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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Solidão e sentimentos - o que pertence à ideologia e o que é inerente à espécie (ou a solidão como doença da linguagem)

Olá!

Domingo de virada do horário de verão é, pela natureza do que faço para ganhar meu pão, dia de trabalho. Por que? Bem, tenho que controlar o ajuste de algo em torno de 750 relógios de ponto, que, se não for bem sucedido, costuma gerar um belo barulho. Afinal de contas, não é muita gente que gosta de chegar em um horário e marcar ponto em outro. É bem verdade que o início do horário de verão é menos problemático – o relógio não ajustado tem um horário anterior ao estabelecido em lei e não gera atraso – mas mesmo assim não é bom que os desacertos aconteçam. E lá vou eu, para uma das salas, realizar um trabalho repetitivo e de pouco uso mental, no silêncio ocasional do centro de São Paulo. Vou com roupas leves, alguns litros de líquido (incluindo muito café) e pão com mortadela. É uma experiência, antes de mais nada, de solidão. No caso, saudável.

A pessoa solitária não é bem aceita. Sabemos muito bem que estas pessoas ganham o estatuto de esquisitões, algumas vezes atribuídos à sua timidez, outras a uma suposta soberba. Mas por que temos que pensar mal da pessoa solitária? Por que temos de considerar sua atitude como algo antinatural?

Quanto à última questão, entendo que é de fácil resposta. Sim, a solidão para o homem, no sentido de espécie, é antinatural. Mas estamos bastante longe de sermos seres “naturais”, então precisamos buscar a resposta também no campo cultural.

Vamos à minha experiência pessoal. Em uma tarde de domingo ensolarada, transitando do Largo de São Francisco à Praça da Sé por uma rua Benjamin Constant quase deserta, a habitual afilhada Renata me conta conversas que tem com um colega de escola, de quem não lembro mais o nome. Na afirmativa do gajo, os sentimentos humanos não existem; são construções ideológicas. É a ideologia impingida a uma determinada sociedade que impõe ao indivíduo seu dever de amar, de ter saudades, de suportar inveja e via discorrendo. O amigo quer me parecer mais marxista do que Marx, mas a sua tese não deixa de ser interessante. Por isso mesmo, vou calmamente desconstruí-la (o que é prova de respeito).

Em primeiro lugar, o homem é um animal. Ponto. Apesar de ser um pascaliano caniço pensante, sua condição de animal faz com que o homem tenha uma espécie de “piloto automático”, e que tenha características semelhantes a outras espécies. Isso se espelha em duas características: a existência do instinto e do atavismo.

Sobre o instinto, já falei aqui e aqui, mas vou dar um pequeno recuerdo. O instinto é uma reação imediata a uma necessidade urgente, em que é preciso ser rápido para preservar a integridade física ou mesmo a sobrevivência. Um dos textos dos links fala dos pianos que caem sobre as nossas cabeças. Outro exemplo acontece quando nos encostamos em uma panela quente. Não ficamos pensando: “Puxa, como este objeto está quente! Devo cessar o contato que tenho com ele, sob pena de que minha pele fique altamente danificada, causando enorme dor e obrigando-me a procurar cuidados médicos”. Nós simplesmente tiramos o dedo! Percebem como ser racional nessa hora traria-nos problemas? Como seria perigoso? Por esse motivo, os mecanismos evolutivos selecionaram os indivíduos com a melhor resposta instintiva e o resultado é esse que temos hoje.

Com relação ao atavismo, é um tipo de patrimônio comportamental inerente à espécie, também irracional, e que serve como um “guia” dos fundamentos das condutas humanas, e que foi sendo construído de geração em geração, até constituir o que somos no presente. Para compreender esse processo, é bom saber o que é um arquétipo – leiam mais neste post, onde eu explico um pouco da brincadeira.

A construção das disposições atávicas (proveniente do latim atavus – avô, ancestral) tem um dinamismo semelhante a um relógio analógico, ou seja, parece se mover sem se mexer (aos extremistas – pensemos em um relógio sem o ponteiro dos segundos). A inserção de cada componente no conjunto demora milênios para acontecer, e demora milênios para ser modificada, e demora milênios para desaparecer. Vamos puxar um fio do novelo e tentar segui-lo desde o começo.

Imaginemos a vida dos primeiros hominídeos. Sem dúvida, uma aventura. Inserido em um contexto violento, onde era presa fácil e corpo frágil, o homem percebeu que poderia se dar melhor se não vivesse isoladamente. Muito fraco, só em grupos as caçadas poderiam ser mais eficientes e menos perigosas. Também em grupo funcionava melhor um esquema de vigilância que evitasse o ataque de feras predadoras, já que era possível um revezamento e uma multiplicação de olhos e ouvidos. Para a manutenção do grupo, fazia-se necessário que seus membros se reproduzissem. A proximidade já existente favorecia esse laço.

O homem, também derivando da proximidade, desenvolveu paralelamente um mecanismo que permitisse a comunicação entre si, o que lhe servia tanto para a organização geral quanto para o registro e transmissão da experiência: era a linguagem. Esse mecanismo carregava consigo algo tremendamente característico do ser humano – a referência e utilização de símbolos. E é justamente esse substrato simbólico que dá ambiguidade à linguagem. Essa ambiguidade é expressa principalmente na utilização de sinônimos, nas figuras de linguagem, na variações idiomáticas e etc. Mas prossigamos.

O contato entre determinados grupos fazia com que se percebesse que alguns tinham características melhores que os outros: uns eram mais altos, outros mais fortes; uns eram mais rápidos, outros saltavam mais alto. Também era possível perceber que havia defeitos que ocorriam em um grupo que não ocorriam no outro – uns com tendência a mortes precoces, outros com dificuldades em absorver certos nutrientes. O cruzamento desses grupos fazia com que as melhores qualidades de um passassem a se unir às melhores qualidades do outro – na junção dos defeitos, a seleção natural se encarregava de dar cabo. E daí temos todo um conjunto de necessidades biológicas que se traduzem em impulsos, que não são conscientes, e que se disseminaram por toda a espécie humana.

Partindo destas informações, podemos perceber que os sentimentos meio que se “equalizam” às necessidades de sobrevivência. Nesse sentido, o medo é um sentimento necessário para que um indivíduo ou um grupo se protejam. O amor é um sentimento necessário para que exista um laço onde os homens colaborem entre si, como é o caso de um casal que precisa dar amparo à sua prole.

O sentimento, portanto, existe antes da ideologia. O que esta pode fazer é dirigir e moldar o que pode ser feito com estes sentimentos. Comparando com o parágrafo anterior, o medo representa uma segurança contra o perigo; é possível incutir ideologicamente o medo a uma determinada etnia, ou uma determinada religião, ou seja lá o que for, apresentando-a justamente como um perigo. Ou é possível manipular esse “devo amar” atávico, determinando o desvio do sentimento voltado a um grupo para algum objeto específico, como o fato de se prezar mais uma conduta moral do que outra. Mas desmobilizar o sentimento em si, não me parece possível. Isso porque somente é possível fazer valer um determinado conjunto de ideias na medida em que é possível transmiti-las, ou seja, o limite da ideologia é o limite da linguagem. E com isso concluímos: para manipular ideologicamente um sentimento, já é preciso que ele exista antes.

É por isso que parece estranha a pessoa que vive isoladamente. Fomos moldados para o gregarismo. Mas é algo muito diferente o fato de uma pessoa gostar de viver sozinha e o fato de uma pessoa se sentir sozinha. Essa diferença é absolutamente decisiva.


Quando falamos da espécie “ser humano”, precisamos partir da premissa da influência da cultura em seu comportamento. Como explanei, o homem tem a tendência a ser gregário, e todo seu escopo social parece confirmar culturalmente aqui o que foi decidido naturalmente. Mas a cultura existe exatamente para subverter aquilo que é natural. E o item cultural mais significativo de todos é a justamente a linguagem.

A linguagem é um campo tão vasto que passou a se tornar, a partir do final do século XIX, um dos itens centrais da Filosofia, e não fosse ela algo tão humano, poderíamos até mesmo dizer que o foco da Filosofia saiu do homem para a linguagem (o que não faria sentido).

A ênfase no estudo acerca da linguagem se dá através do que os filósofos chamam de “problema semântico”. E esse problema nasce na medida em que a Ciência, cada vez mais precisa e com a necessidade de expressão universal, encontra o obstáculo da ambiguidade linguística. O que significa isso? Que a linguagem precisaria ser matematizada, ou seja, ser libertada de qualquer sentido paradoxal para que as formulações científicas pudessem ter validade em qualquer lugar e a qualquer tempo.

O primeiro filósofo a tratar do tema como objetivo em si mesmo foi Gottlob Frege, mas não vamos tratar dele neste momento – não faltará oportunidade. Hoje eu quero lidar com as teses do galês Bertrand Russell.

Russell desenvolve uma teoria denominada atomismo lógico. Essa teoria diz que as expressões podem ser quebradas em fragmentos cada vez menores, até o ponto em que cada um dos seus componentes mantenham um certo sentido isoladamente, ou seja, até o ponto em que uma nova quebra destruiria o sentido do fragmento – tal qual ocorre com a matéria.

Para falar bem superficialmente, Russell achava que existia um erro na tese hegeliana, então em voga na Europa, de que a linguagem somente poderia ser compreendida em seu todo. Essa visão holística acaba por ocultar componentes menores e mais simples, que guardam sentido mesmo que destacados do contexto global da frase.

A redução atômica de Russell funcionava mais ou menos assim:


Se eu digo “Sócrates é mortal”, posso formular a frase da seguinte maneira:

A=Sócrates
B=mortal
Portanto, A=B

Mas, se eu disser “O maior de todos os filósofos clássicos é um ser que terá um fim”, chego à seguinte formulação:

A=O maior de todos os filósofos clássicos
B=Um ser que terá um fim
Portanto, A=B – ou seja, tenho a mesma conclusão que a anterior.

E o mesmo se repete com todas as expressões linguísticas que seguem este escopo. É claro que há expressões mais complexas, que vão compor uma formulação mais detalhada, como, por exemplo:

“Sócrates é mortal se e somente se todo homem for mortal ou se a alma não for imortal”

Que pode ser reduzida matematicamente para



(ou algo semelhante... confesso que andei dormindo um pouco nas aulas de Lógica).

Finalizando: um átomo lógico é uma expressão linguística que carrega consigo um sentido completo, e que pode ser inserido em uma proposição, podendo receber um valor de verdade – verdadeiro ou falso. Percebam que tanto A quanto B, nas primeiras expressões, são sinônimos, diferindo apenas na complexidade com que são descritos, e ambas podem ser consideradas verdadeiras ou falsas.

E esse é também o grande problema da teoria atômica. Ela funciona muito bem na Ciência, mas falha quando cai no campo especulativo ou lírico, para citar dois exemplos. A busca desenfreada em remover dubiedades da linguagem é tarefa tão inglória quanto tentar encontrar leis que rejam relações sociais ou antropológicas, porque um simples passo para o lado pode deslocar todo o sentido do que se quer expressar.

Em suma, apesar de toda a engenhosidade do método do atomismo lógico, permanecemos com o problema semântico, porque ele pode ser muito bem aplicado às formalidades da linguagem científica, mas falha quando saímos dessa esfera. E, para entender isso, vamos materializar a metáfora do átomo.

Em algum dia do meu longínquo passado, escutei do meu primo Moacir, leitor deste espaço e químico formado, uma frase interessante: “O diamante é um carvão que deu certo”. Realmente, tanto um quanto o outro tem a mesma composição: átomos de carbono. A diferença, portanto, não está em sua constituição material, mas nas condições de temperatura, pressão e outras mais, que fizeram com que o arranjo molecular, com suas ligações e demais badulaques originassem um belo e cristalino (e caríssimo) diamante ou um ordinário pedaço de carvão mineral.

A mesma lógica se aplica à linguagem. Os átomos lógicos podem ser os mesmos, mas as “condições de temperatura, pressão e outras mais” podem modificar totalmente o sentido do produto final. Querem um exemplo? Esperem um pouco que eu vou chamar o síndico. Leiam a letra com atenção.

Não sei por que você se foi
Quantas saudades eu senti
E de tristezas vou viver
E aquele adeus não pude dar

Você marcou na minha vida
Viveu, morreu na minha história
Chego a ter medo do futuro
E da solidão que em minha porta bate

E eu gostava tanto de você
Gostava tanto de você

Eu corro, fujo desta sombra
Em sonho vejo este passado
E na parede do meu quarto
Ainda está o seu retrato

Não quero ver pra não lembrar
Pensei até em me mudar
Lugar qualquer que não exista
O pensamento em você

E eu gostava tanto de você
Gostava tanto de você

Essa música do Tim Maia chama-se “Gostava tanto de você” e, a primeira vista, parece falar sobre as desventuras amorosas do eu-lírico, desiludido com a perda do relacionamento com a mulher que tanto gostava. Mas e se eu lhes contar que a música foi feita em homenagem a uma filha do Tim que morreu ainda criança? As palavras mantêm o seu sentido? Continuando vemos essa letra da mesma forma que víamos?

Não sei se essa história é verdadeira ou se é mais uma das tantas lendas propagadas em meio virtual (pelo que eu pesquisei, é lenda; mas vai que a lenda é que seja a lenda!), mas o fato é que, pela interposição de um único fator extrínseco, modificamos completamente o sentido que é aplicado ao referente em questão, e confirmamos que a linguagem é submissa ao contexto em que é utilizada – a ocasião histórica, a situação emocional, os costumes vigentes, etc. Assim como o carbono pode virar diamante ou carvão, as variáveis transformam a linguagem em razão ou emoção, em conotação ou denotação, em mentira ou verdade.

Desta forma, verificamos que o problema semântico permanece e os filósofos contemporâneos continuam debruçados sobre a questão, mas é o suficiente para provar que, no quotidiano, a linguagem – como toda a obra humana – tem suas virtudes e seus efeitos colaterais.

E o maior deles, na minha humílima opinião, é a solidão. Porque não há linguagem que sustente toda a gama de articulações mentais possíveis. Às vezes, um gesto diz mais do que um compêndio inteiro. E se temos a necessidade de colocar tudo aquilo que pensamos e sentimos para os demais componentes de nosso ambiente, veremos que nosso conjunto único de impressões fica restrito a nós mesmos. Nesse sentido, pode parecer um chavão romântico, mas é plenamente possível estar solitário em meio à multidão. E, também nesse sentido, seremos eternamente solitários.

A solidão pode ser entendida como incapacidade de tornar dos outros aquilo que é nosso, e que gostaríamos de disseminar. Isso vale não só para o conhecimento, mas para qualquer coisa que gostaríamos de compartilhar: nossos anseios, nossas fraquezas, nossas opiniões, com todos os seus porquês. E sentimos falta de uma completa identificação com o nosso meio, porque essa limitação é bilateral. Sempre haverá algo de inexprimível naquilo que eu digo, assim como sempre haverá algo de incompreensível para quem me ouve. Essa é a raiz da solidão.

A solidão é uma doença da linguagem. Infelizmente congênita e hereditária.

Recomendação de leitura:

A seguinte obra sintetiza bem o pensamento de Russell no quesito Lógica. Lembrando desde já da vastíssima obra deste importante pensador.

RUSSELL, Bertrand. Lógica e conhecimento. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

E a "aquarela" inserida no texto é uma brincadeira que fiz com a foto da Jéssica, a popular Jazz, mais uma afilhada minha, que tenho certeza que vai me autorizar o uso!!! Ela não é um exemplo bem acabado de solidão, mas achei que a imagem poderia dar outro exemplo de como a linguagem é falha em dar expressão real dos sentimentos.

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