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sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (17 – Filosofia Ambiental)

Olá!


Era uma vez um tempo em que os homens não se preocupavam muito com o ambiente que os rodeava. Havia uma profusão tão grande de meios naturais que não parecia haver riscos em se derrubar uma boa parte das florestas, extinguir uma boa parte das espécies ou transformar uma boa parte deste ambiente em meio urbano, mais apropriado às comodidades típicas do lento progresso tecnológico. É bem verdade que, aqui e ali, fosse notado um aumento das tosses, a troca da poeira pela fuligem, um acinzentamento do horizonte, o sumiço de bichos tão comuns em outras eras, mas a vinculação entre os fenômenos era toldada pelo conforto e pela acumulação. Acontece que os tempos passaram, e a falta de cuidado empilhada por milênios de relações conturbadas vai cobrando seu preço, representada por temperaturas elevadas constantes e uma umidade tão baixa que enchem nossos narizes de escaras. Será que não perdemos nossa noção de participação do meio natural? Será que nosso distanciamento com o que éramos originalmente não nos leva a uma situação pior daquela que tínhamos anteriormente? Será que temos riscos reais de pôr tudo a perder? Será que ainda há algo a fazer? Essas são as perguntas que fazem brotar um campo recente para a coruja de Minerva plainar, a Filosofia Ambiental.


Pelo fato de ter se destacado o mote do ambiente das demais áreas de investigação filosófica, dá a impressão que a Filosofia nunca se preocupou com questões ambientais. Não é verdade, até mesmo porque o primeiríssimo tema abordado pelos filósofos ocidentais foi justamente a questão do cosmos, qual a origem e o fundamento último das coisas, chegando à arché, já tão explorado neste espaço. E é claro que não dá para falar do universo sem falar da natureza que nos rodeia. Basta que se veja quantos tratados denominados De Natura (Sobre a Natureza) possuímos na Filosofia pré-socrática. Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito, Parmênides, Melisso, Empédocles, Anaxágoras e outros compuseram textos assim denominados e que se preocupavam em tratar da questão. Ora, direis, quando esses filósofos falam de “natureza”, não é sobre arvorezinhas e bichinhos, mas sobre aquilo que é inerente às coisas, o que é a natureza das coisas, seu ecochato. Eu sei disso, mas hás de concordar que o mundo em seu estado natural é a melhor forma que temos de descrevê-lo e entendê-lo pelo que ele é. Não vamos fazer explorações botânicas ou paleontológicas no meio da Praça da Sé, mas em meio mais rústico, o mundo como seria se não houvesse a interferência humana. Sendo assim, investigar a natureza das coisas exige um tal nível de regresso às origens que somente a podemos encontrar no mundo preservado, e isso nos faz ter um elo com essa Filosofia mais antiga. Ademais, estes filósofos não faziam a distinção entre o homem e a natureza que passou a ocorrer a partir dos sofistas e seu antropocentrismo, radicalizado a partir da trinca clássica Sócrates-Platão-Aristóteles. O homem era tão parte do mundo quanto a arvorezinha e o bichinho, ou seja, não era apartado do meio natural. E mais ainda, uma parte da metafísica da arché era baseada na ideia de elementos naturais como basilares na composição do cosmos: Tales com sua água, Xenófanes com sua Terra, Anaxímenes com seu ar e Heráclito com seu fogo, além da mistura de todos eles proposta por Empédocles. Portanto, a Filosofia não nasce descolada do meio ambiente, apenas acontecia que a relação entre homem e natureza possuía linhas de divisão mais borradas. A questão se torna mais importante somente após a Revolução Industrial, quando a interferência humana se torna muito mais significativa. E influente. E perigosa.

É óbvio que o salto entre a filosofia da physis e as revoluções técnicas não foi tão abrupto. Do intimismo do homem como parte da natureza dos gregos antigos, passamos para a visão do homem como objeto de estudo, que possui um tempo distinto do meio natural e uma possibilidade de conhecer que não se encontra em qualquer outro ser. Platão dá a nós uma visão desconfiada com relação aos nossos sentidos: tudo o que podemos apreender dos objetos são suas aparências – o verdadeiro conhecimento está no intelecto. Dessa forma, a nossa interação com o ambiente que nos cerca, incluindo o natural, é passível de erro. Esse é um nascedouro, quase embrionário, de um afastamento cada vez mais crescente com a ideia do homem natural.

A coisa não muda de figura no período teocêntrico da Idade Média. Apesar de se ter em mente que Deus cria tudo o que existe, incluindo homem e natureza, este primeiro é um ser especial, criado para ser o herdeiro das benesses divinas. De acordo com a escrita bíblica, Deus dá ao homem a primazia sobre todo o restante do universo, ao fazer dele uma imagem de si próprio. Desta forma, há uma espécie de hierarquia relativa ao domínio sobre o cosmos. No alto, o Deus criador de todas as coisas. Em seguida, o homem, sua imagem e semelhança. Por fim, todo o restante da natureza. Apesar de reconhecer o homem como proveniente do mesmo Deus, dá-se a ele um estatuto de dominador, que pode decidir seu uso e seu destino (“E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra. E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento. E a todo o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento; e assim foi” – Gn 1:28-30). Aliás, se considerarmos que é da natureza que o homem extrai sua perdição, ainda que simbolicamente, perceberemos que a relação com o meio natural possui sua dose de conflitos. Afinal, é pela influência da serpente e do fruto da árvore no centro do jardim de Éden que se concretiza o pecado da desobediência e da vontade de autossuficiência, considerados mortais na exegese judaico-cristã. Não parece que estas predisposições influenciem diretamente nos problemas ambientais contemporâneos, mas percebam como vai se formando um cerne que opõe ser humano e sua ambiência.

Nós já sabemos como termina a Idade Média. Paulatinamente, a Ciência que a tudo observa empiricamente vai apresentando mais resultados e melhores explicações acerca da realidade do que faziam os tratados teológicos. Cada vez mais desvinculados de aspectos mágicos, o homem mais uma vez se volta para o mundo que lhe cerca. A pesquisa substitui o vaticínio na predição dos fenômenos, e é constatada a maior eficácia de fármacos em relação a rezas e mandingas, dentre outras miudezas. Evidentemente, esse olhar que novamente se vira para a natureza vem com componentes diferentes daquele dos gregos da velha guarda. O que temos agora é que pensamos não mais como conviver com o meio natural, mas como usufruir dele e essa diferença é fundamental. O advento do Capitalismo reforça o aspecto de utilidade dos recursos, especialmente sob o ponto de vista de produção de riquezas. Não há mais um valor intrínseco em um vasto território arborizado, se em seu lugar puderem existir pastos ou campos cultivados. O braço direito da expansão comercial é a tecnologia. Cada vez mais, as técnicas agrícolas permitem alcançar áreas impensáveis para a cultura, estendendo os limites antes refreados pelo alcance dos braços ao potencial produtivo da máquina. A natureza torna-se um óbice, e não uma aliada.

Tudo isso nasce de uma perspectiva mais mecanicista e menos holística, criada a partir do momento em que o mundo é desmembrado em suas pequenas engrenagens motoras. Há uma certa perda na relação de causalidade: não é imediatamente perceptível que o despejo feito no rio sujará a mesma água que será utilizada para irrigar as plantações ou dar de beber ao gado. Ou melhor raciocinando: primitivamente, há tanta disponibilidade de recursos que parece que os mesmos nunca faltarão. Notem como esse pano de fundo intelectivo agrava ainda mais a separação entre homem e meio. No antropocentrismo, tínhamos uma distinção entre homem e animal; no teocentrismo, entre homem possuidor de espírito e mundo bruto. Agora, temos um completo desenlace entre homem e o restante do mundo. É levada ao paroxismo a questão do domínio da humanidade sobre o território que habita, e este é cada vez mais amplo, pela técnica que se desenvolve mais e mais. Poucos filósofos ainda mantêm algum tipo de pensamento totalizante, como Baruch de Espinoza, mas mesmo ele é ultrapassado com a aproximação de eventos como a Revolução Industrial. Vejamos: Espinoza entendia que o universo era composto por uma e apenas uma natureza, sendo que nosso holandês era, por isso, enquadrado como um monista. Mas, em geral, o monismo vem de braço dado com teses materialistas, que acreditam que nada há além daquilo que os sentidos estão aptos a captar, e não há uma instância metafísica que ultrapasse nosso entendimento. Não é esse o pensamento espinoziano. Para ele, só há uma substância de onde emana todas as demais: Deus. Não havendo outra fonte de onde se origine o cosmos, Deus não só está presente em tudo; ele É tudo. Ao contrário do que queriam as religiões em geral, Deus é imanência pura: está em toda parte e é toda parte. Se por um lado esse panteísmo exclui o aspecto transcendental divino, por outro dá sacralidade a tudo o que existe. Mais que isso, dá unidade. Homem e natureza, neste contexto, são uma só coisa. Mas, como dizia a crítica da época, o panteísmo de Espinoza era uma forma criativa de ateísmo, e ateus nunca foram muito bem vistos. Sendo assim, um crescente Capitalismo que encontrou a escusa weberiana da obtenção do acúmulo fez muito sucesso, pelo motivos óbvios.

