Vocês provavelmente já ouviram falar de uma banda chamada
Genesis. Também devem conhecer o Yes e o Asia. E, provavelmente, o Marillion,
com seus mega-sucessos Kayleigh e Beautiful. Sendo assim, obviamente
conheceram o GTR... Não?!
O GTR foi um superbanda da década de 80, formada por músicos
absolutamente geniais, como o guitarrista Steve Hackett, do tempo em que o
Genesis era povoado com gente do naipe de Peter Gabriel, Phil Collins, Mike
Rutherford e Tony Banks, que lançou obras-primas como Foxtrot, Nursery Crime e Selling England by the Pound, todos
álbuns para levar à ilha deserta. A outra guitarra era defendida por Steve
Howe, dono das cordas do Yes, banda na qual tinha como companheiros os
“fraquíssimos” Jon Anderson, Rick Wakeman, Chris Squire e Bill Brufford, além
de ter fundado o Asia, que fez muito sucesso em comerciais do cigarro Hollywood
(o sucesso – só os velhos entenderão), formada por Geoff Downes (que, diga-se
de passagem, produziu o único álbum da banda), John Wetton e o mágico Carl Palmer.
Os vocais eram capitaneados por Max Bacon, um vocalista interessante, de voz
aguda e levemente abafada, a la Sting ou Steve Perry, que já tinha desfilado
pelo Moby Dick e Nightwing. A cozinha ficava por conta de Phil Spalding no contrabaixo,
que já havia tocado com Mike Oldfield; e Jonathan Mover, baterista da melhor
fase do precitado Marillion. O nome GTR veio do fato de que o grupo pretendia
ser uma banda de rock progressivo sem os característicos teclados, sendo
substituídos, quando necessário, pelos sintetizadores de guitarra de ambos os
Steves. Nas mesas de mixagem, a entrada para guitarras é descrita como GTR.
Com a ousadia da proposta e com um escrete desses não tinha
como uma banda dar errado... mas não. O resultado geral é muito frustrante.
Observados em seus comboios de origem, esses músicos eram muito marcados pela
alta qualidade individual de sua arte. Basta ouvir “After the ordeal” ou
“Horizons”, do Hackett ou “Mood for a day”, do Howe, para entender do que eu
estou falando. Ocorre que, como aparentemente em tudo na vida, era chegado o
momento de se ganhar dinheiro em detrimento da originalidade. O resultado foi um pop insosso, esquecível em
cinco minutos, embora muito bem tocado.
Ao pop o que é do pop. Não estou aqui criticando o estilo.
Madonna e Cindy Lauper sabiam produzi-lo muito bem, e além de lhes render
alguns poucos caminhões de dinheiros ianques, devo admitir, despido de
preconceitos, que era extremamente bem feito. Além disso, eram artistas predominantemente
performáticas, fazendo shows que extrapolavam em muito a mera execução musical.
Não eram concertos, mas verdadeiros espetáculos multimídia. Evidentemente a
pegada dos componentes do GTR não era essa, mas, de uma forma ou de outra, o
foco deles deveria sempre ficar mais ligado à música como arte em si. Talvez,
no final das contas, o disco autointitulado lançado em 86 não seja propriamente
ruim, apenas não tenha correspondido às expectativas geradas pelos nomes
envolvidos.
O resultado geral foi o naufrágio. Era um som sofisticado
demais para os fãs do mainstream e exageradamente
comercial para os admiradores de rock progressivo. O fato de ser formado por
grandes músicos não fez do GTR uma grande banda. Motivos outros que não o
talento individual de cada um dos membros fizeram o conjunto não dar liga.
Esse é um engano bastante comum, que infelizmente pode ser
aplicado às nossas argumentações. Quando em nosso discurso fazemos supor que a
associação de boas partes redundará obrigatoriamente em um bom todo, estamos
praticando a falácia da Composição.
Belas partes não garantem um belo conjunto |
Esta falácia é tipificada como um erro categorial. Ocorre quando há uma confusão semântica entre um
elemento particular e o todo que o mesmo compõe (ou vice-versa), porque não são
da mesma categoria, apesar de parecer. Por exemplo, um cachorro é um elemento
particular da categoria dos mamíferos, mas ele mesmo não é a categoria dos
mamíferos. Inferir coisas particulares da categoria “cachorro” para a categoria
“mamífero” não é correto. No caso particular do erro categorial chamado de
Composição, há uma tentativa de transferir para uma categoria totalizadora as
propriedades e características de uma categoria particular, o que nem sempre é
possível. Quando se força a fazê-lo, pode-se cair no tal erro.
É muito fácil entender o furo de um argumento de composição.
Há muitas pessoas lindas. E elas são lindas porque seu conjunto é harmônico, e
não seus órgãos isoladamente. Medidas e proporções são coisas sutis, em que é
difícil fazer um prejulgamento sem verificar qual o resultado final. Se eu
pegar os olhos de uma, a boca da outra, o nariz de mais uma, sempre
selecionando o mais belo, poderemos ter um resultado bastante satisfatório ou
algo semelhante a uma máscara feia; nada pode nos fazer prever sem observar a
experiência final.
O inverso também é verdadeiro. Partes ruins podem gerar um
bom conjunto final, mesmo que isso seja inesperado. Sabem aqueles times
montados apenas com jogadores medianos, que não obtiveram sucesso em outras
equipes? A ideia inicial é que esse time, no máximo, vai brigar para não ser
rebaixado. Mas isso não é obrigatório. Um bom esquema tático e uma preparação física
adequada pode fazer com que alguns jogadores evidenciem talentos antes
inexplorados, e o time desande a fazer seus golzinhos. Em resumo, partes ruins
não constituem obrigatoriamente um todo ruim.
Esta é uma falácia especialmente sutil, porque a composição
não-falaciosa é muito frequente. É o princípio geral da Seleção Brasileira,
para mantermos a alegoria futebolística: chamamos os melhores em seus times
para constituir a melhor seleção. De fato, é de se esperar que a junção de bons
componentes resulte em um bom conjunto final. Também é altamente provável que
um bom pedreiro, com bons materiais ao seu dispor, com um projeto claro e bem
desenhado, em um terreno sólido e bem aplainado vá fazer uma boa casa. A
falácia acontece quando damos o estatuto de verdade ao sonho da boa casa sem
que a vejamos construída. Ou, melhor dizendo, que o mero fato de existirem boas
partes já é argumento suficiente para embasar a conclusão de que o todo será
bom também.
A falácia da Composição, vista assim, parece ingênua, mas
sua inocência pode jazer profunda nas raízes do preconceito, portanto devemos
ser cuidadosos. Isso porque uma das composições possíveis é a de grupos
sociais, e nem sempre os elementos de avaliação das partes que constituem o
todo são positivos. Imaginemos a seguinte situação: em nossa sociedade, muitos
mecanismos avaliativos são utilizados, em modelos muito semelhantes entre si –
concursos públicos, vestibulares, exames escritos e così via. Com a baixa qualidade do ensino público, é de se
compreender que os usuários deste sistema apresentem maiores dificuldades em
enfrentar tais modelos de sabatina, baseados em métodos de conhecimento
enciclopédico. As estatísticas podem mostrar, em um número hipotético, que
menos de 20% dos aprovados nestas provas e concursos são oriundos da escola
pública. Ou seja, um grupo composto por estes indivíduos, falaciosamente, pode
ser considerado de incapazes. Um grupo inteiro recebe este estatuto, o que é
duplamente injusto, porque há gente que consegue atingir o objetivo da avaliação
mesmo com a limitação – a composição é generalizante neste sentido – e o
atributo da incapacidade, no mínimo, tem causas que são externas aos membros do
grupo. Portanto, estas pessoas são incapazes para que? Tornaram-se incapazes por
quê? São realmente todos incapazes? Há hipótese de que possam se tornar
capazes? Que método mede sua capacidade? São corretos? São os melhores
possíveis? Não estarão enviesados ideologicamente? As perguntas são lançadas no
ar, mas a pecha de um grupo em que o todo é tomado pela parte fica.
Nem sempre há erro nisso, no entanto. Para citar um exemplo:
isoladamente, as pessoas do Japão têm uma renda maior que os vietnamitas, e, na
composição, temos uma renda geral da população como um todo maior também. A
diferença está no foco da análise, que deve levar em consideração fatores
objetivos e mensuráveis, bem como estabelecer comparações entre renda per
capita e total populacional.
Outra coisa: o todo é diferente das partes, já falamos. O
fascismo, como sistema, resultou em regimes sanguinários, espírito belicista,
liberdade zero e fracasso político, mas seu símbolo, o feixe de varas, carrega
um significado muito bem trabalhado, e que contradiz corretamente a falácia da
Composição.
O famoso faccio |
Individualmente, cada vara é muito frágil. Basta vergá-la
com as mãos para produzir sua ruptura. Se cada vara em um feixe é quebradiça, é
de se supor que a junção das mesmas também seja, no pensamento simplista da
falácia composicionista. Mas as varas unidas em um liame, colocadas lado a
lado, faz com que a força aplicada ao conjunto seja distribuída com menor
intensidade em cada uma delas individualmente, o que torna ao feixe ser
possível suportar a aplicação. O todo do feixe é muito mais resistente que a
individualidade das varas.
Só para deixar bem claro, porque nessas coisas de política é
muito fácil distorcerem sua visão e suas palavras: NÃO sou fascista, NÃO gosto
do fascismo, acho um regime pouco aplicável, principalmente por seu caráter
contrário à liberdade e à igualdade e acho que ele tem sido usado como
denominação para abarcar tendências pouco louváveis, como o racismo e a
repressão das minorias. Mas para mim a elaboração do seu símbolo, é, sim, muito
bela. Ainda que me provoque engulhos pelo que significa.
Recomendação de audição:
Como eu mesmo disse no texto, o álbum do GTR não é
propriamente ruim, apenas nos foi entregue menos do que seria possível pela mão
desses músicos incríveis. Proponho que o mesmo seja ouvido e, se possível,
comparado com seus trabalhos anteriores. Vocês verão que é música que não fará
ninguém trocar de estação, mas que também não tem parâmetro de equiparação com
outras de suas obras.
GTR. GTR.
Produzido por Geoff Downes. Londres: Arista, 1986. 44:43
Agradeço à Ná pela foto principal e pelo shape do rosto, à
Jazz pela boca, à Bia pelas sobrancelhas, à Deb por um olho, à Mimi por outro e
à Rê pelo nariz. Todas vocês são lindas, mas a mascarazinha só comprova o que
está escrito neste texto.
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