Certamente você, meu caro leitor, já se viu de frente a uma
situação sem explicação. Eu mesmo tenho um exemplo bem claro em minha própria
casa. Como é costume em pessoas de nossa nacionalidade, tenho um claviculário
junto à porta do meu apartamento. Aliás, claviculário significa “pendurador de
chaves” em bom tucanês. É uma peça simples, feita em madeira ordinária e
ganchos de latão, provavelmente. Cumpre bem a sua função de manter em boa ordem
a colocação dos molhos de chaves, tornando-os disponíveis nos momentos
adequados. Tudo funciona a contento, a não ser quando o fator pressa entra em
questão. Quando isso ocorre, um estranho fenômeno se desdobra: invariavelmente,
a chave pretendida é enganchada pelo seu penduricalho e escorre da mão, fazendo
com que caia atrás do balcão cheio de pratos, bastante pesado por conseguinte.
E dá todo aquele trabalhão para arrastá-lo e repô-lo em seu devido lugar, aumentando
o já grande desespero. O fenômeno se dá comigo, com mulher e com filhos, não há
uma distinção conspiratória contra mim. Que tipo de lei universal rege esta
categoria de travessura?
Outra constatação. Quem teve filhos, vai saber bem do que
estou falando, principalmente se eles ainda não passaram dos 10 anos. Há uma fase da
vida deles em que tudo, absolutamente tudo, é perguntado. “Por que isso? Por que
aquilo? Por que o outro? Por que assim? Por que assado?”. O volume de
questionamentos se torna tão grande que, por mais que não queiramos, chega uma
hora em que ligamos o piloto automático. Até que a engenhosidade infantil e os
intrincados caminhos a que sua curiosidade insaciável conduzem ao diálogo
capcioso:
- Pai!
- Oi.
- As frutas nascem das árvores, não é?
- Isso mesmo.
- E as árvores, nascem de onde?
- Nascem das sementes das frutas...
- Ah... (fica pensativo por alguns segundos) Pai!
- Oi.
- Caqui é fruta?
- Sim. Claro que é.
- O caqui não tem semente, de onde nasce a árvore do caqui?
- (Um pouco mais impaciente) Caqui tem semente. É que
inventaram um caqui que não tem semente.
- Mas como eles fazem? Eles tiram as sementes do caqui?
- Não, não... Os agrônomos é que inventaram um caqui sem
semente, prá vender mais.
- Agro... o quê?
- Agrônomos. São cientistas que lidam com terra, plantas,
essas coisas.
- Ah... (pensativo de novo) Pai!
- Ahn (agora, verdadeiramente impaciente).
- Não é Deus que fez todas as coisas? Deus é agrônomo?
- Não, não, não... Deus fez as coisas, mas o homem modifica
essas coisas.
- Mas o que Deus fez não é bom?
- É bom, sim.
- Então por que o homem muda as coisas?
- Porque sim! Fica quieto agora.
- Tá bom, tá bom... Mas me diz como é que a árvore de caqui
nasce, se o caqui não tem semente...
- Porque Deus quer! Pronto!
(E com isso o papo se encerra).
- - -
Temos uma estranha tendência a não aceitar nossa falta de
conhecimento. É uma espécie de dificuldade em ser humilde o suficiente para
dizer “não sei”. E, com isso, tentamos preencher esses vazios com
justificativas que não têm como ser provadas. Quando fazemos isso, lançamos mão
de uma falácia conhecida como “deus das lacunas”.
Mas por que esse termo?
Bem, no começo da aventura humana na Terra, o homem não
possuía a seu dispor muitos elementos para explicar o funcionamento universal,
e seu ferramental era restrito praticamente aos seus olhos para interiorizar e
sua boca para exteriorizar seus conhecimentos. Daí que nascem os mitos – como
não compreendemos as origens dos seres, as causas das doenças, os ciclos
naturais, as razões da morte, atribuímos estes fenômenos à vontade de entidades
exteriores a nós e ao ambiente observável. São os deuses.
Na medida em que o tempo passa e o patrimônio científico vai
se acumulando e enriquecendo, a participação das deidades vai diminuindo de
tamanho e importância. A Ciência tem sido impiedosa com a atribuição de valor
às divindades. Apenas para citar um exemplo, uma série de três descobertas
impingiu ao ser humano o que se convencionou chamar de “feridas narcísicas” –
que trocado em miúdos quer dizer tombo, capote, cair de cara no chão. Primeiro,
Copérnico “tira” a Terra do centro do universo, e somos colocados em um
planetinha que orbita ao redor do Sol, acompanhados dos demais planetas do
sistema, tais e quais eles. Depois, Darwin coloca-nos em um dos ramos da
evolução, derivado de um ancestral comum com todos os demais símios; somos
macacos. E, por fim, Freud descobre que nem ao menos controlamos nossa
consciência; somos animais guiados por instintos como qualquer outro, e nossos
conflitos morais são resolvidos com uma guerra psíquica interior, da qual
praticamente não temos controle e nem ao menos consciência.
Só que não é tudo o que a Ciência alcança. Há uma série de
buracos que faltam ser preenchidos, seja por carência de pesquisas, seja por
lapsos tecnológicos. É nesses pontos em que se tenta buscar explicações
sobrenaturais, e é aí que nasce este tipo de falácia.
O termo “deus das lacunas” é genérico, no sentido de que não
se aplica somente às divindades. Um exemplo bem significativo são as teses
sobre a construção das pirâmides no Egito.
Quem observa esses enormes monumentos se põe impressionado
imediatamente. De fato, é difícil compreender de que modo poderiam ter sido
construídas sob engenho humano. Desta forma, algumas teses procuram levar em
consideração uma intervenção externa, no caso, de extraterrestres.
Já no texto que inseri no início desta postagem, há uma lei
pseudocientífica (irônica, no caso), que procura atribuir universalidade e
causalidade aos conjuntos de acontecimentos desfavoráveis que atrapalham nossa
vida: a lei de Murphy, cujo principal axioma é que sempre que algo puder dar
errado, dará. É a minha chave que se imiscui no vão do bufê todas as vezes que tenho
pressa para abrir a porta.
Em ambos os casos, podemos lançar mão de uma ferramenta
filosófica criada por um frade franciscano que viveu no século XIV. Seu nome é
Guilherme de Ockham, e seu utensílio ficou conhecido como “navalha de Ockham”.
Seu funcionamento é irritantemente ordinário. De todas as
teses existentes sobre um determinado fenômeno, aquela mais simples é a que
merece a primeira investigação, porque provavelmente será a correta.
Vamos voltar às pirâmides. Temos duas teses, ambas ainda não
provadas. A primeira diz que existiam sistemas de rodas e polias, apoiados pela
utilização de planos inclinados e centenas de escravos que permitiam içar e
lapidar as pedras por camadas, orientando sua colocação de acordo com a posição
do sol em determinadas épocas do ano, resultando em um processo de construção
que levava décadas. Na outra hipótese, um povo alienígena transporta todas as pedras,
já lapidadas, e as monta em um determinado local situado no deserto, com sua
posição e direção já ajustadas mediante um plano prévio, que faz com que a
pirâmide aponte para o céu na direção de seu distante planeta. No primeiro
caso, a própria História explica a motivação religiosa da construção da
pirâmide: eram túmulos destinados aos reis, que aguardavam ali sua volta à
vida. No segundo, um monte de coisas a serem explicadas: De onde vieram os
ET’s? Como viriam? Utilizariam naves ou fariam viagens metafísicas? Extrairiam
seu material da Terra ou o trariam de seu planeta? Para que viriam? Qual sua
intenção? Por que utilizam uma área desértica, quase desprovida de formas de
vida? Por que não construíram pirâmides em outros locais? Por que não construíram
pirâmides na Lua, ou em Marte? Além de tudo, a História de nada serve para
ajudar na explicação – ganha o estatuto de engano ou, pior ainda, de teoria da
conspiração. Prefere-se uma explicação do tipo "contato intergaláctico", ou coisa do gênero.
Qual das duas soluções é mais simples e mais factível? A
primeira, é óbvio. Portanto, a navalha de Ockham manda que esta tese seja investigada,
por ser mais plausível. A segunda, pelo menos a princípio, é um Deus das Lacunas.
O mesmo se aplica à chave que cai no momento de pressa. Uma
das teses diz que é mera coincidência, ponto. Aliás, melhor que coincidência –
a pressa, sendo inimiga da perfeição, faz com que a chave seja pega de maneira
desajeitada, na base da correria, e com isso é mais fácil que ela caia.
Existindo um buraco entre o móvel e a parede onde ela fica pendurada, parece
razoável que ela vá justamente para ele. A outra tese tenta encontrar uma regra
universal que explique uma sequência de desdobramentos que ocorrem apenas em
determinadas circunstâncias. E o tamanho da pesquisa para encontrar essa regra
é gigantesco. Devem ser consideradas circunstâncias de temperatura e pressão?
Deve ser procurada alguma tese de natureza antropológica? Há anotações sobre a
quantidade de vezes que isso acontece? O peso da chave, a curvatura do gancho,
a projeção do claviculário foram todos calculados? Feito tudo isso, foi
aplicada a tese para outras situações de atraso? Por exemplo, um carro tem mais
dificuldade de ser ligado quando estamos com pressa? O trânsito é pior? Chove?
Ockham diria apenas: “Fique com a primeira hipótese”. Porque parece muito mais
óbvio que você registre seu “azar” mais marcadamente do que quando tudo dá
certo. Quando tudo funciona, temos apenas uma trivialidade, sem nada para ficar
mais fortemente gravado na memória. Peguemos 50 vezes a chave e veremos que ela
cairá apenas duas ou três vezes no vão. Lembraremos apenas dessas, porque a
raiva que sentimos fortalece o registro. E não levamos em consideração todas as
vezes em que a ação foi bem sucedida. Não há nada de sobrenatural.
Pois é. O Deus das Lacunas nada mais é do que tentar
preencher um espaço no conhecimento com algo que foge ao alcance da explicação
racional. Henry Drummond, um teólogo escocês, forjou o termo para que os cristãos
tomassem cuidado para não dar explicações teológicas onde é possível utilizar
razões científicas, no que é secundado por Dietrich Bonhoffer, pastor luterano
que disse sabiamente que imputar lacunas a Deus é também atribuir-lhe culpas
que ele não tem. Ele disse: “vamos encontrar Deus naquilo que conhecemos, não
naquilo que desconhecemos”. Em suma, à Ciência o que é da Ciência, e a Deus o
que é de Deus.
Recomendação de leitura:
A lei de Murphy, evidentemente, é uma mera brincadeira, mas
que tem a serventia de advertir sobre os cuidados que devemos ter para não
subestimar nossa capacidade de cometer erros e de não prever corretamente os
problemas que um projeto qualquer pode vir a ter. Tenho um livro que trata essa
lei de maneira bem humorada, bem como discorre sobre outros princípios de
administração e projetos em que se costuma encontrar problemas inesperados.
BLOCH, Arthur. A lei
de Murphy e outras razões para as coisas correrem mal. Rio de Janeiro:
Record, 1996.
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