Olá!
Sejam
bem vindos, crianças e nem tanto. Está muito frio nos últimos dias, como há
muito não fazia, e as ameaças recentes de dengue, chikungunya e zika
arrefeceram, depois de se revelarem assustadoras. Isso porque se há um outono
para nos enrijecer as articulações, também para o malvadão aedes aegypti o fenômeno climático traz suas afetações. Fato é que
as doenças típicas de inverno são outras e tomaram a dianteira, especialmente a
malfazeja gripe H1N1, outrora chamada de “gripe suína”, pelo óbvio motivo de
que surgiu primeiramente em porcos. É causada por uma variação do vírus
influenza, e seus sintomas iniciais são semelhantes aos de uma gripe comum – só
que bem mais profundos. O grande busílis desta cepa de vírus é que ela abre as
portas para problemas mais graves, como a pneumonia e falência respiratória,
além de agravar as complicações decorrentes de doenças crônicas, como a
diabetes (ai, ai, ai). O resultado geral é o desespero da população, que passa
a correr atrás da vacina enlouquecidamente, a ponto de lotar e causar filas de
horas em clínicas particulares, como bem pudemos observar este ano.
Por
certo que os governos nos três níveis foram considerados culpados na demora
pela distribuição das vacinas, ao menos para as camadas da população mais
vulneráveis. Mas, como já soltei nos meus dez mandamentos do raciocínio
político, algumas vezes os governos são espantalhos onde despejamos nossas
frustrações, o que nem sempre tem correspondência com a realidade. Percebam,
por exemplo, que os governos não podem agir na base da compulsividade, e há um
calendário a ser seguido – e um orçamento a ser respeitado. Além disso, a gripe
H1N1 é de ocorrência rara, muito embora, pela sua gravidade, pareça estar escondida
atrás do muro de cada esquina, pronta para nos assaltar a carteira de nossa
saúde.
Este é
um pequeno exemplo de uma grande paranoia fomentada irracionalmente. As pessoas
têm tanto medo de morrer que acabam agindo no impulso, gastando tempo e
dinheiro que têm e que não têm para tentar se livrar do perigo. Quanto a mim, o
irracional medo de agulhas leva a raciocinar sobre a ponderada necessidade de
se vacinar, e acabo não tendo pressa em gastar os R$ 200,00 em uma clínica.
Quando chegou o momento de me vacinar na rede pública, peguei uma belíssima
gripe, o que acabou por me contraindicar a aplicação. São as voltas que a vida
dá.
Mas
qual é o combustível que nos alimenta esse desespero irracional? Talvez parte da
resposta esteja na heurística. Vamos tentar entender o que é isso.
Heurística
é uma palavra de origem grega que tem a mesma fonte da exclamação “eureca”, tão
comumente atribuída aos gênios quando matam suas charadas. Uma narrativa que
flutua entre o tradicional e o lendário atribui o primeiro uso do termo a
Arquimedes, físico grego que viveu no século III a.C. Por essa época, o rei
Heiron II lançou-lhe um desafio: descobrir se sua coroa era de ouro puro ou se
havia algum outro material menos nobre a lhe ferir a dignidade metálica. O
problema era muito difícil de resolver, porque a coroa não poderia ser
danificada para se obter resposta. Para medir sua densidade e compará-la a
igual parte de ouro sabidamente puro, seria necessário derretê-la. Arquimedes
ficou remoendo uma solução, e, seja para relaxar, seja para esconjurar o fedor,
foi deitar-se em uma banheira. Ao fazê-lo, deu-se conta de que, na medida em
que pousava seu corpo na água, a mesma se elevava em seu nível. Pôs a cachola a
pensar no seguinte: se um corpo humano faz o nível da água subir na banheira,
outro objeto fará o mesmo. Se este objeto for a coroa do rei, elevará a água a
um nível específico. Depois, bastará colocar na banheira a mesma quantidade de
ouro puro e medir novamente o nível. Se ambos forem iguais, a coroa é de ouro
castiço. Eureca!!!
