Domingão é dia de jogo. Recomeçou o futebol miúdo, após o
longo lapso deixado pela Copa do Mundo, fenômeno que se repete a cada quatro
anos. Se já se espreme tudo com os clubes de elite e nos campeonatos
principais, que não se fará com os deserdados da famélica Ilha de Vera Cruz...
Enfrentam-se Portuguesa e Nacional, dois times que eu gosto, pela Copa Paulista
– um torneio tampão para os escretes que não tem o que jogar no segundo
semestre. Ora, direis, você perde tempo assistindo jogos de times pobres em
campeonatos de pouca valia. Por que não vai acompanhar seu Corinthians em sua
esplêndida arena? Bem, já expliquei a coisa aqui,
mas, além disso, cumpre lembrar que o ingresso desses novos estádios é muito
caro, escorchante mesmo. Não dá para ir sempre, sendo eu um assalariado. Por
outro lado, chego em dez minutos no Canindé, compro o ingresso em cinco e pago
dez reais. É garantia de bons jogos? Não, mas quem assistiu Croácia vs
Dinamarca na pomposa Copa, com todos os seus ornatos e pompons, sabe muito bem
que isso não existe. E, no final das contas, para quem gosta de futebol em uma
tarde de domingo está bom. Ou você prefere ver o Rodrigo Faro? Faustão? Gugu?
Datena?
À parte disso tudo, um estádio é um lugar favorabilíssimo à
pratica de Filosofia. É verdade! Já falei tantas vezes de futebol neste blog
que nem vou ficar relacionando minudentemente (vejam aqui,
aqui,
aqui,
aqui,
aqui,
aqui,
aqui
e aqui).
Isso porque temos um microcosmos compactado em um único lugar, e, embora não
seja um recorte preciso da sociedade, dá para observar e refletir sobre um
monte de coisas. A torcida, por exemplo, manifesta-se a todo instante. Canta
para incentivar seu time, para ameaçar o adversário, para regozijar o craque e
escrachar o perneta, para homenagear mães da equipe de arbitragem. O técnico
fala mais que pobre na chuva, berrando orientações que os jogadores obviamente
não escutam no burburinho. Gesticula freneticamente, como se estivesse com o Baile de San Vito*, desesperado para se
fazer entender. O juiz apita, aponta, exibe cartões, peita jogadores reclamões,
e os bandeiras agitam suas, ora... bandeiras, sinalizando impedimentos e
faltas. Há o placar, há os cartazes, há a inútil numeração dos assentos, há
vendeiros apregoando seus amendoins, há faixas das organizadas, há setas –
arquibancada para cá, cadeiras para lá. Há tudo isso e muito mais, e, permeando
cada canto, cada grito, cada xingo, e mesmo cada gesto, há uma essência comum
costurando e amarrando tudo, uma espécie de teleologia que vai fazendo farto uso
da palavra, escrita e falada, e de um monte outro de símbolos. É uma das
características mais marcantes do ser humano em pleno funcionamento e pulsação:
a Comunicação, feita através de sua fascinante ferramenta – a Linguagem. O que
ela é? Qual é o seu alcance e seus limites? Ela é eficiente? Podemos nos fazer
entender sempre? O que seria do conhecimento sem a linguagem? São perguntas que
são abordadas pela Filosofia da Linguagem, que passaremos a esmiuçar agora.
Linguagem é um
conjunto de códigos destinados a interpretar e traduzir conteúdos mentais, de
maneira a permitir que as pessoas se comuniquem. Sua etimologia engana um
pouco, já que, evidentemente, se originou do órgão tão hábil na maledicência, sendo
que a fala é a forma mais perceptível de comunicação que conhecemos. No
entanto, ela não se limita a isso. Gestual, escrita e outros mecanismos
permitem que, através da convenção de símbolos, as pessoas se manifestem. Só
que ela é tão corriqueira e tão humana que, se observarmos a história da
Filosofia, veremos que as perguntas sobre a linguagem são bem recentes. Em um
passado mais remoto, veremos que apenas a questão dos universais, uma das
favoritas da Idade Média, tem algum fundamento na linguagem, mas, mesmo assim,
de fundo mais metafísico do que propriamente linguístico. A coisa não é, a
princípio, muito complexa. Há duas correntes divergentes e uma de consenso, que
apazigua as duas. Os realistas entendem que tudo o que existe possui um modelo
de si próprio que dá origem a todas as suas cópias, e é isso que podemos
encontrar ao nosso redor. Por exemplo, pensemos em uma roda. Existem milhões
delas por aí, em veículos, motores, brinquedos, relógios, carrinhos de mercado.
Mas haveria um paradigma de roda que plasma todas as outras, uma espécie de
“Deus das rodas”. Parece ridículo? Pois Platão era seu principal propugnador, e
essa roda-protótipo habitaria no mundo das ideias, servindo de fundamento para
todas as demais que existem. Ou seja, existiria uma roda-em-si-mesma,
universal, válida em qualquer tempo e em qualquer lugar, em uma realidade à
parte, e as demais rodas, as rodas do mundo sensível, seriam cópias dela.
Os principais contestadores dos realistas eram os
nominalistas, para quem os nomes que damos às coisas nada mais são do que isso
mesmo – nomes. Chamamos qualquer coisa por um nome que lhe lembra tal objeto,
por uma onomatopeia ou porque a palavra é bonitinha. Roda, portanto, poderia
ter qualquer outro nome, e nada mudaria. Maria, José, Abraão, café, botijão,
Pink Floyd, edema... Imagine o grito na rua: “Olha! Seu edema está furado!” –
sim, eu sei que o que fura não é a roda, mas o pneu. Mas o nome não muda o
objeto em si. O universal, neste caso, não traz nada de comum aos objetos que
representa, a não ser um nome pelo qual são conhecidos. Guilherme de Ockham, aquele
da navalha, é um dos principais pensadores nominalistas, homem prático e
pragmático que era.
Finalmente, a terceira via chegava pelas mãos dos
conceptualistas, para quem o nome em si não traz nada, mas que serve para
agregar um conceito que temos da coisa-em-si. Dessa forma, quando usamos o nome
“roda”, já se evoca o seu conceito, ou seja, um objeto circular, que tem o
propósito de girar e reduzir atritos. Enfim, um conceito é uma carga de
significados, e não um mero nome, apesar de também não ser um paradigma, como
queria Platão. Como filósofo conceptualista relevante, cito Pedro Abelardo, de
quem dei uma palhinha neste
texto.
Mas os problemas linguísticos vão muito além de uma mera
querela metafísica. Há muita dificuldade em que se consiga uma forma de
expressão que se faça entender sem nenhum tipo de ruído. Há sutilezas para quem
fala e para quem ouve que impedem que o elo comunicacional se feche. Eu mesmo
já tratei da questão como uma síndrome da linguagem, que nos perpetua o
isolamento (é um texto bem interessante, onde eu fui filósofo, e não professor.
Leiam aqui).
E com o crescimento das Ciências a partir do Renascimento, e mais
especificamente após os avanços da Revolução Industrial, a linguagem necessita
ser vista com maior cuidado, pelo simples fato de que a precisão requerida em
uma encontrava um eco insuficiente na outra. Pense, por exemplo, no que
queremos dizer com a palavra “quente”. Como é possível estipular o que é
quente? Cem graus é quente? Para ferver a água, sim. Para fundir ferro, nem faz
cócegas. Para saber, precisamos de referenciais que são mais móveis do que
laterais-direitos em dia de clássico. Isso sem contar os muitos sentidos
conotativos que a palavra pode auferir: um ritmo é quente quando convida à
dança, um namoro é quente quando há mãos naquilo e aquilo nas mãos, uma aposta
é quente quando tem boa chance de emplacar. E pergunte para uma quituteira
baiana e você conhecerá um conceito completamente diferente para quentura. Essa
indefinição não serve para a Ciência, que necessita de exatidão em seus
cálculos e teoremas. Já pensou passar por uma ponte que o engenheiro não sabia
se tinha que multiplicar por 10 ou por 1000? Daí, a Filosofia partiu em busca
de uma linguagem inequívoca, que conseguisse refletir indubitavelmente toda
sorte de fenômenos. Não conseguiu completamente até hoje, mas a principal
influência nesta linha de pensamento é Gottlob Frege.
Frege dá, pela primeira vez, um olhar mais carinhoso para a
linguagem. Ele constata, por exemplo, que uma das fontes da ambiguidade é o fato
de que os nomes que damos a pessoas e objetos possuem uma referência e um
sentido. A primeira é aquilo que designa o objeto em si, enquanto a segunda é
uma espécie de modo de apresentação, e este pode ser extremamente variável.
Digamos que eu evoque o homem Edson Arantes do Nascimento. Estou falando de
alguém bem específico e definido, conforme está registrado em sua cédula de
identidade. Ou seja, estou fazendo uma referência.
Sabemos, no entanto, que é raro que esse cara, tão conhecido, seja tratado por
seu nome de batismo. Ele recebe outros tratamentos, que vão além da referência
pura que seu nome dá. “Pelé”, por exemplo, é um apelido de infância cuja origem
se perdeu no tempo. “Atleta do século” e “rei do futebol” são reverências à sua
carreira de brilhantismo. Poderia ainda ser chamado de muitas outras coisas,
como o “pai do Edinho”, “filho ilustre de Três Corações”, o “poeta quando tem a
boca fechada” (segundo outro gênio, o Romário) ou tantas outras, muitas
elogiosas, outras nem tanto, algumas sem juízo de valor. Essas são as
diferentes maneiras como o cidadão Edson é apresentado, e essas são as funções
de sentido da linguagem. Todos os
sentidos exemplificados têm uma única referência. Esta é pura e seca, tentando
ser inequívoca, enquanto os sentidos vêm carregados de uma carga emocional,
histórica, social, ambiental, contingencial. Mas o próprio nome Edson, não é
ele mesmo um sentido? Sim. Nesse caso, a própria referência é um sentido.
Confuso, né? Talvez eu volte a abordar o assunto, com mais cuidado.
É óbvio que Frege estava mais preocupado com a lógica e com
os desvios que a linguagem produz, mas é a partir daí que ela passou a ser um
objeto de estudo de Filosofia em si própria. O pano de fundo tem a ver com o
mesmo avanço científico. Se o projeto da Ciência é apresentar a verdade, e
sendo esta mais poderosa do que as ferramentas especulativas da Filosofia, faz
todo o sentido que a tarefa lhe seja atribuída. À coruja de Minerva restará
trilhar outras sendas, que não se preocupem em perscrutar um conhecimento
castiço, mas a lhe buscar significados. Sabemos que a Teoria
do Conhecimento sempre encontrou dificuldades para determinar como se dá o
processo de aquisição cognitiva, pelas peculiaridades dos pontos de vista, dos
defeitos dos sentidos, do aporte intelectivo de quem aprende e cosí via. Na virada do século XIX para o
XX, os filósofos incluem na pauta a linguagem não só como meio, mas como
componente do conhecimento. É a chamada virada
linguística.
Com efeito, o que essa nova tendência traz como principal
inovação é a promoção da linguagem ao mesmo patamar do saber. Anteriormente, a
linguagem era vista como um meio para “pôr para fora” o conhecimento. No
entanto, a partir da ideia de que a linguagem é imprescindível para a
articulação dos conteúdos mentais, percebe-se que ela é indissociável do
conhecimento. Este seria, portanto, uma formação dupla, composta por conteúdos
mentais e linguagem, um não podendo sobreviver sem o outro, até mesmo porque é
a partir da existência do código que os fluxos mentais podem fazer associações
e novas constituições. A linguagem sem conhecimento é vazia; o conhecimento sem
linguagem é inefável.
A virada linguística teve duas importantes escolas: O Wiener Kreis (Círculo de Viena) e o
movimento de Cambridge-Oxford. No primeiro, floresce uma vertente conhecida
como Positivismo Lógico. Nomes como
Otto Neurath, Rudolph Carnap e Moritz Schlick trabalharam na concepção de novos
critérios que aliassem o indutivismo tradicional com as novas linguagens da Lógica
para dar base às afirmações da Ciência. O princípio da verificação sepultava
qualquer pretensão da Metafísica
em dar valor de verdade aos fenômenos. Não que esta fosse falsa, mas vazia de
significado, porque inverificável, dando assim um novo molde à Filosofia
da Ciência. Sua principal ligação com o estudo da linguagem se dá no âmbito
da redução dos fatos científicos a proposições – somente será considerado científico
algo que possa ser sintetizado em uma declaração verificável. Portanto, a
primeira análise de uma hipótese é linguística. É possível verificar a
assertiva de que “nenhum planeta do universo contém vida além da Terra”? Não.
Portanto, é uma afirmação descartada como científica já no plano da linguagem.
O Positivismo Lógico foi posteriormente superado pelo princípio
da falseabilidade de Karl Popper, mais factível e, no fundo, mais simples.
Já o segundo movimento deu origem ao que hoje é aplicado
como sinônimo de Filosofia da Linguagem, a Filosofia
Analítica. Além da óbvia alusão à análise da linguagem como elemento
constituinte do conhecimento, esse nome também deriva da revista editada em
Cambridge e principal órgão da tendência em se substituir a análise do objeto
pela linguagem que o representa, Analysis.
O principal objetivo das duas universidades britânicas era demonstrar como a
Filosofia era análoga à própria linguagem, na medida em que esta É
conhecimento. Analisar a linguagem seria a nova Gnosiologia,
agora voltada para seu elemento mais evidente, como pode ser visto na Teoria
Pictórica da Frase de Ludwig Wittgenstein, no Atomismo
Lógico de Bertrand Russell e em outros pensadores, como George E. Moore,
Gilbert Ryle e John Wisdom. Eles se aprofundam na estrutura da linguagem para
descobrir o modo com o qual ela espelha realidade e pensamento.
Bom... por ora, é isso. A Filosofia da Linguagem não é
análise de origem de palavras, isso é Etimologia; não é análise dos usos e
desvios da norma, isso é Gramática; não estuda como se formam os idiomas, isso
é Filologia, e não se ocupa com aspectos morfológicos ou sociais, isso é
Linguística. A tarefa da Filosofia está na análise da linguagem como fenômeno
humano que lhe fornece meio para desenvolver sua melhor característica – a
razão. Bons ventos a todos.
Recomendação de leitura:
Vamos de Frege, que é basilar na compreensão da moderna
interpretação da linguagem, e que é muito válido ainda hoje.
FREGE, F. Gottlob. Sobre
o sentido e a referência. São Paulo: Cultrix, 1978.
* Baile de San Vito
é uma expressão espanhola para ataque epilético. Crê-se que São Vito Mártir era
o protetor contra esse tipo de moléstia. Fonte: Tia Antonia, espanhola.
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