnecessário o uso de carros. Além disso, a cidade preserva seus traços históricos e não renega a modernidade. Estamos falando de um país como a Alemanha, plenamente desenvolvido. Se falarmos de seu xará brasileiro, o Allianz Parque, ou de seu concorrente, a Arena de Itaquera, teremos a mesma sensação de realidade nababesca ao olhar para o seu interior. Mas, ao meter o nariz para fora, temos uma realidade que diverge integralmente do que acontece lá dentro. Um entorno sem desenvolvimento ou sem possibilidade de expansão, trânsito difícil e transporte deficitário. Não adianta simular a realidade alemã – estamos no Brasil. Essa sensação de “ilha”, produzida a partir do ingresso em uma arena, faz com que o torcedor perca uma boa parte da noção do que ele está fazendo ali. As arenas maravilhosas sempre serão uma exceção dentro da cidade de São Paulo, ao contrário do que acontece em Munique. Esse recorte entre o mundo de sonho das arenas do Palmeiras ou do Corinthians, dissonante com tudo o que vemos nos trajetos que nos levam a elas, se incute em nossa cabeça na forma de uma contradição: o registro da nossa presença na arena é mais importante do que a própria presença em si. Se eu não fizer selfies e mandar para todos os contatos dos zape-zapes da vida, é a mesma coisa de não ter ido ao jogo. É mais importante o simulacro de realidade do campo luxuoso do que o próprio jogo real. Esse é o jogo que vale a pena ver, dizem aqueles que não entendem como eu posso gostar de assistir um jogo da segunda ou terceira divisão.

Mas ainda temos algo real para ver?

Notem como, ao contar um pequeno pedaço da minha vida, perpassa-se a narrativa com elementos dos clubes pequenos, e como eles dizem coisas a respeito de mim, muito mais até mesmo que os grandes clubes. E, se os times pequenos dizem a respeito de um único contribuinte, quanto mais não farão pela história da própria cidade, homens de pouca fé? Em especial daqueles menos recordados de sempre – os operários, os suburbanos, os pretos, os pobres, as putas, apesar das exceções. Preservar a história destes clubes menores é preservar a memória de uma camada pobre da população, o que é muito raro. É de se esperar que aqueles que pouco podiam fazer em termos de lazer não teriam lá muito o que preservar de fotos e memorabilia. Mas é deles que ainda podemos extrair informações que os clubes maiores já se afastaram muito e não deixam mais transparecer.

Comecemos pelo Nacional AC, clube da tradicional Barra Funda que é o primo pobre do assim chamado “triângulo do futebol”, junto aos CT’s de Palmeiras e São Paulo. O Nacional é descendente direto do primeiro time de futebol do Brasil, o São Paulo Railway, fundado não menos do que pelo próprio Charles Muller, que trouxe da Inglaterra as regras e os materiais do esporte. É um clube que mantém até hoje sua raiz ferroviária, exemplificada no seu mascote, um personagem típico das gares, com seu quepe redondo e seu apito. É alusivo a um tempo em que as ferrovias eram muito mais significativas do que são hoje. Se olharmos para o Corinthians, não possuímos nenhuma referência, nem no nome, nem no distintivo, nem no hino, nem no mascote, que ele tem a mesmíssima origem do Nacional: os grupos de operários das estradas de ferro, aos quais se juntaram outros trabalhadores das várzeas do Tietê para fundar o clube que é o que é hoje. Quase ninguém sabe disso, nem mesmo os corinthianos. Já pensou? Sport Club Ferroviária Paulista? Rá, rá, rá... Lembrem-se que sou corinthiano, evitem me matar.

A patroinha na Comendador Souza
No caso da até a pouco tempo atrás grande Portuguesa, ainda resta o modo com os quais uma colônia se construiu e manteve sua identificação. Há no Canindé um time cujo nome já diz tudo sobre sua origem, há o bolinho de bacalhau no bar do estádio, há a dança folclórica e há a festa típica. A torcida acompanha as cobranças de falta com palmas em ritmo de vira, canta fado como grito de guerra. É, em suma, mais do que um time, é uma instituição cultural e pedagógica. É um time de uma determinada imigração constituinte da composição de São Paulo. Um clube muito maior, que também nasceu de uma colônia, que também ostentava o nome de uma imigração, como o Palmeiras, diminuiu muito os traços dessa origem. Tudo bem, seu nome foi uma mudança forçada, mas foi só o início, passando por suas cores, até chegar no próprio nome de seu estádio, outrora com o sonoríssimo nome de Palestra Itália. Os nomes dos campos agora se compram, o que os tornam insossos, como é o molho de tomate de latinha diante do da mamma. Ok, o Palmeiras transcendeu sua própria origem e virou um clube de expressão nacional. Mas é só uma identificação que faz isso? O Vasco da Gama não é igualmente grande? A Portuguesa não poderia continuar a ser?

