Nos últimos tempos, tenho feito um trabalho com um grupo cujas atividades incluem
algumas pequenas incursões teatrais amadoras. Nenhuma pretensão a enraizar
nessa nobre arte e sair em turnê pelo mundo afora, mas sim de exercitar um
pouco nossa capacidade de articular textos e de dar nossa interpretação sobre
eles. A coisa é verdadeiramente simples. Para se ter uma ideia da despretensiosidade
da proposta, resolvemos encenar um singelo auto de Natal, história conhecidíssima.
Texto pronto, papéis atribuídos, roteiros distribuídos e o verdadeiro drama:
decorar as falas. Meu Pai do céu!
Tem alguns anos que eu não consigo lembrar nem o nome da
minha rua (flagrante exagero) e o número onde habito (isso é verdade!). Consigo,
é bem verdade, compreender adequadamente um texto e interpretá-lo a minha moda.
Faço isso desde priscas, militares e ditatoriais eras, quando procurava mais
entender um texto do que fotografá-lo. Isso me gerou algum problema com professores
que queriam descrições ipsis litteris,
mesmo que as respostas estivessem corretas (e ainda tem gente que diz que
AQUELES eram bons tempos... ), mas no
caso do texto cênico a decoreba é essencial.
Muitas falas são motes para a entrada de cenas, para outras falas, para
início ou término de ações. Em resumo, é necessária uma disciplina e memorizar
o texto é, para a minha aflição, obrigatório.
Andei buscando alguns métodos para entender como os atores
conseguem guardar textos por vezes longuíssimos, como é o caso dos monólogos As mãos de Eurídice, de Pedro Bloch e a Valsa nº 6, de Nelson Rodrigues, mas não
achei nada muito mais produtivo do que as recomendações de ler, reler e reler,
se possível em voz alta. Houve um único conselho que me chamou verdadeiramente
a atenção, mais por curiosidade do que por correção metodológica. Indicava um sistema
em que se deveriam sublinhar palavras chaves no texto e associar estas a algum
objeto concreto. Algo como pegar a seguinte frase...
“E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.” – Nietzsche... e transformá-la em figuras. Então eu pego os elementos mais importantes da frase e vou atribuindo objetos para eles: ”E aqueles que foram visto dançando”, penso em uma dançarina; “foram julgados insanos”, lembro-me de alguém em camisa de força; “por aqueles que não podiam escutar música”, imagino um velhinho com uma corneta acústica. Junto as três definições em uma sequência correta e pronto – decorei minha frase.
Não testei o método. Parece que ele pode ser eficaz apenas
em orações curtas, já que em uma longa sequência seria mais difícil de lembrar
dos objetos do que da fala em si. Talvez não tenha o compreendido direito, mas
me interessei pela exposição. Afinal de contas, de modo rudimentar, ele
trabalha com a associação de imagens mentais, ou seja, tendemos a formar um
ambiente completo em nossas cabeças diante de um relato, por exemplo.
Imaginamos uma determinada situação pegando elementos espalhados em nossa
memória, já que não estamos diante do fato descrito, e essa característica nos
permite compreender fatos passados ou longínquos, distantes de nossa presença,
seja física, seja temporal. É como se nossa mente fosse capaz de desenhar as
situações que lhe são apresentadas.
Taí, lembrei de Wittgenstein...
Ludwig Wittgenstein foi um filósofo austríaco que se ocupou
principalmente da linguagem e de sua relação com o mundo ao redor, ou seja, em
sua capacidade de representá-lo. No seu entendimento, os limites do mundo são
idênticos aos da linguagem, porque sem essa identificação não há como se
atribuir significados.
Wittgenstein apresenta-se a nós carregando duas
dificuldades: a primeira é a própria constituição de suas teorias de linguagem,
bastante complexas e herméticas. E a segunda é o fato de que ele é seu
principal crítico. Ele mesmo se encarregou de destruir suas teses. Por isso,
falamos em um primeiro e em um segundo Wittgenstein. Para não tornar este texto
muito longo e sacal, vamos nos dedicar mais ao primeiro. Vamos apenas pincelar
o segundo, e tratar dele com mais profundidade em momento oportuno. Andiamo.
O processo de funcionamento da linguagem, para nosso caro
austríaco, possuía um encadeamento lógico semelhante ao que acontece com a
própria realidade. Mais ou menos assim: Temos uma cidade física, e temos sua
representação, que é um mapa. A ideia do mapa é transpor em dimensões
manuseáveis algo que é muito maior que ele próprio – a área da cidade que
representa. Como o mapa segue a mesma
lógica da constituição física da cidade, contendo as ruas, as praças, os
semáforos, as mãos de direção, os pontos turísticos, os meios de transporte, os
serviços públicos e assim por diante, tendo como diferença unicamente a sua escala,
então essa representação é adequada, e por isso conseguimos nos guiar pelas
ruas, vielas e becos através dessa miniaturização. O mesmo se aplica no caso de
uma paisagem que é representada por uma foto; a foto não é a própria paisagem,
mas possui o mesmo esquema lógico: em ambas há o sol, as montanhas, as praias,
as construções, a noção espacial e climática, e assim por diante. Portanto,
através da foto eu consigo refletir adequadamente a paisagem, e posso deduzir
se será um bom lugar para viajar ou se será uma belíssima roubada.
A grande sacada de Wittgenstein é que esse processo se
repete também entre fatos e palavras: é a teoria pictorial da frase, ou teoria
pictórica do significado, dependendo do tradutor. Para ele, a linguagem se
estrutura e se codifica de modo a reproduzir simbolicamente, com a maior
exatidão possível, os entrelaçamentos lógicos do mundo que busca representar.
Então, temos o seguinte: se eu vejo um vagalume na janela, tenho diante de mim
um fato concreto. Para transformar esse fato concreto em linguagem, opero
mentalmente por substituições – vejo aquele bicho com uma luz no traseiro e
aplico-lhe um nome: vagalume. Também observo a estrutura montada na parede e a
nomeio “janela”, e assim sucessivamente. Ao cabo do processo, tenho uma
situação totalmente codificada em palavras, e estas palavras conseguem fazer
com que se desenhe mentalmente todo esse quadro. Se eu digo a alguém que vi um
vagalume na janela, essa pessoa consegue também ela desenhar mentalmente essa
paisagem, mesmo que não a presencie. Exatamente porque a linguagem possui a
mesma estrutura lógica do fato.A frase é, portanto, algo como a miniatura do fato, da mesma forma que o mapa é a miniatura da cidade, e a foto é a miniatura da paisagem. Uma palavra não diz; uma palavra mostra. Essa é a chave da teoria de Wittgenstein. Absolutamente sensacional.
(Achei então que, tendo isso em mente, conseguiria um pouco mais de facilidade para decorar textos, sendo que a linguagem é a descrição de fatos. Na verdade, essa memorização exige uma leitura completa, para estabelecer os contextos que rodeiam tais fatos e sua correta pontuação e enfatização. É necessário que haja o maior número possível de elementos para que as palavras possam desenhar o quadro completo, e a cada nova leitura é possível agregar novas nuances. Claro que há fatos mais marcantes que outros, e isso facilita deveras a memorização. É como observar a sua sala de casa. Há nela um sofá, uma televisão e um quadro na parede. Este sofá pode estar arrumado ou bagunçado; a televisão pode estar ligada ou desligada; o quadro pode estar um pouquinho torto ou perfeitamente reto. São circunstâncias prosaicas, que não afetam nossa percepção. Se quando acordo o sofá está arrumado e à noite bagunçado, provavelmente terei dificuldade de perceber a mudança. Agora, se por ventura o sofá não estiver mais lá, aí sim perceberei a alteração e lembrarei com facilidade que ele estava presente pela manhã. Se houver um quadro novo, é a mesma coisa. Se a televisão cair em cima de mim quando eu passar, mais ainda me darei conta de sua presença. A existência desses objetos são fatos, basta que eu os marque bem para otimizar minha recordação. Talvez isso possa me ajudar na decoreba).
Se parássemos por aí, teríamos uma bela descrição do
funcionamento da linguagem. Só que a filosofia de Wittgenstein é muitíssimo
mais complexa. Não é qualquer frase, nem qualquer ideia que pode ser aplicada à
teoria pictórica do significado. Somente às proposições essa regra pode ser
aplicada. Vamos trocar em miúdos.
O que é uma proposição? É a descrição de um fato. Não
importa se ele é verdadeiro ou falso. O que importa em uma proposição é que ela
declare algo sobre alguma coisa. Um exemplinho: “Este texto é longo”. Nesta
frase, podemos concluir que há verdade ou falsidade, atribuindo-lhe um valor.
Ou seja, se é possível afirmar que uma declaração é verdadeira ou falsa,
podemos chamá-la de proposição. Além disso, uma proposição não tem meios-termos
– ou ela é verdadeira, ou é falsa. Não há um terceiro status.
Como a qualquer fato existe uma correspondência linguística
com uma proposição, Wittgenstein entende que a totalidade das proposições
verdadeiras corresponde à totalidade da ciência natural. As proposições vão se
entrelaçando umas nas outras, tornando-se cada vez mais complexas, da mesma
forma que o desenrolar dos fatos vão se ampliando cada vez mais. Os limites da
linguagem, por extensão, são os limites do mundo. Isso se torna um grande
problema quando saímos da esfera empírica e científica e tentamos mergulhar em
questões como a ética, a estética e a religião. Como pode, por exemplo, a
linguagem dar conta de algo que não possui correspondência com um objeto a ser
descrito? Para ele, todas essas questões são absurdas. E o que é mais
interessante: não são absurdas porque não existem, mas porque a linguagem não
dá conta de representá-las. Por isso, sua famosa frase: “Sobre o que não se
pode falar, deve-se calar”.
Há ainda outro aspecto. O nome dos objetos, as perguntas e
as frases imperativas não são proposições. Os nomes sozinhos não conseguem
compor uma asserção completa. Se eu digo “futebol”, não estou dizendo nada de
significativo; se digo “gosto de futebol”, aí sim há algo a ser analisado. As
perguntas também não possuem sentido lógico, já que elas nada afirmam sobre um
fato, apenas levantam um questionamento. Já as orações do modo imperativo
exprimem pedidos, ordens, conselhos, e não podem ser tomadas com valor de
verdade ou falsidade. Se eu digo, por exemplo: “Por favor, apague a luz”. Há
como atribuir um valor de verdade para essa frase? A resposta é não. É um
pedido que pode ou não ser atendido, mas é absurdo dizer se meu pedido é
verdadeiro ou falso. Isso porque não é possível reduzi-lo a uma fórmula lógica.
Em sua segunda filosofia, Wittgenstein assume uma postura
crítica com relação às suas deduções descritas no Tractatus. Diz que se encontrava em completo engano, e que sua
tentativa de descrever a linguagem estava fadada ao fracasso, principalmente
por haver descoberto que não existia apenas uma linguagem, mas um conglomerado
delas, que se relacionam na forma de jogos. Mas esse é tema, como falei
anteriormente, para outro texto.
Recomendação de leitura:
O Tractatus é a
grande obra do Wittgenstein da primeira cepa, do qual falamos neste texto. É um
livro curto e intrincado, mas, se bem compreendido, encantador.
WITTGENSTEIN,
Ludwig. Tractatus logico-philosophicus.
São Paulo: Edusp, 2001.
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