Marcadores

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Heurística, o caminho para respostas rápidas e para áreas pantanosas (Pequeno guia das grandes falácias - 27º tomo: o Refletor)

Olá!


Sejam bem vindos, crianças e nem tanto. Está muito frio nos últimos dias, como há muito não fazia, e as ameaças recentes de dengue, chikungunya e zika arrefeceram, depois de se revelarem assustadoras. Isso porque se há um outono para nos enrijecer as articulações, também para o malvadão aedes aegypti o fenômeno climático traz suas afetações. Fato é que as doenças típicas de inverno são outras e tomaram a dianteira, especialmente a malfazeja gripe H1N1, outrora chamada de “gripe suína”, pelo óbvio motivo de que surgiu primeiramente em porcos. É causada por uma variação do vírus influenza, e seus sintomas iniciais são semelhantes aos de uma gripe comum – só que bem mais profundos. O grande busílis desta cepa de vírus é que ela abre as portas para problemas mais graves, como a pneumonia e falência respiratória, além de agravar as complicações decorrentes de doenças crônicas, como a diabetes (ai, ai, ai). O resultado geral é o desespero da população, que passa a correr atrás da vacina enlouquecidamente, a ponto de lotar e causar filas de horas em clínicas particulares, como bem pudemos observar este ano.

Por certo que os governos nos três níveis foram considerados culpados na demora pela distribuição das vacinas, ao menos para as camadas da população mais vulneráveis. Mas, como já soltei nos meus dez mandamentos do raciocínio político, algumas vezes os governos são espantalhos onde despejamos nossas frustrações, o que nem sempre tem correspondência com a realidade. Percebam, por exemplo, que os governos não podem agir na base da compulsividade, e há um calendário a ser seguido – e um orçamento a ser respeitado. Além disso, a gripe H1N1 é de ocorrência rara, muito embora, pela sua gravidade, pareça estar escondida atrás do muro de cada esquina, pronta para nos assaltar a carteira de nossa saúde.

Este é um pequeno exemplo de uma grande paranoia fomentada irracionalmente. As pessoas têm tanto medo de morrer que acabam agindo no impulso, gastando tempo e dinheiro que têm e que não têm para tentar se livrar do perigo. Quanto a mim, o irracional medo de agulhas leva a raciocinar sobre a ponderada necessidade de se vacinar, e acabo não tendo pressa em gastar os R$ 200,00 em uma clínica. Quando chegou o momento de me vacinar na rede pública, peguei uma belíssima gripe, o que acabou por me contraindicar a aplicação. São as voltas que a vida dá.

Mas qual é o combustível que nos alimenta esse desespero irracional? Talvez parte da resposta esteja na heurística. Vamos tentar entender o que é isso.

Heurística é uma palavra de origem grega que tem a mesma fonte da exclamação “eureca”, tão comumente atribuída aos gênios quando matam suas charadas. Uma narrativa que flutua entre o tradicional e o lendário atribui o primeiro uso do termo a Arquimedes, físico grego que viveu no século III a.C. Por essa época, o rei Heiron II lançou-lhe um desafio: descobrir se sua coroa era de ouro puro ou se havia algum outro material menos nobre a lhe ferir a dignidade metálica. O problema era muito difícil de resolver, porque a coroa não poderia ser danificada para se obter resposta. Para medir sua densidade e compará-la a igual parte de ouro sabidamente puro, seria necessário derretê-la. Arquimedes ficou remoendo uma solução, e, seja para relaxar, seja para esconjurar o fedor, foi deitar-se em uma banheira. Ao fazê-lo, deu-se conta de que, na medida em que pousava seu corpo na água, a mesma se elevava em seu nível. Pôs a cachola a pensar no seguinte: se um corpo humano faz o nível da água subir na banheira, outro objeto fará o mesmo. Se este objeto for a coroa do rei, elevará a água a um nível específico. Depois, bastará colocar na banheira a mesma quantidade de ouro puro e medir novamente o nível. Se ambos forem iguais, a coroa é de ouro castiço. Eureca!!!

E saiu gritando peladão pelas ruas de Siracusa, uma Godiva sem cavalo, uma Katia Flávia sem Irajá. Eureca significa “achei”, “encontrei”, “descobri”, coisa que o valha.

A heurística também se baseia nesta arte do encontro e descoberta. Estudada pelo economista Daniel Kahneman e pelo psicólogo Amos Tversky, ambos israelenses, no âmbito do comportamento irracional diante das flutuações econômicas, pode ser definida como uma espécie de caminho mais curto para dar resposta a um problema, diante da necessidade imediata de fazê-lo. Lembro-me bem dos exemplos vindos dos aplicativos antivírus. Como se bem sabe, desde meados da década de 80, os vírus de computadores nos perturbam, às vezes simplesmente jocosos, outras vezes tornando nossas máquinas lentas, estragando nossos dados, formatando nossos discos, embaralhando nossos textos e, mais recentemente, roubando nossas informações. A luta contra essas ações se dá na mesma perspectiva de uma vacinação real, ou seja, primeiro a doença acontece, depois se cria a profilaxia. Nesta lógica, algum estrago já foi feito antes da solução. O que fazer para reverter ou amenizar a situação?

Os fabricantes de antivírus pensaram no seguinte: há uma espécie de padrão no código malicioso dos vírus. Afinal de contas, para estragar dados, é preciso acessá-los de alguma forma. O mesmo para formatar discos e outras misérias que-tais. Assim, qualquer coisa que se tente instalar no computador é supervisionada pelo antivírus, que tenta encontrar o tal padrão malicioso. Desse jeito, muitos vírus novos são reconhecidos antes mesmo de fazerem parte da lista de prevenção.

Só que isso, apesar de muito engenhoso, traz dificuldades. Um sistema qualquer que tenha códigos semelhantes a um vírus é igualmente barrado. Além disso, o processo que faz a leitura heurística torna o fluxo de informações mais lento, depreciando o funcionamento geral do equipamento. E dá-lhe xingar o pessoal da informática...

Sim, o processo heurístico é sujeito a erros, não somente no contexto computacional, mas também em nossa mente. Conforme descobriram Kahneman e Tversky, o cérebro possui a tendência de tentar resolver problemas complexos com soluções simples. Isso é particularmente útil quando precisamos tomar decisões rápidas, quando não há tempo a perder. Suponha que você tem uma firminha qualquer e precise pagar seus funcionários. Suponha ainda que não há rede disponível para você fazer os depósitos via internet. O que você faz antes de iniciar a greve? Ora, vai ao caixa e paga a galera com dinheiro vivo. Essa é a decisão acertada? Nem sempre. Você vai ter um certo trabalho para ajustar o fluxo de seu sistema, vai ter que sacar o dinheiro para repor o caixa, talvez você fique com indisponibilidade monetária para outros pagamentos, vai perder o dinheiro das tarifas do serviço bancário, vai arriscar seus funcionários com dinheiro no bolso nesta cidade indômita. Mas o fato é que você resolveu seu problema imediato. Por isso a heurística existe.

Mas já deu para perceber como esta é uma característica balouçante, não é verdade? É aquela velha história de se ter uma resposta imediata para tudo, muitas vezes sem passar pelo crivo da razão e sem a humildade de falar “não sei” (vide a falácia do Deus das lacunas). Um bom exemplo é quando somos confrontados com perguntas de grande extensão. Se perguntamos qual a solução para o problema da falta de habitação, algo muito geral e complicado, que demanda estudos e pesquisas, tendemos a interpor nossa posição pessoal no momento em que se levanta o questionamento. E daí nascem barbaridades mal pensadas. Se somos donos de várias casas, podemos responder que a solução é tirar direitos de quem já não tem nada, e que a rua é suficientemente grande para que o pessoal habite nela. Se estamos do outro lado, nossa resposta pode ser tomar de quem tem, e destruir o que sobrar, sob paus e pedras. A perguntar heurística, portanto, é: “Como o problema me afeta?”. E não traz grandes soluções, como pudemos observar acima.

Excluída a racionalidade, percebemos que a resposta imediata tem algo que a puxa, que a pressiona, que a dirige, que lhe dá algum tipo de orientação. Essa coisa é o que chamamos de viés. Talvez seja muito mais corriqueiro o termo bias, que serve tanto para o inglês quanto para outras línguas, mas vou optar pela língua pátria. Esses vieses, nos estudos dos autores em tela, têm três categorias:

Representatividade: temos uma tendência em agrupar os indivíduos de acordo com um conjunto de características que os constituem, e este conjunto forma uma representação que permite uma identificação rápida. Desta forma, ao observar um contribuinte qualquer, conseguimos imediatamente verificar algumas similaridades com um determinado grupo que faz com que nosso julgamento siga uma probabilidade. Por exemplo: vemos um negro e já o encaixamos no grupo de afrodescendentes; vemos uma mulher de olhos estreitos e supomos sua ascendência oriental, e vemos uma criança toda suja e rasgada e imediatamente a associamos a um menor abandonado. Mas há erros na probabilidade. Frisando bem – algo provável não é necessariamente transformado em realidade. Então imaginemos um indivíduo desdentado, de pouca cultura, com o registro de alguns antecedentes criminais, cuja única distração seja o futebol. Paulistano: é um corinthiano, certo? Carioca: é um flamenguista, confere? Se você respondeu que sim, usou o viés de representatividade. O conjunto de características acima representa um determinado conceito, mas não há informações suficientes para determinar o time do gajo mencionado, se é que existe algum. Estes modelos de probabilidade não se aplicam indistintamente a qualquer membro de um grupo que seja objeto de um estereótipo, palavra grega que significa “impressão sólida”. Os estereótipos são construções de paradigmas que nem sempre são reflexos do mundo real. No mais das vezes, são construções culturais, que mistificam um grupo sem muito critério e que desconsideram a individualidade de cada um. E, sim, são sementes de preconceito. Férteis.

Disponibilidade: Nessa variação da heurística, temos a tendência em utilizar informações abundantes para realizar nossos julgamentos e fornecer respostas. Aqui, recolhemos dados frequentes obtidos através de nossa experiência e os aplicamos a uma situação qualquer. Recorrendo a outro exemplo futebolístico, podemos dizer que teremos a tendência em apostar nos times que ganharam mais títulos nos últimos tempos para que também vençam os torneios atuais. Portanto, apostaríamos em Barcelona ou Real Madrid para o campeonato espanhol; Juventus, Milan ou Internazionale para o campeonato italiano; Manchester United, Manchester City ou Chelsea para a Liga Inglesa, e já aqui achamos o furo: o mais recente campeão inglês é o improvável Leicester, a quem a crítica esportiva considera como uma espécie de Chapecoense inglesa, sem nenhuma intenção de desrespeito à equipe catarinense. O viés de disponibilidade, portanto, é baseado em uma probabilidade de repetição dos resultados que temos armazenados em nosso equipamento cognitivo, sem reunir melhores elementos para fundamentar nosso julgamento.

Ancoragem: neste caso, o viés é dado por um referencial preexistente, que persiste em ser mantido preso mesmo quando há possibilidade de ajuste. Mais uma vez com o futebol: se eu não entendo absolutamente nada do jogo, procuro algum tipo de referência com quem entende. Se capto a ideia de que um centroavante é necessário para o desempenho do jogo, tenderei a achar que há algo de errado quando eu não vir aquele grandalhão parado na área, aguardando para trombar com os zagueiros e escorar as bolas na direção do gol. Ora, é perfeitamente possível um esquema tático prescindir de um centroavante, mas meu ajuste a essa situação será difícil. Perguntarei quem fará seu papel, como poderemos obter gols com atacantes baixinhos, quem enfrentará de igual para igual a linha de defesa do adversário, e terei a compulsão em sempre insistir em somente aceitar formações com um número 9 fixo.

E é exatamente aqui que vai entrar o pequeno guia. Como os vieses heurísticos produzem os desvios mencionados até aqui, podemos inferir que são argumentos falaciosos. A heurística tem sua matéria-prima, como pudemos ver até agora, em julgamentos rápidos, que dispensem grandes elucubrações mentais. Obviamente, não há aporte cognitivo suficiente para se saber de tudo, portanto é razoavelmente compreensível que façamos tentativas baseadas na probabilidade, e que reputemos que semelhança é identificação. Só que não.

Como é possível perceber, há uma grande influência de elementos externos ao argumento para a utilização da heurística. Quando não sabemos de algo e caçamos um referencial, sem dúvida que, quanto maior a quantidade de repetições e de ênfase em algo que identificamos ao nosso redor, maior será uma influência causada na nossa resposta. Pode ser no boca-a-boca, pode ser nos livros, pode ser nos objetos que estão colocados no ambiente, mas é sem dúvida na mídia que está o principal mecanismo de disseminação de referenciais.

Imagine que em todo jornal que você leia, toda rádio que você escute e toda televisão que você assista está inserido o mantra: “Estamos em crise, estamos em crise, estamos em crise...”. Se alguém perguntar a você em qual situação que se encontra o país, você dirá: “Estamos em crise”. A utilização de assuntos que estão em grande destaque da mídia, repetidos heuristicamente, é chamado pelo simpático nome de falácia do Refletor ou Holofote.

Um destaque exagerado costuma influir na nossa capacidade de decisão

Não há dúvida que o uso de informações que estão sob os holofotes não é um procedimento falacioso em si mesmo. Usando o exemplo, é perfeitamente possível dizer que estejamos em crise, mas isso não está acontecendo porque a mídia dá destaque, mas sim porque há desalinhamentos nas contas, excesso de emissão de moeda, índices crescentes de desemprego, ou outros motivos. Ou seja, a causa da crise é o contexto econômico e político, não a divulgação na mídia. É, portanto, um desvio de relevância.

(Podemos até discutir sobre a influência da mídia na produção de crises, o que tem sido posto em discussão nos últimos tempos – com razão. Mas não será agora).

Outra maneira de se usar a falácia do refletor consiste em julgar uma determinada classe de pessoas pelos seus membros mais destacados. Ou de objetos também, para o bem e para o mal. Digo que todos os refrigerantes fazem mal, baseado no conhecimento de que aquela famosa marca com garrafa sinuosa causa danos à saúde. Penso que um islâmico será sempre violento, dada a divulgação maciça de atos terroristas. Nesse sentido, há semelhança com a falácia da má companhia e com o apelo à maioria, com a diferença de que, nestes últimos casos, há independência com relação ao meio pelo qual o preconceito se dissemina.

Para arrematar, podemos agora fechar o círculo e compreender o porquê da caça desesperada pelas vacinas contra a gripe: uma combinação sórdida de conhecimento obtido acriticamente com a necessidade de uma ação rápida. Pois é, a pressa é inimiga não só da perfeição, mas também da lógica.

Recomendação de leitura:

O livro abaixo é de Daniel Kahneman, mas em seu interior está contido o artigo “Julgamentos sob incertezas: heurísticas e vieses”, que é de autoria também de Tversky, e é a base com a qual esta tese foi construída.

KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar. Duas formas de pensar. São Paulo: Objetiva, 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário