Marcadores

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Pequeno guia das grandes falácias - 4º tomo: O argumentum ad hominem (ataque pessoal)

Olá!

Vocês certamente já assistiram algumas campanhas eleitorais, especialmente os cada vez mais inconclusivos debates, certo? Parece que todos os candidatos colocam as propostas nas pastas e os porretes na mesa. Antes de analisar qualquer tipo de proposta, é preciso torpedeá-la, muitas vezes jogando na discussão questões relativas ao passado do opositor, ao parentesco, a pensamentos colaterais e outros desconfortos. Se a proposta é boa ou não, pouco importa, desde que haja como bater em quem a profere. Essa é a essência do ataque pessoal, ou, mais tucanamente dizendo, argumentum ad hominem (argumento contra o homem).

Atacar a pessoa, e não os argumentos, é uma das formas mais desonestas de falácias

Essa é uma falácia de dispersão das mais conhecidas e utilizadas de todas. Isso quer dizer que o seu objetivo principal (muitas vezes involuntário, de tão habitual) é remover o foco do argumento a ser contestado e voltá-lo contra o interlocutor, obviamente algo que se considera um defeito (ainda que não o seja), como desvio de caráter, desconhecimento, etc.
 
Bom, remexendo nos alfarrábios da minha memória, encontrei bons exemplos destas falácias fora do campo político. Para quem tem mais de 35 anos e gosta de futebol (e viveu em São Paulo na época), certamente deve ter alguma recordação de um programa de televisão exibido nos domingos à noite, chamado “Mesa Redonda”, transmitido pela simpática e nanica TV Gazeta – canal 11. O programa ainda existe, mas tem um formato muito diferente. No final da década de 70, a coisa funcionava assim: uma bancada composta por jornalistas apaixonados, que se portavam como torcedores de boteco, reunidos para debater as rodadas de final de semana – José Italiano, Flávio Iazetti, Dalmo Pessoa, Peirão de Castro, Milton Peruzzi, Geraldo Bretas, Roberto Petri e intrépida trupe, a maior parte já falecida. A palavra de ordem da atração não era fazer uma análise ponderada das jogadas, resultados e perspectivas. Pelo contrário, sua proposta era trazer a visão apaixonada do torcedor, o que, invariavelmente, fazia com que seus componentes deixassem a racionalidade de lado. E, como sói acontecer em situações dessas, a jeripoca piava.

Há um outro programa de debate futebolístico, desta vez da TV Cultura – Canal 2, chamado “Cartão Verde”. O formato aqui é totalmente outro. Há o debate, mas está muito mais focado nas ideias do que na emoção. Os jornalistas são torcedores também, é verdade, mas aqui há mais cuidado na influência da paixão. Não há semelhança com botequim, os temas são discutidos quase que academicamente: as teses são lançadas e discutidas, rebatidas com outras teses e com fontes frequentemente citadas, mesmo que de cabeça.

Querem uma base de comparação? Mesa Redonda está para MMA assim como Cartão Verde está para xadrez. Isso significa que toda discussão da Mesa Redonda é cenário d’ Um Samba no Bixiga*? E que de todo debate do Cartão Verde pode ser extraído um artigo para publicação científica? Não e não. Vamos ver.

Lembro ainda muito claramente de uma certa noite, em que eu ainda era criança, com algo em torno de 11 ou 12 anos. Minha mãe dormia com seu sono habitualmente pesado, enquanto meu pai e eu assistíamos a Mesa Redonda, eu do tapete, ele da cama. O precitado Milton Peruzzi, palmeirense xiita, fez uma afirmação quotidiana: “O Palmeiras faz por merecer benefícios da arbitragem... É muito mais prejudicado do que os outros clubes”. Algo do gênero.

Meu pai, corinthiano exaltado à época e já em repouso da bebedeira habitual, abriu a caixa de ferramentas e extraiu de lá as mais violentas, berrando impropérios que fariam os zumbis descamparem de seus túmulos, se porventura estivéssemos à beira de um cemitério. Minha mãe pulou na cama e quase grudou no teto, tamanho o susto, de lá revidando contra meu pai, sem que, no entanto, se pusesse a defender o fanático jornalista alviverde. A única coisa publicável do discurso do genitor foi, evidentemente, “tinha que ser palmeirense”!!!

Não, pai. Você usou a falácia do ataque pessoal, além de descompassar o ritmo cardíaco da minha mãe (e o meu também, diga-se). Você não analisou racionalmente os motivos da declaração do jornalista em questão. Não é o fato de que se tratava de um palmeirense dos quatro costados que o impediria de falar algo racional e verdadeiro a favor de seu clube de coração. Correto seria construir um contra-argumento – questionar por provas que embasassem a declaração, contrapor o exagero de erros contra clubes menores, evidenciar a anti-esportividade dessa opinião, sei lá. Esse é um erro argumentativo que costuma suscitar ódio entre as partes, porque, em geral, é uma agressividade desmotivada.

No exemplo acima, falei sobre o ataque pessoal baseado em uma circunstância (o fato de que o jornalista era palmeirense). Por isso mesmo, esta modalidade é conhecida como argumentum ad hominem circunstancial. E é bastante usado quando tratamos de ativismos, aquele tipo de coisa: “Você defende a causa indígena porque é descendente de índios”, “Você é a favor do casamento homoafetivo porque é gay”, “Você defende o exame da OAB porque já fez o exame de suficiência” e outras bobagens do gênero. Mas nessa modalidade ainda temos algum aspecto racional. Mesmo que exista o desvio do argumento, não é mentira o fato de que defendamos posições que nos interessem. Isso não tem nada de ilegítimo, mas é um pouco mais compreensível que se ataque uma posição baseada no legítimo direito de pleitear. Entendam bem: o argumento não deixa de ser falacioso, ele se torna mais compreensível, apenas isso. Há outra modalidade, mais pesada, que se aproxima mais do preconceito, como veremos adiante. É o argumentum ad hominem abusivo.

