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terça-feira, 5 de abril de 2016

Pequeno guia das grandes falácias - 22º tomo: a composição

Olá!

Vocês provavelmente já ouviram falar de uma banda chamada Genesis. Também devem conhecer o Yes e o Asia. E, provavelmente, o Marillion, com seus mega-sucessos Kayleigh e Beautiful. Sendo assim, obviamente conheceram o GTR... Não?!
O GTR foi um superbanda da década de 80, formada por músicos absolutamente geniais, como o guitarrista Steve Hackett, do tempo em que o Genesis era povoado com gente do naipe de Peter Gabriel, Phil Collins, Mike Rutherford e Tony Banks, que lançou obras-primas como Foxtrot, Nursery Crime e Selling England by the Pound, todos álbuns para levar à ilha deserta. A outra guitarra era defendida por Steve Howe, dono das cordas do Yes, banda na qual tinha como companheiros os “fraquíssimos” Jon Anderson, Rick Wakeman, Chris Squire e Bill Brufford, além de ter fundado o Asia, que fez muito sucesso em comerciais do cigarro Hollywood (o sucesso – só os velhos entenderão), formada por Geoff Downes (que, diga-se de passagem, produziu o único álbum da banda), John Wetton e o mágico Carl Palmer. Os vocais eram capitaneados por Max Bacon, um vocalista interessante, de voz aguda e levemente abafada, a la Sting ou Steve Perry, que já tinha desfilado pelo Moby Dick e Nightwing. A cozinha ficava por conta de Phil Spalding no contrabaixo, que já havia tocado com Mike Oldfield; e Jonathan Mover, baterista da melhor fase do precitado Marillion. O nome GTR veio do fato de que o grupo pretendia ser uma banda de rock progressivo sem os característicos teclados, sendo substituídos, quando necessário, pelos sintetizadores de guitarra de ambos os Steves. Nas mesas de mixagem, a entrada para guitarras é descrita como GTR.
Com a ousadia da proposta e com um escrete desses não tinha como uma banda dar errado... mas não. O resultado geral é muito frustrante. Observados em seus comboios de origem, esses músicos eram muito marcados pela alta qualidade individual de sua arte. Basta ouvir “After the ordeal” ou “Horizons”, do Hackett ou “Mood for a day”, do Howe, para entender do que eu estou falando. Ocorre que, como aparentemente em tudo na vida, era chegado o momento de se ganhar dinheiro em detrimento da originalidade.  O resultado foi um pop insosso, esquecível em cinco minutos, embora muito bem tocado.
Ao pop o que é do pop. Não estou aqui criticando o estilo. Madonna e Cindy Lauper sabiam produzi-lo muito bem, e além de lhes render alguns poucos caminhões de dinheiros ianques, devo admitir, despido de preconceitos, que era extremamente bem feito. Além disso, eram artistas predominantemente performáticas, fazendo shows que extrapolavam em muito a mera execução musical. Não eram concertos, mas verdadeiros espetáculos multimídia. Evidentemente a pegada dos componentes do GTR não era essa, mas, de uma forma ou de outra, o foco deles deveria sempre ficar mais ligado à música como arte em si. Talvez, no final das contas, o disco autointitulado lançado em 86 não seja propriamente ruim, apenas não tenha correspondido às expectativas geradas pelos nomes envolvidos.
O resultado geral foi o naufrágio. Era um som sofisticado demais para os fãs do mainstream e exageradamente comercial para os admiradores de rock progressivo. O fato de ser formado por grandes músicos não fez do GTR uma grande banda. Motivos outros que não o talento individual de cada um dos membros fizeram o conjunto não dar liga.
Esse é um engano bastante comum, que infelizmente pode ser aplicado às nossas argumentações. Quando em nosso discurso fazemos supor que a associação de boas partes redundará obrigatoriamente em um bom todo, estamos praticando a falácia da Composição.

Belas partes não garantem um belo conjunto

Esta falácia é tipificada como um erro categorial. Ocorre quando há uma confusão semântica entre um elemento particular e o todo que o mesmo compõe (ou vice-versa), porque não são da mesma categoria, apesar de parecer. Por exemplo, um cachorro é um elemento particular da categoria dos mamíferos, mas ele mesmo não é a categoria dos mamíferos. Inferir coisas particulares da categoria “cachorro” para a categoria “mamífero” não é correto. No caso particular do erro categorial chamado de Composição, há uma tentativa de transferir para uma categoria totalizadora as propriedades e características de uma categoria particular, o que nem sempre é possível. Quando se força a fazê-lo, pode-se cair no tal erro.
É muito fácil entender o furo de um argumento de composição. Há muitas pessoas lindas. E elas são lindas porque seu conjunto é harmônico, e não seus órgãos isoladamente. Medidas e proporções são coisas sutis, em que é difícil fazer um prejulgamento sem verificar qual o resultado final. Se eu pegar os olhos de uma, a boca da outra, o nariz de mais uma, sempre selecionando o mais belo, poderemos ter um resultado bastante satisfatório ou algo semelhante a uma máscara feia; nada pode nos fazer prever sem observar a experiência final.
O inverso também é verdadeiro. Partes ruins podem gerar um bom conjunto final, mesmo que isso seja inesperado. Sabem aqueles times montados apenas com jogadores medianos, que não obtiveram sucesso em outras equipes? A ideia inicial é que esse time, no máximo, vai brigar para não ser rebaixado. Mas isso não é obrigatório. Um bom esquema tático e uma preparação física adequada pode fazer com que alguns jogadores evidenciem talentos antes inexplorados, e o time desande a fazer seus golzinhos. Em resumo, partes ruins não constituem obrigatoriamente um todo ruim.
Esta é uma falácia especialmente sutil, porque a composição não-falaciosa é muito frequente. É o princípio geral da Seleção Brasileira, para mantermos a alegoria futebolística: chamamos os melhores em seus times para constituir a melhor seleção. De fato, é de se esperar que a junção de bons componentes resulte em um bom conjunto final. Também é altamente provável que um bom pedreiro, com bons materiais ao seu dispor, com um projeto claro e bem desenhado, em um terreno sólido e bem aplainado vá fazer uma boa casa. A falácia acontece quando damos o estatuto de verdade ao sonho da boa casa sem que a vejamos construída. Ou, melhor dizendo, que o mero fato de existirem boas partes já é argumento suficiente para embasar a conclusão de que o todo será bom também.
A falácia da Composição, vista assim, parece ingênua, mas sua inocência pode jazer profunda nas raízes do preconceito, portanto devemos ser cuidadosos. Isso porque uma das composições possíveis é a de grupos sociais, e nem sempre os elementos de avaliação das partes que constituem o todo são positivos. Imaginemos a seguinte situação: em nossa sociedade, muitos mecanismos avaliativos são utilizados, em modelos muito semelhantes entre si – concursos públicos, vestibulares, exames escritos e così via. Com a baixa qualidade do ensino público, é de se compreender que os usuários deste sistema apresentem maiores dificuldades em enfrentar tais modelos de sabatina, baseados em métodos de conhecimento enciclopédico. As estatísticas podem mostrar, em um número hipotético, que menos de 20% dos aprovados nestas provas e concursos são oriundos da escola pública. Ou seja, um grupo composto por estes indivíduos, falaciosamente, pode ser considerado de incapazes. Um grupo inteiro recebe este estatuto, o que é duplamente injusto, porque há gente que consegue atingir o objetivo da avaliação mesmo com a limitação – a composição é generalizante neste sentido – e o atributo da incapacidade, no mínimo, tem causas que são externas aos membros do grupo. Portanto, estas pessoas são incapazes para que? Tornaram-se incapazes por quê? São realmente todos incapazes? Há hipótese de que possam se tornar capazes? Que método mede sua capacidade? São corretos? São os melhores possíveis? Não estarão enviesados ideologicamente? As perguntas são lançadas no ar, mas a pecha de um grupo em que o todo é tomado pela parte fica.
Nem sempre há erro nisso, no entanto. Para citar um exemplo: isoladamente, as pessoas do Japão têm uma renda maior que os vietnamitas, e, na composição, temos uma renda geral da população como um todo maior também. A diferença está no foco da análise, que deve levar em consideração fatores objetivos e mensuráveis, bem como estabelecer comparações entre renda per capita e total populacional.
Outra coisa: o todo é diferente das partes, já falamos. O fascismo, como sistema, resultou em regimes sanguinários, espírito belicista, liberdade zero e fracasso político, mas seu símbolo, o feixe de varas, carrega um significado muito bem trabalhado, e que contradiz corretamente a falácia da Composição.

O famoso faccio

Individualmente, cada vara é muito frágil. Basta vergá-la com as mãos para produzir sua ruptura. Se cada vara em um feixe é quebradiça, é de se supor que a junção das mesmas também seja, no pensamento simplista da falácia composicionista. Mas as varas unidas em um liame, colocadas lado a lado, faz com que a força aplicada ao conjunto seja distribuída com menor intensidade em cada uma delas individualmente, o que torna ao feixe ser possível suportar a aplicação. O todo do feixe é muito mais resistente que a individualidade das varas.
Só para deixar bem claro, porque nessas coisas de política é muito fácil distorcerem sua visão e suas palavras: NÃO sou fascista, NÃO gosto do fascismo, acho um regime pouco aplicável, principalmente por seu caráter contrário à liberdade e à igualdade e acho que ele tem sido usado como denominação para abarcar tendências pouco louváveis, como o racismo e a repressão das minorias. Mas para mim a elaboração do seu símbolo, é, sim, muito bela. Ainda que me provoque engulhos pelo que significa.
Recomendação de audição:
Como eu mesmo disse no texto, o álbum do GTR não é propriamente ruim, apenas nos foi entregue menos do que seria possível pela mão desses músicos incríveis. Proponho que o mesmo seja ouvido e, se possível, comparado com seus trabalhos anteriores. Vocês verão que é música que não fará ninguém trocar de estação, mas que também não tem parâmetro de equiparação com outras de suas obras.
GTR. GTR. Produzido por Geoff Downes. Londres: Arista, 1986. 44:43

Agradeço à Ná pela foto principal e pelo shape do rosto, à Jazz pela boca, à Bia pelas sobrancelhas, à Deb por um olho, à Mimi por outro e à Rê pelo nariz. Todas vocês são lindas, mas a mascarazinha só comprova o que está escrito neste texto.

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