Talvez o exemplo melhor solucionado seja o do Juventus, da minha gloriosa Mooca, cujo campo minúsculo vive infestado dos alegres grenás, que cantam a Aquarela do Brasil à moda portenha: “Ôôôôô, e dá-lhe, dá-lhe, Juventoooooooos; e dá-lhe, dá-lhe, Juventoooos”... Em todo fim de semana, seja no sábado à tarde ou no domingo de manhã, o estádio Comendador Rodolfo Crespi está cheio. A explicação vem do quase inexplicável bairrismo dos mooquenses. O Juventus não é só pequeno; ele nunca foi grande. Mas, parafraseando Fernando Pessoa na pessoa de Alberto Caeiro, o Juventus é o melhor time do mundo porque é o time do meu bairro, ao menos para os nascidos na Mooca, como eu. Não há lá ninguém que tenha o Juventus como time número 1, mas também não há ninguém para quem o Juventus não seja o time número 2, o time da minha vila, que joga no meu quintal.

Se o Juventus servisse de exemplo, com o campo colado na antiga fábrica têxtil que lhe deu origem, teríamos muita sensação de pertença e conservação da história, o que poderia reverter os efeitos pensados por Boudrillard, já que manteríamos os pés na realidade justamente por nos orgulhar dela. Se o pessoal da Barra Funda e região aderisse da mesma forma ao Nacional, um dos campos mais acolhedores para assistir jogos se tornaria mais conhecido da cidade inteira, e se saberia que é lá que nasceu o tal do país do futebol; pelo menos um dos seus filhos mais antigos. Se a Portuguesa conseguisse chamar de volta o pessoal dos bairros tipicamente portugueses, como a Vila Maria e a Vila Guilherme; se conseguisse a adesão dos moradores do Brás e adjacências; se conseguisse transmitir pertença a todas as outras colônias pelo elo que as uniu em nossa terra, a nossa língua, talvez conseguisse atrair até mesmo os novíssimos imigrantes que estão profusamente ao seu redor, e se tornasse um prazer assistir seus jogos em estádio de tão fácil acesso. E talvez fosse mais rápido desfazer o mal da rapina lograda aos seus cofres.

Mas o Brasil não é o país do futebol, essa é a conclusão. No país do futebol, uma cidade com doze milhões de habitantes não deixaria de preencher os vinte mil lugares do Canindé, no que seria uma boa fonte de renda para que um time por onde desfilaram craques como Filó, Djalma Santos, Pinga, Brandãozinho, Ivair, Julinho Botelho, Jair, Servílio, Félix, Ditão, Marinho Perez, Enéas, Leivinha, Wilsinho, Zé Maria, Basílio, Ratinho, Jorginho, Toninho, Edu Marangon, Bentinho, Dener, Tico, Zé Roberto, Rodrigo Fabri, Leandro Amaral, Capitão, Guilherme, Bruno Henrique e muitos outros. Casa cheia seria uma boa fonte de renda mesmo com os ingressos mais em conta, para que a roda de visibilidade e patrocínios começasse a girar. Apenas pela motivação histórica, no país do futebol um clube como a Portuguesa já haveria sido socorrido. Mas não. O país de futebol, para sê-lo, precisaria contar com o orgulho da população em ter um time local, e no fato deste time enfrentar os clubes das cidades próximas com o mesmo nível de apoio com que recebe um time grande. Ainda que sentados em montinhos de barro, como eu fazia quando criança, porque essa é a realidade que vivemos no país, fora das grandes arenas. Nosso país não é uma arena. É pobre. Nosso povo é pobre, infelizmente.

Recomendações:

A principal obra de Baudrillard voltada ao assunto aqui tratado é a seguinte, muito interessante:

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

Um canal de futebol do Youtube bastante interessante é o do Esporte Interativo. Gosto, principalmente, do quadro “Polêmicas Vazias”, conduzido pelo Bruno Formiga. Aliás, de vazias, as polêmicas não têm nada. Mesmo que não concorde com todas as suas opiniões, aprecio muito a maneira como ele as coloca, principalmente pelo científico fato de que ele procura embasá-las, evitando meros achismos. Segue um exemplo de vídeo bem interessante:

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