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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Sobre textos bem decorados e a correspondência entre frase e fato

Olá!

Nos últimos tempos, tenho feito um trabalho com um grupo cujas atividades incluem algumas pequenas incursões teatrais amadoras. Nenhuma pretensão a enraizar nessa nobre arte e sair em turnê pelo mundo afora, mas sim de exercitar um pouco nossa capacidade de articular textos e de dar nossa interpretação sobre eles. A coisa é verdadeiramente simples. Para se ter uma ideia da despretensiosidade da proposta, resolvemos encenar um singelo auto de Natal, história conhecidíssima. Texto pronto, papéis atribuídos, roteiros distribuídos e o verdadeiro drama: decorar as falas. Meu Pai do céu!
Tem alguns anos que eu não consigo lembrar nem o nome da minha rua (flagrante exagero) e o número onde habito (isso é verdade!). Consigo, é bem verdade, compreender adequadamente um texto e interpretá-lo a minha moda. Faço isso desde priscas, militares e ditatoriais eras, quando procurava mais entender um texto do que fotografá-lo. Isso me gerou algum problema com professores que queriam descrições ipsis litteris, mesmo que as respostas estivessem corretas (e ainda tem gente que diz que AQUELES eram bons tempos... ),  mas no caso do texto cênico a decoreba é essencial.  Muitas falas são motes para a entrada de cenas, para outras falas, para início ou término de ações. Em resumo, é necessária uma disciplina e memorizar o texto é, para a minha aflição, obrigatório.

Andei buscando alguns métodos para entender como os atores conseguem guardar textos por vezes longuíssimos, como é o caso dos monólogos As mãos de Eurídice, de Pedro Bloch e a Valsa nº 6, de Nelson Rodrigues, mas não achei nada muito mais produtivo do que as recomendações de ler, reler e reler, se possível em voz alta. Houve um único conselho que me chamou verdadeiramente a atenção, mais por curiosidade do que por correção metodológica. Indicava um sistema em que se deveriam sublinhar palavras chaves no texto e associar estas a algum objeto concreto. Algo como pegar a seguinte frase...
“E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.” – Nietzsche
... e transformá-la em figuras. Então eu pego os elementos mais importantes da frase e vou atribuindo objetos para eles: ”E aqueles que foram visto dançando”, penso em uma dançarina; “foram julgados insanos”, lembro-me de alguém em camisa de força; “por aqueles que não podiam escutar música”, imagino um velhinho com uma corneta acústica. Junto as três definições em uma sequência correta e pronto – decorei minha frase.

Não testei o método. Parece que ele pode ser eficaz apenas em orações curtas, já que em uma longa sequência seria mais difícil de lembrar dos objetos do que da fala em si. Talvez não tenha o compreendido direito, mas me interessei pela exposição. Afinal de contas, de modo rudimentar, ele trabalha com a associação de imagens mentais, ou seja, tendemos a formar um ambiente completo em nossas cabeças diante de um relato, por exemplo. Imaginamos uma determinada situação pegando elementos espalhados em nossa memória, já que não estamos diante do fato descrito, e essa característica nos permite compreender fatos passados ou longínquos, distantes de nossa presença, seja física, seja temporal. É como se nossa mente fosse capaz de desenhar as situações que lhe são apresentadas.
Taí, lembrei de Wittgenstein...

Ludwig Wittgenstein foi um filósofo austríaco que se ocupou principalmente da linguagem e de sua relação com o mundo ao redor, ou seja, em sua capacidade de representá-lo. No seu entendimento, os limites do mundo são idênticos aos da linguagem, porque sem essa identificação não há como se atribuir significados.
Wittgenstein apresenta-se a nós carregando duas dificuldades: a primeira é a própria constituição de suas teorias de linguagem, bastante complexas e herméticas. E a segunda é o fato de que ele é seu principal crítico. Ele mesmo se encarregou de destruir suas teses. Por isso, falamos em um primeiro e em um segundo Wittgenstein. Para não tornar este texto muito longo e sacal, vamos nos dedicar mais ao primeiro. Vamos apenas pincelar o segundo, e tratar dele com mais profundidade em momento oportuno. Andiamo.

O processo de funcionamento da linguagem, para nosso caro austríaco, possuía um encadeamento lógico semelhante ao que acontece com a própria realidade. Mais ou menos assim: Temos uma cidade física, e temos sua representação, que é um mapa. A ideia do mapa é transpor em dimensões manuseáveis algo que é muito maior que ele próprio – a área da cidade que representa.  Como o mapa segue a mesma lógica da constituição física da cidade, contendo as ruas, as praças, os semáforos, as mãos de direção, os pontos turísticos, os meios de transporte, os serviços públicos e assim por diante, tendo como diferença unicamente a sua escala, então essa representação é adequada, e por isso conseguimos nos guiar pelas ruas, vielas e becos através dessa miniaturização. O mesmo se aplica no caso de uma paisagem que é representada por uma foto; a foto não é a própria paisagem, mas possui o mesmo esquema lógico: em ambas há o sol, as montanhas, as praias, as construções, a noção espacial e climática, e assim por diante. Portanto, através da foto eu consigo refletir adequadamente a paisagem, e posso deduzir se será um bom lugar para viajar ou se será uma belíssima roubada.
A grande sacada de Wittgenstein é que esse processo se repete também entre fatos e palavras: é a teoria pictorial da frase, ou teoria pictórica do significado, dependendo do tradutor. Para ele, a linguagem se estrutura e se codifica de modo a reproduzir simbolicamente, com a maior exatidão possível, os entrelaçamentos lógicos do mundo que busca representar. Então, temos o seguinte: se eu vejo um vagalume na janela, tenho diante de mim um fato concreto. Para transformar esse fato concreto em linguagem, opero mentalmente por substituições – vejo aquele bicho com uma luz no traseiro e aplico-lhe um nome: vagalume. Também observo a estrutura montada na parede e a nomeio “janela”, e assim sucessivamente. Ao cabo do processo, tenho uma situação totalmente codificada em palavras, e estas palavras conseguem fazer com que se desenhe mentalmente todo esse quadro. Se eu digo a alguém que vi um vagalume na janela, essa pessoa consegue também ela desenhar mentalmente essa paisagem, mesmo que não a presencie. Exatamente porque a linguagem possui a mesma estrutura lógica do fato.