É só do meio para o final do século XX que os recursos naturais dão sinais claros de esgotamento, e começamos a sentir falta de uma doutrina integralizante, que conseguisse medir consequências antes da execução das causas. Às crises nos preços do petróleo se somaram os primeiros sinais de aquecimentos global e outros prenúncios de potenciais catástrofes. É fácil perceber as alterações no ambiente com exercícios simples. Eu tenho quase 50 anos, o que, na história da humanidade, não passa de um átomo. Nasci e sempre vivi na cidade de São Paulo. Na minha infância, havia um pacote de pequenos bichos que são difíceis de ver hoje em dia. Pirilampos eram muito comuns. Piolhos de cobra eram abundantes em época de chuva. Havia gafanhotos e grilos audíveis em qualquer noite e em qualquer lugar. Havia também os temíveis chupa-sangue, uma espécie de besourinho vermelho que os mais velhos faziam questão de nos tocar terror. Hoje em dia, todos esses insetos são raros de se ver. Só tem baratas e baratas e mais baratas, que dominarão o mundo logo mais, quando nenhuma outra espécie puder resistir às condições climáticas do planetinha. Ah, e há pernilongos, muitos, de todas as formas e cores. Esse desnível, perceptível em nossas próprias vidas, podem ou não ser causados pela humanidade, mas são empiricamente detectáveis, não há dúvida. Perguntem a seus avós porque o epíteto de São Paulo é “Terra da Garoa”. Hoje ele não faz mais sentido, e por quê? Por alterações climáticas, simplesmente. A névoa matutina é rara, e dias com temperatura mais baixa que dez graus são contáveis nos dedos de uma só mão nos últimos vinte anos. E a discussão descamba improdutivamente para o campo da antropogênese das mudanças climáticas. Que importa se o aquecimento é causado ou não pelo homem? O que precisamos discutir é O QUE podemos fazer para minimizar o problema, porque é ele que vai nos matar.

A Filosofia Ambiental surge, como se pode ver, com um forte propósito ético. Parece muito semelhante à Ecologia, mas difere desta porque uma é Ciência, e a outra é especulação, como toda boa disciplina filosófica. A Ecologia estuda as relações do meio ambiente com os seres que nele habitam (ecologia significa Estudo da Casa em grego), ou seja, não há viés ético obrigatório no seu objeto, mas é a partir dela que passamos a fazer a investigação e a levantar hipóteses, e essa é a conexão que há entre ambas. A Filosofia Ambiental, por seu turno, tem na sua conta a questão dos valores. Um exemplo é a discussão do especismo, uma espécie de racismo com relação a outras espécies, que tratei neste e neste textos, já bem antiguinhos. A ideia base é racionalizar a relação entre homem e ambiente, levantando questões que antes eram mal pensadas. Já tratei do tema por estas plagas, ao discorrer sobre a ecologia profunda de Arne Naess, o utilitarismo ecológico de Peter Singer e a hipótese de Gaia de James Lovelock. Em todos eles, transparecem conceitos que incomodam. Uma Filosofia que sirva para dar base a uma nova visão que tenhamos sobre o mundo obrigatoriamente precisa nos mover. Isso dá uma certa cara ideológica à defesa do meio ambiente, o que é ruim. Ecologia e ética ambiental não deveriam fazer parte somente da pauta da esquerda (para recordar dos cuidados a tomar com os estereótipos e pacotes ideológicos, leiam mais aqui), mas o fato é que o tema, por ser naturalmente político, cai na mesma armadilha da polarização, tão frequentemente disponível aos nossos incautos pés nos dias de hoje. Dizer, como dizem os defensores do modelo liberal que, por exemplo, a cobertura vegetal se restabelecerá em pouco tempo se restituídas suas condições originais oculta duas questões mais delicadas – quando haverá alguma vontade de restabelecer um meio já devastado e o que existirá para fazer essa recomposição, já que não há o milagre da reposição das espécies extintas.

No fundo, no fundo, era inevitável que a Filosofia se enveredasse por esse campo do modo como o fez e que as reações viessem. Temas como poluição, uso de defensivos, esgotamento do solo, expansão agrícola, ameaças de guerra, poderio econômico na administração da terra, todos eles dizem respeito a todos nós, ainda que estejamos longe das arvorezinhas e dos bichinhos, e isso PRECISA nos interessar. Afetam nossa vida, e isso é o motor do pensamento problematizador. Mas afetam também os nossos ganhos, o modo como pautamos nossa evolução histórica, e tirar o rei do trono é sempre um processo doloroso. Bons ventos a todos, enquanto houver vento.

Recomendação de leitura:

Os acordos internacionais prometem muito e entregam pouco. A crise ambiental afeta também o mecanismo social. Ao colapso ecológico seguirá, inexoravelmente, o colapso financeiro e de todo a humanidade como conhecemos. Este é o assunto tratado pelo professor Luiz Marques, da Unicamp, em um livro repleto de embasamento, para que ninguém diga que são bobagens. Não deixem de ler.

MARQUES, Luiz. Capitalismo e Colapso Ambiental. Campinas: Unicamp, 2015

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