Neste tipo de falácia, o interlocutor dispersa da argumentação com base em qualquer característica irrelevante que possui aquele que proferiu a sentença em debate. O abuso vem do fato de que o adversário é desqualificado por possuir atributos considerados maléficos, e, mais uma vez, não pela validade de seus argumentos. E, neste caso em especial, nem mesmo o interesse ou as circunstâncias podem ser usados para explicar a falácia. Vamos, por exemplo, imaginar o espinhoso assunto “redução da maioridade penal”, tema deste meu post. Algum parlamentar que defenda a redução é colocado em um grupo denominado bancada da bala. O simples fato de que alguém seja favorável a esta redução não o enquadra como defensor das limpezas étnicas e das violações aos direitos humanos como o estereótipo tenta retratar. Disso resulta: são assassinos, torturadores, eugênicos, nazistas, etc. Por outro lado, quem é contrário à redução é colocado na conta de defensores de bandidos, de agentes das gangues armadas, ou mesmo de viver em um mundo de faz-de-conta – e recebem a pecha de cínicos, que deveriam adotar presidiários, ou levar menores infratores para morar em seus bairros, e mesmo de comunistas (!?!?!!?!?!!?!?!?!). Percebam que não são os argumentos que são atacados, mas as pessoas. Chamar alguém de assassino no primeiro caso, ou de defensor da criminalidade no segundo, é mero desvio de argumento. Explique-se o porquê de não se considerar boa ou ruim a ideia, e combata-se a ela, e não quem a lança.

Agora, o outro lado. Por mais que uma pessoa não deva ser atacada por seus argumentos, é fato que as pessoas têm defeitos. Qual a credibilidade que um mentiroso contumaz possui? Isso faz com que a investigação de seus argumentos seja elevada à enésima potência. Isso tem a ver com confiabilidade, e uma fonte fidedigna sempre é um bom começo, ainda que não seja garantia de nada. Mas, mesmo assim, é preciso ter cuidado, já que mesmo o mais doentio mitômano pode, de vez em quando, soltar uma verdade. Se observarmos apenas o interlocutor, e não o argumento, corremos o risco de desperdiçar boas ideias.

Por fim, quero fazer uma pergunta-desafio, já que nunca consegui chegar a uma conclusão definitiva sobre a questão: os atestados de antecedentes são aplicações da falácia ad hominem? Até que ponto um documento comprova que um indivíduo cometerá ou não novos crimes? Não será este instrumento um dificultador da reintegração de pessoas no exercício de sua cidadania?

Por outro lado, não será o atestado de antecedentes uma mera comprovação da ineficiência do nosso sistema coercitivo, em que ainda é preciso dar um mínimo de segurança à sociedade que o exige, já que não existe nenhum tipo de garantia de recuperação do indivíduo? A exemplo do que ocorre com as funções judiciárias, que exigem fé pública, não haveria a necessidade de uma “fé particular” que fosse além dos contratos, e que o tal atestado representa, ao demonstrar uma ineficiência individual no cumprimento do contrato maior, que é a lei?

Coisas para discutir.

Recomendação de leitura:

Muita gente critica o Jorge Amado. Eu gosto. Acho sua escrita bastante fluida, fácil de ler, ainda que eu deva reconhecer que algumas de suas obras de costumes sejam chatíssimas (desisti de Teresa Batista cansada de guerra bem no meio do caminho – tava chato demais). Mas, como um todo, é leitura agradável. No livro que recomendo abaixo, o Capitão Vasco Moscoso de Aragão é perseguido insistentemente por um fiscal aposentado que desconfia de seus decantados atributos e quer desmerecê-lo, mas os fatos conspiram em seu apoio. Bons exemplos de argumentos ad homimem.

AMADO, Jorge. Os velhos marinheiros ou a completa verdade sobre as discutidas aventuras do comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

* Adendo

Um Samba No Bexiga

Adoniran Barbosa

Domingo nós fumo num samba no bexiga
Na rua Major, na casa do Nicola
À mezza notte o'clock
Saiu uma baita duma briga
Era só pizza que avuava junto com as brachola


Nóis era estranho no lugar
E não quisemo se meter
Não fumos lá pra brigar, nós fumo lá pra comer
Na hora "h" se enfiemo de baixo da mesa
Fiquemo ali, que beleza vendo o Nicola brigar

Dali a pouco escutemo a patrulha chegá
E o sargento oliveira falá

Num tem importância
Foi chamada as ambulância
Carma pessoal,
A situação aqui está muito cínica
Os mais pior vai pras “crínica”



Obs: A “rua Major” é uma referência à rua Major Diogo, reduto típico dos boêmios frequentadores do “Bixiga”, parte baixa do tradicional bairro da Bela Vista, em antagonismo com o Morro dos Ingleses, mais próximo da Avenida Paulista, a porção “nobre” do mesmo bairro. Aliás, e aproveitando o ensejo, é um bairro interessantíssimo, porque tem uma das divisões mais claras da cidade entre o requinte e a pobreza que convivem não tão bem quanto quereríamos. Vale visitar (e comer até cair).

Agradeço à Jazz pela sofrida foto que ilustra este texto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário