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quarta-feira, 13 de abril de 2016

Pequeno guia das grandes falácias - 24º tomo: o erro da má companhia (culpa por associação) e mais algumas observações sobre como pessoas boas cometem ações ruins

Olá!


Sou ruim de bola. Em pleno “país do futebol”, sou ruim de bola. Mas gosto de futebol, porque não é preciso saber fazer cerveja para gostar de cerveja, não é preciso saber fazer o salame para gostar da porção e não é preciso saber jogar para gostar de futebol. Mas, provavelmente pela cintura dura, fui empurrado para o gol, este desterro dos pernas-de-pau, na posição mais próxima da saída do campo.

Isso não quer dizer que eu não tenha tentado a sorte. Perto de onde eu morava, havia a Química Ema, uma empresa de produtos químicos (oh!) que ficava perto do ponto final da Vila Ema (oh²). Ela patrocinava uma equipe de garotos que chegou a ficar famosinha no começo da década de 80, muito por conta das participações em um torneio chamado “De Paula”, que era transmitido na TV pela Gazeta, canal 11.

Eu estava na época do estirão. Foi algo extremamente rápido para mim. Na 5ª série, só tinha um menino mais baixo do que eu; na 7ª, a equação se inverteu – só tinha um rapaz mais alto. Eu já estava praticamente com a altura que tenho hoje, o que, para um rapazola de 12 anos, não estava nada mal. Inclusive, já tinha barba nessa época (e comecei a fumar). Quando fui fazer meus testes na Química Ema, o treinador quis aproveitar essa minha então qualidade para me situar em campo. A escolha óbvia recairia sobre o gol, mas dois perus foram suficientes para fazê-lo desistir da ideia. Para ser centroavante, minha inabilidade era barreira insuperável. Restava a zaga. Mais precisamente a quarta-zaga, exatamente aquela posição que ninguém nasce sendo, conforme ensina Marcelo Barreto, uma vez que as vagas de central já estavam bem ocupadas. Como não foram as saídas de gol o que abreviou minha carreira de goleiro, o técnico achou que poderia dar certo, mesmo não sendo eu canhoto. O rápido teste que fiz não trouxe nenhum comprometimento. Era jogar o corpo em cima dos rápidos mas minúsculos atacantes e cortar a bola de cabeça, ou chutá-la para o mato que vale o campeonato, como se fosse um enxame em polvorosa. O teste definitivo seria um jogo-treino descompromissado, no velho campo do Veteranos do Brasil (onde hoje há o entroncamento da Salim Maluf com a Anhaia Melo).

Faltava uma coisa importante: a chuteira. Obviamente, eu não tinha recursos próprios para comprá-la, então o jeito foi apelar para a genitora, e ver se tinha como extrair a minha futura ferramenta de trabalho da presente ferramenta de trabalho dela, a máquina de costura. Expostos os propósitos e as necessidades, recebi o sonoro “não”, que futebol não era coisa para um estudante e que não eram redondezas para gente de bem. Minha mãe conhecia muito bem os meandros da Vila Ema e adjacências, andeja que era para buscar e levar encomendas. E sabia que era nos arredores dos campinhos que a maloqueirada se reunia para fazer seus malfeitos. Era assim no Cachimbo (olha que nome), na Rua Deis (sic), na Invernada... Junto com o “não”, veio um aumento na carga de trabalho que já contei neste post, com a provável intenção de me afastar das más companhias. Meu exuberante futebol resultou em um deprimente natimorto.

Houve excesso de zelo pela matriarca? Impossível saber. Ela fez o papel dela. Mas nada comprova que o fato de frequentar um ambiente dos maus me tornaria um mau. “Apenas” potencializaria o risco, como veremos adiante. Mas dizem que, para a mulher de César, mais importante do que ser honesta, é parecer ser honesta. Ninguém gosta de ver seu nome e suas ideias ligadas a fatos e pessoas desagradáveis. É o bom e velho “dize-me com quem andas que eu te direi quem és”.

É fácil detectar isso. Tente encontrar alguém que admita ter votado no Fernando Collor em 1989. Ele foi eleito com 35 milhões de votos, com votação expressiva no estado de São Paulo – a diferença de votos obtidos aqui foi suficiente para garantir sua eleição. E hoje você concentra este mesmo pessoal em um pequeno boteco da região da Santa Ifigênia. Dos que admitem, é óbvio. O mesmo deverá acontecer com a Dilma, se e quando houver impeachment. Aí você fala: “Sempre é preciso tomar cuidado com o voto”. E o pessoal da patrulha responde de pronto: “Taí um eleitor da Dilma falando”, te impingindo a nova má companhia.

Isso acontece porque ninguém gosta de ser associado ao erro, ao engano. E daí é fácil de manipular um argumento, atribuindo as ideias contidas no mesmo a alguém condenável. É uma falácia conhecida como erro da má companhia ou culpa por associação.


É conveniente andar com alguém mal afamado?

Trata-se de uma falácia informal de dispersão e relevância, porque busca fazer um desvio de foco através da introdução de um argumento que é irrelevante. No caso, o fato de que uma pessoa indesejável compactue da ideia defendida não a torna menos válida. Não deixa de ser um argumentum ad hominem, com a diferença de que o ataque não é dirigido diretamente contra o interlocutor, mas é feita sua associação a um nome deplorável, de forma a fragilizar sua posição.

É uma falácia comum demais. Um ateu diz: “Hitler era católico”, portanto todos os católicos são maus. Um católico diz: “Stalin era ateu”, portanto todos os ateus são maus. Para, gente.

Hitler perseguiu os judeus pela sua condição étnica, não pela religião; Stalin fez expurgos dos seus inimigos pela sua posição política, não pela religiosa. Bondade e maldade não estão vinculadas, necessariamente, à religiosidade da pessoa. Esse tipo de mistura é que leva ao erro da má companhia. O mesmo acontece se dissermos que não usamos roupas pretas porque é a cor favorita dos fascistas. Fascistas gostam de preto? E daí?

Ficou claro? A falácia acontece quando queremos desqualificar um argumento ao associá-lo a alguém indesejável, causando o efeito psicológico de que nada que possa partir dessa coisa tenha valor. Mas a associação à má companhia constantemente não é falaciosa. E sobre isso, vamos lançar o foco principal deste texto.

As más companhias realmente causam influências negativas em nós. Mas não temos um tipo de propensão a ser bons ou maus? Não conseguimos ser firmes mesmo que tenhamos diante de nós más vantagens oferecidas por aqueles que nos rodeiam? Há algum nível de aceitação do mal, dependendo da circunstância em que isso ocorra? Enfim, o que leva pessoas boas a tomarem atitudes ruins? Essas são as perguntas que tentaram ser respondidas pelo psicólogo social Phillip Zimbardo, norte-americano de origem italiana.

Zimbardo estava interessado em estudar como as convicções pessoais são deixadas de lado para praticar ações hediondas. Afinal de contas, policiais, agentes penitenciários, soldados e outros atores que são frequentemente acusados de atos extremos, ao conversarmos com os mesmos, mostram-se pessoas absolutamente normais, como se fossem padeiros ou estetas faciais. Fazia isso para tentar desenvolver uma teoria da maldade, e, em vista de experimentos realizados por Stanley Milgran sobre obediência e autoridade, tinha sérias desconfianças de que o processo de papéis sociais e obediência tinham muito a ver com os mecanismos que permitem esse tipo de fenômeno. Seu trabalho foi um dos mais célebres estudos da Psicologia de todos os tempos, conhecido como Experiência da Prisão de Stanford.

O experimento foi assim: foram recrutados 75 voluntários para realizar um teste de sanidade preliminar. Os 24 mais estáveis emocionalmente foram então dirigidos à Universidade de Stanford, em cujos porões foi montado o simulacro de um presídio, com todos os requintes característicos: salas transformadas em celas, comida padronizada, isolamento com relação ao mundo exterior e todos os que-tais. O grupo foi dividido em dois – os prisioneiros e os agentes penitenciários, sendo que o próprio Zimbardo se colocou presente, na qualidade de superintendente. O experimento tinha um prazo inicial de duas semanas, contadas a partir do momento em que o grupo dos “prisioneiros” fosse apreendido em suas casas, e vestido como tais (o mesmo aconteceu com os “policiais”, que receberam seus respectivos fardamentos e equipamentos). A ideia era observar como se desenvolveria a relação de poder através de pessoas mentalmente equilibradas. Uma prerrogativa: nenhuma violência física direta poderia ser aplicada. Todos os outros meios de coerção eram permitidos.

Os resultados foram surpreendentes, em uma escalada brutal imediata. Os presos, desde logo, eram tratados de forma humilhante, sendo obrigados a restrições crescentes, que incluíam severas limitações alimentícias e imposição de repetidos exercícios físicos imotivados. Tiveram seus pés atados por correntes, para não esquecer suas condições de condenados. Em alguns casos, especialmente nas ameaças de rebeldia, eram enfiados em armários, como se fosse uma solitária.

Com dois dias de experiência, o nível de crueldade estava assim: os presos eram obrigados a defecar em suas próprias celas, que permaneciam sem limpeza; aliás, nenhum banho era permitido, e eram coagidos a ficar nus. Os colchões e suas roupas também foram retirados de seus alcances. Ao cabo de alguns colapsos nervosos dos presidiários, o estudo foi interrompido antes de sua metade, com apenas seis dias de realização! E, para tanto, foi necessária intervenção externa, já que o próprio Zimbardo estava tão absorto em seu experimento que não se deu conta de que a situação estava saindo do controle.

Juntando todas as suas observações, acrescidas de mais alguns estudos, Zimbardo tirou as seguintes conclusões do experimento da Escola de Stanford:

  • A maldade não está necessariamente vinculada à personalidade da pessoa. Antes de mais nada, ela é uma ferramenta de exercício do poder, e o poder se dá a nível de instituições. O experimento abarcou um universo extremamente limitado e simplificado, mas extensível a grupos mais complexos, como se pode ver na vida real com a tortura de prisioneiros de guerra;

  • Um dos critérios necessários para que se exerça tal poder é deixar de lado o fato de que há seres humanos envolvidos nesta relação. E a desumanização não se limita a reputar como objeto apenas e tão-somente o outro, mas é preciso afastar de si próprio os valores humanos. A desumanização é recíproca;

  • A violência aplicada por um grupo é mais eficiente que aquela individual. O processo de desumanização inclui uma diluição da culpa, que, quando executada por várias pessoas, torna possíveis ações que não seriam executadas individualmente, como é o caso das chacinas e linchamentos. Conhecemos isso como comportamento de manada (termo que não foi criado por Zimbardo, mas que se aplica ao caso; vejam mais neste meu texto);

  • É preciso que haja o reconhecimento de um poder exercido por uma autoridade. Passando pelo princípio de diluição da responsabilidade, é preciso que exista alguém com reconhecido poder para determinar o início da crueldade. Essa autoridade passa a exercer o poder de forma a ser obedecido cegamente pelos demais membros do grupo;

  • Havendo o reconhecimento de uma autoridade, as ordens não devem ser objeto de contestação, já que suas normas são uma manifestação da vontade da autoridade. A adesão ao grupo é feita de forma passiva e acrítica;

  • Ainda que os resultados do exercício do mal saltem aos olhos como indignidade, a reação do grupo é de indiferença. Mesmo que provoque algum tipo de efeito psicológico no indivíduo, esta indignação é transformada em uma tolerância passiva, de modo que em nada haverá de modificação no comportamento do grupo através da posição subjetiva de cada membro;

  • A influência do sistema sobre o indivíduo se aplica, preferencialmente, nas situações em que há novidade sobre o âmbito situacional. Em um ambiente já dominado por determinadas regras, será mais difícil ao indivíduo modificar sua tendência pessoal;

  • Por fim, o salto da linha: há sempre um primeiro passo. Zimbardo dá o nome efeito Lúcifer à capacidade de que indivíduos equilibrados extrapolem de seu conjunto de convicções e cometam loucuras para exercer a autoridade, e perpetrar o poder que recebe em mãos.
Para quem não sabe, de acordo com a doutrina cristã, Lúcifer era um anjo como outro qualquer. Aliás, era um anjo dotado de grande poder e beleza. Seu nome, literalmente, quer dizer “portador da luz”. Mas houve algum ponto de viragem no qual se deixou levar pela sede de poder e pelas vaidades e se rebelou contra os céus. Mudou sua natureza espiritual e optou pelo mal. E foi parar no inferno.

Desta forma, mesmo pessoas boas, com princípios morais sólidos, podem cometer atrocidades, se inseridos em ambientes onde o mal é tido como um valor (ou que seja percebido como qualidade). E assim compreendemos como más companhias podem ser verdadeiramente más, principalmente quando tomadas por autoridades válidas e modelos de conduta para aquele grupo. E isso é extremamente perigoso.

Recomendação de leitura:

Zimbardo juntou neste livro suas principais experiências e descreve a nós as suas conclusões. É um livro bastante recomendável, principalmente para tentar entender o funcionamento da maldade na mente humana.

ZIMBARDO, Phillip. O efeito Lúcifer. Como pessoas boas se tornam más. Rio de Janeiro: Record, 2007.

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