E saiu
gritando peladão pelas ruas de Siracusa, uma Godiva sem cavalo, uma Katia
Flávia sem Irajá. Eureca significa “achei”, “encontrei”, “descobri”, coisa que
o valha.
A
heurística também se baseia nesta arte do encontro e descoberta. Estudada pelo
economista Daniel Kahneman e pelo psicólogo Amos Tversky, ambos israelenses, no
âmbito do comportamento irracional diante das flutuações econômicas, pode ser
definida como uma espécie de caminho mais curto para dar resposta a um
problema, diante da necessidade imediata de fazê-lo. Lembro-me bem dos exemplos
vindos dos aplicativos antivírus. Como se bem sabe, desde meados da década de
80, os vírus de computadores nos perturbam, às vezes simplesmente jocosos,
outras vezes tornando nossas máquinas lentas, estragando nossos dados,
formatando nossos discos, embaralhando nossos textos e, mais recentemente,
roubando nossas informações. A luta contra essas ações se dá na mesma perspectiva
de uma vacinação real, ou seja, primeiro a doença acontece, depois se cria a
profilaxia. Nesta lógica, algum estrago já foi feito antes da solução. O que
fazer para reverter ou amenizar a situação?
Os
fabricantes de antivírus pensaram no seguinte: há uma espécie de padrão no
código malicioso dos vírus. Afinal de contas, para estragar dados, é preciso
acessá-los de alguma forma. O mesmo para formatar discos e outras misérias
que-tais. Assim, qualquer coisa que se tente instalar no computador é
supervisionada pelo antivírus, que tenta encontrar o tal padrão malicioso.
Desse jeito, muitos vírus novos são reconhecidos antes mesmo de fazerem parte
da lista de prevenção.
Só que
isso, apesar de muito engenhoso, traz dificuldades. Um sistema qualquer que
tenha códigos semelhantes a um vírus é igualmente barrado. Além disso, o
processo que faz a leitura heurística torna o fluxo de informações mais lento,
depreciando o funcionamento geral do equipamento. E dá-lhe xingar o pessoal da
informática...
Sim, o
processo heurístico é sujeito a erros, não somente no contexto computacional,
mas também em nossa mente. Conforme descobriram Kahneman e Tversky, o cérebro
possui a tendência de tentar resolver problemas complexos com soluções simples.
Isso é particularmente útil quando precisamos tomar decisões rápidas, quando
não há tempo a perder. Suponha que você tem uma firminha qualquer e precise pagar
seus funcionários. Suponha ainda que não há rede disponível para você fazer os
depósitos via internet. O que você faz antes de iniciar a greve? Ora, vai ao
caixa e paga a galera com dinheiro vivo. Essa é a decisão acertada? Nem sempre.
Você vai ter um certo trabalho para ajustar o fluxo de seu sistema, vai ter que
sacar o dinheiro para repor o caixa, talvez você fique com indisponibilidade
monetária para outros pagamentos, vai perder o dinheiro das tarifas do serviço
bancário, vai arriscar seus funcionários com dinheiro no bolso nesta cidade
indômita. Mas o fato é que você resolveu
seu problema imediato. Por isso a heurística existe.
Mas já
deu para perceber como esta é uma característica balouçante, não é verdade? É
aquela velha história de se ter uma resposta imediata para tudo, muitas vezes
sem passar pelo crivo da razão e sem a humildade de falar “não sei” (vide a
falácia do Deus das lacunas). Um bom exemplo é quando somos confrontados
com perguntas de grande extensão. Se perguntamos qual a solução para o problema
da falta de habitação, algo muito geral e complicado, que demanda estudos e
pesquisas, tendemos a interpor nossa posição pessoal no momento em que se
levanta o questionamento. E daí nascem barbaridades mal pensadas. Se somos
donos de várias casas, podemos responder que a solução é tirar direitos de quem
já não tem nada, e que a rua é suficientemente grande para que o pessoal habite
nela. Se estamos do outro lado, nossa resposta pode ser tomar de quem tem, e
destruir o que sobrar, sob paus e pedras. A perguntar heurística, portanto, é:
“Como o problema me afeta?”. E não traz grandes soluções, como pudemos observar
acima.
Excluída
a racionalidade, percebemos que a resposta imediata tem algo que a puxa, que a
pressiona, que a dirige, que lhe dá algum tipo de orientação. Essa coisa é o
que chamamos de viés. Talvez seja
muito mais corriqueiro o termo bias,
que serve tanto para o inglês quanto para outras línguas, mas vou optar pela
língua pátria. Esses vieses, nos estudos dos autores em tela, têm três
categorias:
Representatividade: temos uma tendência em agrupar os indivíduos de
acordo com um conjunto de características que os constituem, e este conjunto
forma uma representação que permite uma identificação rápida. Desta forma, ao
observar um contribuinte qualquer, conseguimos imediatamente verificar algumas
similaridades com um determinado grupo que faz com que nosso julgamento siga
uma probabilidade. Por exemplo: vemos um negro e já o encaixamos no grupo de
afrodescendentes; vemos uma mulher de olhos estreitos e supomos sua ascendência
oriental, e vemos uma criança toda suja e rasgada e imediatamente a associamos
a um menor abandonado. Mas há erros na probabilidade. Frisando bem – algo
provável não é necessariamente transformado em realidade. Então imaginemos um
indivíduo desdentado, de pouca cultura, com o registro de alguns antecedentes
criminais, cuja única distração seja o futebol. Paulistano: é um corinthiano,
certo? Carioca: é um flamenguista, confere? Se você respondeu que sim, usou o
viés de representatividade. O conjunto de características acima representa um
determinado conceito, mas não há informações suficientes para determinar o time
do gajo mencionado, se é que existe algum. Estes modelos de probabilidade não
se aplicam indistintamente a qualquer membro de um grupo que seja objeto de um
estereótipo, palavra grega que significa “impressão sólida”. Os estereótipos
são construções de paradigmas que nem sempre são reflexos do mundo real. No
mais das vezes, são construções culturais, que mistificam um grupo sem muito
critério e que desconsideram a individualidade de cada um. E, sim, são sementes
de preconceito. Férteis.
Disponibilidade:
Nessa variação da heurística, temos a tendência em utilizar informações
abundantes para realizar nossos julgamentos e fornecer respostas. Aqui,
recolhemos dados frequentes obtidos através de nossa experiência e os aplicamos
a uma situação qualquer. Recorrendo a outro exemplo futebolístico, podemos
dizer que teremos a tendência em apostar nos times que ganharam mais títulos
nos últimos tempos para que também vençam os torneios atuais. Portanto,
apostaríamos em Barcelona ou Real Madrid para o campeonato espanhol; Juventus,
Milan ou Internazionale para o campeonato italiano; Manchester United, Manchester
City ou Chelsea para a Liga Inglesa, e já aqui achamos o furo: o mais recente
campeão inglês é o improvável Leicester, a quem a crítica esportiva considera
como uma espécie de Chapecoense inglesa, sem nenhuma intenção de desrespeito à
equipe catarinense. O viés de disponibilidade, portanto, é baseado em uma
probabilidade de repetição dos resultados que temos armazenados em nosso
equipamento cognitivo, sem reunir melhores elementos para fundamentar nosso
julgamento.
Ancoragem:
neste caso, o viés é dado por um referencial preexistente, que persiste em ser
mantido preso mesmo quando há possibilidade de ajuste. Mais uma vez com o
futebol: se eu não entendo absolutamente nada do jogo, procuro algum tipo de
referência com quem entende. Se capto a ideia de que um centroavante é
necessário para o desempenho do jogo, tenderei a achar que há algo de errado
quando eu não vir aquele grandalhão parado na área, aguardando para trombar com
os zagueiros e escorar as bolas na direção do gol. Ora, é perfeitamente
possível um esquema tático prescindir de um centroavante, mas meu ajuste a essa
situação será difícil. Perguntarei quem fará seu papel, como poderemos obter
gols com atacantes baixinhos, quem enfrentará de igual para igual a linha de defesa
do adversário, e terei a compulsão em sempre insistir em somente aceitar
formações com um número 9 fixo.
E é
exatamente aqui que vai entrar o pequeno guia. Como os vieses heurísticos
produzem os desvios mencionados até aqui, podemos inferir que são argumentos
falaciosos. A heurística tem sua matéria-prima, como pudemos ver até agora, em
julgamentos rápidos, que dispensem grandes elucubrações mentais. Obviamente,
não há aporte cognitivo suficiente para se saber de tudo, portanto é
razoavelmente compreensível que façamos tentativas baseadas na probabilidade, e
que reputemos que semelhança é identificação. Só que não.
Como é
possível perceber, há uma grande influência de elementos externos ao argumento
para a utilização da heurística. Quando não sabemos de algo e caçamos um
referencial, sem dúvida que, quanto maior a quantidade de repetições e de ênfase
em algo que identificamos ao nosso redor, maior será uma influência causada na
nossa resposta. Pode ser no boca-a-boca, pode ser nos livros, pode ser nos
objetos que estão colocados no ambiente, mas é sem dúvida na mídia que está o
principal mecanismo de disseminação de referenciais.
Imagine
que em todo jornal que você leia, toda rádio que você escute e toda televisão
que você assista está inserido o mantra: “Estamos em crise, estamos em crise,
estamos em crise...”. Se alguém perguntar a você em qual situação que se
encontra o país, você dirá: “Estamos em crise”. A utilização de assuntos que
estão em grande destaque da mídia, repetidos heuristicamente, é chamado pelo
simpático nome de falácia do Refletor ou Holofote.
Não há
dúvida que o uso de informações que estão sob os holofotes não é um
procedimento falacioso em si mesmo. Usando o exemplo, é perfeitamente possível
dizer que estejamos em crise, mas isso não está acontecendo porque a mídia dá
destaque, mas sim porque há desalinhamentos nas contas, excesso de emissão de
moeda, índices crescentes de desemprego, ou outros motivos. Ou seja, a causa da
crise é o contexto econômico e político, não a divulgação na mídia. É, portanto, um desvio de relevância.
(Podemos
até discutir sobre a influência da mídia na produção de crises, o que tem sido
posto em discussão nos últimos tempos – com razão. Mas não será agora).
Outra
maneira de se usar a falácia do refletor consiste em julgar uma determinada
classe de pessoas pelos seus membros mais destacados. Ou de objetos também,
para o bem e para o mal. Digo que todos os refrigerantes fazem mal, baseado no
conhecimento de que aquela famosa marca com garrafa sinuosa causa danos à
saúde. Penso que um islâmico será sempre violento, dada a divulgação maciça de
atos terroristas. Nesse sentido, há semelhança com a falácia da má companhia
e com o apelo à maioria, com a diferença de que, nestes últimos casos, há independência
com relação ao meio pelo qual o preconceito se dissemina.
Para
arrematar, podemos agora fechar o círculo e compreender o porquê da caça
desesperada pelas vacinas contra a gripe: uma combinação sórdida de
conhecimento obtido acriticamente com a necessidade de uma ação rápida. Pois é,
a pressa é inimiga não só da perfeição, mas também da lógica.
Recomendação de leitura:
O
livro abaixo é de Daniel Kahneman, mas em seu interior está contido o artigo “Julgamentos
sob incertezas: heurísticas e vieses”, que é de autoria também de Tversky, e é a
base com a qual esta tese foi construída.
KAHNEMAN,
Daniel. Rápido e devagar. Duas formas
de pensar. São Paulo: Objetiva, 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário