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terça-feira, 14 de agosto de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (18 – Filosofia da Linguagem)

Olá!


Domingão é dia de jogo. Recomeçou o futebol miúdo, após o longo lapso deixado pela Copa do Mundo, fenômeno que se repete a cada quatro anos. Se já se espreme tudo com os clubes de elite e nos campeonatos principais, que não se fará com os deserdados da famélica Ilha de Vera Cruz... Enfrentam-se Portuguesa e Nacional, dois times que eu gosto, pela Copa Paulista – um torneio tampão para os escretes que não tem o que jogar no segundo semestre. Ora, direis, você perde tempo assistindo jogos de times pobres em campeonatos de pouca valia. Por que não vai acompanhar seu Corinthians em sua esplêndida arena? Bem, já expliquei a coisa aqui, mas, além disso, cumpre lembrar que o ingresso desses novos estádios é muito caro, escorchante mesmo. Não dá para ir sempre, sendo eu um assalariado. Por outro lado, chego em dez minutos no Canindé, compro o ingresso em cinco e pago dez reais. É garantia de bons jogos? Não, mas quem assistiu Croácia vs Dinamarca na pomposa Copa, com todos os seus ornatos e pompons, sabe muito bem que isso não existe. E, no final das contas, para quem gosta de futebol em uma tarde de domingo está bom. Ou você prefere ver o Rodrigo Faro? Faustão? Gugu? Datena?

À parte disso tudo, um estádio é um lugar favorabilíssimo à pratica de Filosofia. É verdade! Já falei tantas vezes de futebol neste blog que nem vou ficar relacionando minudentemente (vejam aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). Isso porque temos um microcosmos compactado em um único lugar, e, embora não seja um recorte preciso da sociedade, dá para observar e refletir sobre um monte de coisas. A torcida, por exemplo, manifesta-se a todo instante. Canta para incentivar seu time, para ameaçar o adversário, para regozijar o craque e escrachar o perneta, para homenagear mães da equipe de arbitragem. O técnico fala mais que pobre na chuva, berrando orientações que os jogadores obviamente não escutam no burburinho. Gesticula freneticamente, como se estivesse com o Baile de San Vito*, desesperado para se fazer entender. O juiz apita, aponta, exibe cartões, peita jogadores reclamões, e os bandeiras agitam suas, ora... bandeiras, sinalizando impedimentos e faltas. Há o placar, há os cartazes, há a inútil numeração dos assentos, há vendeiros apregoando seus amendoins, há faixas das organizadas, há setas – arquibancada para cá, cadeiras para lá. Há tudo isso e muito mais, e, permeando cada canto, cada grito, cada xingo, e mesmo cada gesto, há uma essência comum costurando e amarrando tudo, uma espécie de teleologia que vai fazendo farto uso da palavra, escrita e falada, e de um monte outro de símbolos. É uma das características mais marcantes do ser humano em pleno funcionamento e pulsação: a Comunicação, feita através de sua fascinante ferramenta – a Linguagem. O que ela é? Qual é o seu alcance e seus limites? Ela é eficiente? Podemos nos fazer entender sempre? O que seria do conhecimento sem a linguagem? São perguntas que são abordadas pela Filosofia da Linguagem, que passaremos a esmiuçar agora.


Linguagem é um conjunto de códigos destinados a interpretar e traduzir conteúdos mentais, de maneira a permitir que as pessoas se comuniquem. Sua etimologia engana um pouco, já que, evidentemente, se originou do órgão tão hábil na maledicência, sendo que a fala é a forma mais perceptível de comunicação que conhecemos. No entanto, ela não se limita a isso. Gestual, escrita e outros mecanismos permitem que, através da convenção de símbolos, as pessoas se manifestem. Só que ela é tão corriqueira e tão humana que, se observarmos a história da Filosofia, veremos que as perguntas sobre a linguagem são bem recentes. Em um passado mais remoto, veremos que apenas a questão dos universais, uma das favoritas da Idade Média, tem algum fundamento na linguagem, mas, mesmo assim, de fundo mais metafísico do que propriamente linguístico. A coisa não é, a princípio, muito complexa. Há duas correntes divergentes e uma de consenso, que apazigua as duas. Os realistas entendem que tudo o que existe possui um modelo de si próprio que dá origem a todas as suas cópias, e é isso que podemos encontrar ao nosso redor. Por exemplo, pensemos em uma roda. Existem milhões delas por aí, em veículos, motores, brinquedos, relógios, carrinhos de mercado. Mas haveria um paradigma de roda que plasma todas as outras, uma espécie de “Deus das rodas”. Parece ridículo? Pois Platão era seu principal propugnador, e essa roda-protótipo habitaria no mundo das ideias, servindo de fundamento para todas as demais que existem. Ou seja, existiria uma roda-em-si-mesma, universal, válida em qualquer tempo e em qualquer lugar, em uma realidade à parte, e as demais rodas, as rodas do mundo sensível, seriam cópias dela.

Os principais contestadores dos realistas eram os nominalistas, para quem os nomes que damos às coisas nada mais são do que isso mesmo – nomes. Chamamos qualquer coisa por um nome que lhe lembra tal objeto, por uma onomatopeia ou porque a palavra é bonitinha. Roda, portanto, poderia ter qualquer outro nome, e nada mudaria. Maria, José, Abraão, café, botijão, Pink Floyd, edema... Imagine o grito na rua: “Olha! Seu edema está furado!” – sim, eu sei que o que fura não é a roda, mas o pneu. Mas o nome não muda o objeto em si. O universal, neste caso, não traz nada de comum aos objetos que representa, a não ser um nome pelo qual são conhecidos. Guilherme de Ockham, aquele da navalha, é um dos principais pensadores nominalistas, homem prático e pragmático que era.

Finalmente, a terceira via chegava pelas mãos dos conceptualistas, para quem o nome em si não traz nada, mas que serve para agregar um conceito que temos da coisa-em-si. Dessa forma, quando usamos o nome “roda”, já se evoca o seu conceito, ou seja, um objeto circular, que tem o propósito de girar e reduzir atritos. Enfim, um conceito é uma carga de significados, e não um mero nome, apesar de também não ser um paradigma, como queria Platão. Como filósofo conceptualista relevante, cito Pedro Abelardo, de quem dei uma palhinha neste texto.

Mas os problemas linguísticos vão muito além de uma mera querela metafísica. Há muita dificuldade em que se consiga uma forma de expressão que se faça entender sem nenhum tipo de ruído. Há sutilezas para quem fala e para quem ouve que impedem que o elo comunicacional se feche. Eu mesmo já tratei da questão como uma síndrome da linguagem, que nos perpetua o isolamento (é um texto bem interessante, onde eu fui filósofo, e não professor. Leiam aqui). E com o crescimento das Ciências a partir do Renascimento, e mais especificamente após os avanços da Revolução Industrial, a linguagem necessita ser vista com maior cuidado, pelo simples fato de que a precisão requerida em uma encontrava um eco insuficiente na outra. Pense, por exemplo, no que queremos dizer com a palavra “quente”. Como é possível estipular o que é quente? Cem graus é quente? Para ferver a água, sim. Para fundir ferro, nem faz cócegas. Para saber, precisamos de referenciais que são mais móveis do que laterais-direitos em dia de clássico. Isso sem contar os muitos sentidos conotativos que a palavra pode auferir: um ritmo é quente quando convida à dança, um namoro é quente quando há mãos naquilo e aquilo nas mãos, uma aposta é quente quando tem boa chance de emplacar. E pergunte para uma quituteira baiana e você conhecerá um conceito completamente diferente para quentura. Essa indefinição não serve para a Ciência, que necessita de exatidão em seus cálculos e teoremas. Já pensou passar por uma ponte que o engenheiro não sabia se tinha que multiplicar por 10 ou por 1000? Daí, a Filosofia partiu em busca de uma linguagem inequívoca, que conseguisse refletir indubitavelmente toda sorte de fenômenos. Não conseguiu completamente até hoje, mas a principal influência nesta linha de pensamento é Gottlob Frege.

Frege dá, pela primeira vez, um olhar mais carinhoso para a linguagem. Ele constata, por exemplo, que uma das fontes da ambiguidade é o fato de que os nomes que damos a pessoas e objetos possuem uma referência e um sentido. A primeira é aquilo que designa o objeto em si, enquanto a segunda é uma espécie de modo de apresentação, e este pode ser extremamente variável. Digamos que eu evoque o homem Edson Arantes do Nascimento. Estou falando de alguém bem específico e definido, conforme está registrado em sua cédula de identidade. Ou seja, estou fazendo uma referência. Sabemos, no entanto, que é raro que esse cara, tão conhecido, seja tratado por seu nome de batismo. Ele recebe outros tratamentos, que vão além da referência pura que seu nome dá. “Pelé”, por exemplo, é um apelido de infância cuja origem se perdeu no tempo. “Atleta do século” e “rei do futebol” são reverências à sua carreira de brilhantismo. Poderia ainda ser chamado de muitas outras coisas, como o “pai do Edinho”, “filho ilustre de Três Corações”, o “poeta quando tem a boca fechada” (segundo outro gênio, o Romário) ou tantas outras, muitas elogiosas, outras nem tanto, algumas sem juízo de valor. Essas são as diferentes maneiras como o cidadão Edson é apresentado, e essas são as funções de sentido da linguagem. Todos os sentidos exemplificados têm uma única referência. Esta é pura e seca, tentando ser inequívoca, enquanto os sentidos vêm carregados de uma carga emocional, histórica, social, ambiental, contingencial. Mas o próprio nome Edson, não é ele mesmo um sentido? Sim. Nesse caso, a própria referência é um sentido. Confuso, né? Talvez eu volte a abordar o assunto, com mais cuidado.

É óbvio que Frege estava mais preocupado com a lógica e com os desvios que a linguagem produz, mas é a partir daí que ela passou a ser um objeto de estudo de Filosofia em si própria. O pano de fundo tem a ver com o mesmo avanço científico. Se o projeto da Ciência é apresentar a verdade, e sendo esta mais poderosa do que as ferramentas especulativas da Filosofia, faz todo o sentido que a tarefa lhe seja atribuída. À coruja de Minerva restará trilhar outras sendas, que não se preocupem em perscrutar um conhecimento castiço, mas a lhe buscar significados. Sabemos que a Teoria do Conhecimento sempre encontrou dificuldades para determinar como se dá o processo de aquisição cognitiva, pelas peculiaridades dos pontos de vista, dos defeitos dos sentidos, do aporte intelectivo de quem aprende e cosí via. Na virada do século XIX para o XX, os filósofos incluem na pauta a linguagem não só como meio, mas como componente do conhecimento. É a chamada virada linguística.

Com efeito, o que essa nova tendência traz como principal inovação é a promoção da linguagem ao mesmo patamar do saber. Anteriormente, a linguagem era vista como um meio para “pôr para fora” o conhecimento. No entanto, a partir da ideia de que a linguagem é imprescindível para a articulação dos conteúdos mentais, percebe-se que ela é indissociável do conhecimento. Este seria, portanto, uma formação dupla, composta por conteúdos mentais e linguagem, um não podendo sobreviver sem o outro, até mesmo porque é a partir da existência do código que os fluxos mentais podem fazer associações e novas constituições. A linguagem sem conhecimento é vazia; o conhecimento sem linguagem é inefável.

A virada linguística teve duas importantes escolas: O Wiener Kreis (Círculo de Viena) e o movimento de Cambridge-Oxford. No primeiro, floresce uma vertente conhecida como Positivismo Lógico. Nomes como Otto Neurath, Rudolph Carnap e Moritz Schlick trabalharam na concepção de novos critérios que aliassem o indutivismo tradicional com as novas linguagens da Lógica para dar base às afirmações da Ciência. O princípio da verificação sepultava qualquer pretensão da Metafísica em dar valor de verdade aos fenômenos. Não que esta fosse falsa, mas vazia de significado, porque inverificável, dando assim um novo molde à Filosofia da Ciência. Sua principal ligação com o estudo da linguagem se dá no âmbito da redução dos fatos científicos a proposições – somente será considerado científico algo que possa ser sintetizado em uma declaração verificável. Portanto, a primeira análise de uma hipótese é linguística. É possível verificar a assertiva de que “nenhum planeta do universo contém vida além da Terra”? Não. Portanto, é uma afirmação descartada como científica já no plano da linguagem. O Positivismo Lógico foi posteriormente superado pelo princípio da falseabilidade de Karl Popper, mais factível e, no fundo, mais simples.

Já o segundo movimento deu origem ao que hoje é aplicado como sinônimo de Filosofia da Linguagem, a Filosofia Analítica. Além da óbvia alusão à análise da linguagem como elemento constituinte do conhecimento, esse nome também deriva da revista editada em Cambridge e principal órgão da tendência em se substituir a análise do objeto pela linguagem que o representa, Analysis. O principal objetivo das duas universidades britânicas era demonstrar como a Filosofia era análoga à própria linguagem, na medida em que esta É conhecimento. Analisar a linguagem seria a nova Gnosiologia, agora voltada para seu elemento mais evidente, como pode ser visto na Teoria Pictórica da Frase de Ludwig Wittgenstein, no Atomismo Lógico de Bertrand Russell e em outros pensadores, como George E. Moore, Gilbert Ryle e John Wisdom. Eles se aprofundam na estrutura da linguagem para descobrir o modo com o qual ela espelha realidade e pensamento.

Bom... por ora, é isso. A Filosofia da Linguagem não é análise de origem de palavras, isso é Etimologia; não é análise dos usos e desvios da norma, isso é Gramática; não estuda como se formam os idiomas, isso é Filologia, e não se ocupa com aspectos morfológicos ou sociais, isso é Linguística. A tarefa da Filosofia está na análise da linguagem como fenômeno humano que lhe fornece meio para desenvolver sua melhor característica – a razão. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Vamos de Frege, que é basilar na compreensão da moderna interpretação da linguagem, e que é muito válido ainda hoje.

FREGE, F. Gottlob. Sobre o sentido e a referência. São Paulo: Cultrix, 1978.

* Baile de San Vito é uma expressão espanhola para ataque epilético. Crê-se que São Vito Mártir era o protetor contra esse tipo de moléstia. Fonte: Tia Antonia, espanhola.

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