A frase é, portanto, algo como a miniatura do fato, da mesma forma que o mapa é a miniatura da cidade, e a foto é a miniatura da paisagem. Uma palavra não diz; uma palavra mostra. Essa é a chave da teoria de Wittgenstein. Absolutamente sensacional.

(Achei então que, tendo isso em mente, conseguiria um pouco mais de facilidade para decorar textos, sendo que a linguagem é a descrição de fatos. Na verdade, essa memorização exige uma leitura completa, para estabelecer os contextos que rodeiam tais fatos e sua correta pontuação e enfatização. É necessário que haja o maior número possível de elementos para que as palavras possam desenhar o quadro completo, e a cada nova leitura é possível agregar novas nuances. Claro que há fatos mais marcantes que outros, e isso facilita deveras a memorização. É como observar a sua sala de casa. Há nela um sofá, uma televisão e um quadro na parede.  Este sofá pode estar arrumado ou bagunçado; a televisão pode estar ligada ou desligada; o quadro pode estar um pouquinho torto ou perfeitamente reto. São circunstâncias prosaicas, que não afetam nossa percepção. Se quando acordo o sofá está arrumado e à noite bagunçado, provavelmente terei dificuldade de perceber a mudança. Agora, se por ventura o sofá não estiver mais lá, aí sim perceberei a alteração e lembrarei com facilidade que ele estava presente pela manhã. Se houver um quadro novo, é a mesma coisa. Se a televisão cair em cima de mim quando eu passar, mais ainda me darei conta de sua presença. A existência desses objetos são fatos, basta que eu os marque bem para otimizar minha recordação. Talvez isso possa me ajudar na decoreba).

Se parássemos por aí, teríamos uma bela descrição do funcionamento da linguagem. Só que a filosofia de Wittgenstein é muitíssimo mais complexa. Não é qualquer frase, nem qualquer ideia que pode ser aplicada à teoria pictórica do significado. Somente às proposições essa regra pode ser aplicada. Vamos trocar em miúdos.
O que é uma proposição? É a descrição de um fato. Não importa se ele é verdadeiro ou falso. O que importa em uma proposição é que ela declare algo sobre alguma coisa. Um exemplinho: “Este texto é longo”. Nesta frase, podemos concluir que há verdade ou falsidade, atribuindo-lhe um valor. Ou seja, se é possível afirmar que uma declaração é verdadeira ou falsa, podemos chamá-la de proposição. Além disso, uma proposição não tem meios-termos – ou ela é verdadeira, ou é falsa. Não há um terceiro status.

Como a qualquer fato existe uma correspondência linguística com uma proposição, Wittgenstein entende que a totalidade das proposições verdadeiras corresponde à totalidade da ciência natural. As proposições vão se entrelaçando umas nas outras, tornando-se cada vez mais complexas, da mesma forma que o desenrolar dos fatos vão se ampliando cada vez mais. Os limites da linguagem, por extensão, são os limites do mundo. Isso se torna um grande problema quando saímos da esfera empírica e científica e tentamos mergulhar em questões como a ética, a estética e a religião. Como pode, por exemplo, a linguagem dar conta de algo que não possui correspondência com um objeto a ser descrito? Para ele, todas essas questões são absurdas. E o que é mais interessante: não são absurdas porque não existem, mas porque a linguagem não dá conta de representá-las. Por isso, sua famosa frase: “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar”.
Há ainda outro aspecto. O nome dos objetos, as perguntas e as frases imperativas não são proposições. Os nomes sozinhos não conseguem compor uma asserção completa. Se eu digo “futebol”, não estou dizendo nada de significativo; se digo “gosto de futebol”, aí sim há algo a ser analisado. As perguntas também não possuem sentido lógico, já que elas nada afirmam sobre um fato, apenas levantam um questionamento. Já as orações do modo imperativo exprimem pedidos, ordens, conselhos, e não podem ser tomadas com valor de verdade ou falsidade. Se eu digo, por exemplo: “Por favor, apague a luz”. Há como atribuir um valor de verdade para essa frase? A resposta é não. É um pedido que pode ou não ser atendido, mas é absurdo dizer se meu pedido é verdadeiro ou falso. Isso porque não é possível reduzi-lo a uma fórmula lógica.

Em sua segunda filosofia, Wittgenstein assume uma postura crítica com relação às suas deduções descritas no Tractatus. Diz que se encontrava em completo engano, e que sua tentativa de descrever a linguagem estava fadada ao fracasso, principalmente por haver descoberto que não existia apenas uma linguagem, mas um conglomerado delas, que se relacionam na forma de jogos. Mas esse é tema, como falei anteriormente, para outro texto.

Recomendação de leitura:
O Tractatus é a grande obra do Wittgenstein da primeira cepa, do qual falamos neste texto. É um livro curto e intrincado, mas, se bem compreendido, encantador.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 2001.

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