Olá!
Como já falei nos outros textos desta epopeia, tivemos em
Santo Antonio do Pinhal um pouso seguro. Em outras viagens, procurávamos portos
ao sabor do vento, mas o preço atrativo e a posição central em relação ao mapa de
nossas pretensões fizeram com que fechássemos questão sobre hospedagem. Claro
que essa atitude fez com que muitas idas e vindas se desenhassem, e não
partimos para conhecer os recantos desta cidade em um único dia. Portanto,
decidi deixá-la por último, mas não em último (acho que falei isso em algum
lugar por aí).
Pinha, pinheiro, pinhão... Tudo isso dá um pouco de reflexo
sobre o que significa o “pinhal” que guarnece o nome da cidade. Tecnicamente, é
uma determinada extensão de terreno onde são abrigados numerosos pinheiros, na
mesma relação laranjeira-laranjal, bananeira-bananal e outros. Seu produto é o
pinhão, que tem um sem-número de utilidades culinárias, mas que tem seu preparo
mais comum sendo simplesmente cozido com sal. A cidade tem intenso comércio do
acepipe, como pudemos ver em ruas, estradas e estabelecimentos.
O pinhão é tão importante para a economia local que, além de
ajudar-lhe a construir o nome, ajuda-lhe a construir a fama, e tivemos a oportunidade
involuntária de pegar a festa do pinhão realizada na praça do Artesão, como,
aliás, também ocorria na cidade de Campos do Jordão.
O mascote da festa é um simpático pinhãozinho, que deve
fazer a alegria das crianças. Porém, para quem lembra do desenho South Park, há
uma incômoda semelhança com um personagem chamado Soretinho. Aplicar um Google,
no caso, haverá de sanar as dúvidas.
Gracinhas a parte, a festa tem comida e bebida para lamber
os beiços, levando em conta os ingredientes mais usados: pinhão e truta. Além
disso, as seis cervejarias locais armaram uma barraca com suas diversões
etílicas. Abaixo, um cuscuz de truta acompanhado de caldo de feijão e pimenta,
em combinação daquelas que nos faz ainda acreditar na humanidade.
No dia seguinte, fomos até uma estação de trem histórica,
chamada Eugênio Léfebvre, que ainda funciona e que faz ligação turística com
Campos do Jordão. Frustração: é preciso comprar passagem com antecedência de
não sei quantos dias para fazer o passeio (caro). Paciência. Contentamo-nos em
conhecer a gare e seus bolinhos de bacalhau.
Todo o complexo é composto por edificações centenárias, e
que estão quase todas em bom estado de conservação, com a vila ferroviária e
uma subestação de energia. Mesmo as que estão ruins passam por processo de
restauro. Tem a tradicional lojinha de recordações e alguns jardins ao redor.
A linha passa pelo meio da mata local, serpenteando por
altitudes acima de 1000 metros. É uma estrutura típica de trens movidos a
energia elétrica, embora já tenham havido locomotivas e trens a óleo que
operaram por aqui.
O local possui também um mirante, dedicado a Nossa Senhora
Auxiliadora. Uma imagem linda para meu gosto, que reina em meio a quantidades miríficas de borboletas, apontando
para o horizonte que se vê à sua frente.
Que, por sinal, é esse, de onde é possível enxergar um pouco
da fauna urbana da cidade de Pindamonhangaba. O que faz de vento nesse lugar é
coisa para deixar doente quem gosta de empinar pipas – não, não é, o vento é
forte demais.
Novamente à noite, descobrimos uma casinha que serve sopas,
o que é muito adequado para as noites frias de então, em um ambiente do tipo
familiar. Tão familiar que você pode ver até mesmo as sopas e cremes sendo preparados.
Abóbora, palmito, caldo verde... Tomamos de todas. Chama-se Cebola e Salsa, e
recomendo (sem ganhar tostão).
No dia seguinte, fomos visitar o Ecco Parque, por
recomendação da Dona Lúcia, de Monteiro Lobato (vide na 1ª ancoragem destes
relatos). Tratava-se, até não muito tempo atrás, de um morro pelado, totalmente
consumido pela exploração de gado. Os proprietários atuais modificaram-no para
um conjunto de jardins onde se destacam os diversos ambientes temáticos.
Esta cascata de pedras, por exemplo, tem seu material
trazido diretamente de São Thomé das Letras, região de Minas Gerais famosa pelo
aspecto... místico. O ruído da água caindo nas pedras produz um leve cantar,
como se fosse um daqueles mensageiros dos ventos das feirinhas de artesanato.
À medida que se sobe o morro, percebe-se o cuidado com que o
espaço foi engendrado. Além dos jardins em si, há painéis explicativos de cada
um deles e um guia (o Eduardo, no nosso caso) que vai orientando tudo, tim-tim
por tim-tim. Na foto abaixo, por exemplo, temos um jardim de bolhas, técnica
inspirada em modelo inglês.
Outros ambientes apostam mais no universo de cores do que na
composição arquitetônica. A festa é feita por colibris, abelhas, mamangavas e
borboletas, com suprimento de néctar garantido por um bom tempo.
Bem no cume da colina, um gazebo de bambus se propõe a ser
um espaço de reflexão, especialmente voltado para a harmonização entre a
natureza da flora e a construção humana das paisagens. Fica lá no alto, já bem longe
da estrada e cercada de ervas aromáticas. Poderia mostrar aqui muitos outros
jardins, como o japonês, o desértico, as helicônias, mas ia ficar maçante.
Outro dia, outra paisagem. Pouco antes da virada de tempo
que tão tristemente relatei em outros textos desta série, visitamos a cachoeira
do Lageado, situada em bairro de mesmo nome.
Imagino que o nome se deva à quantidade de pedras que fazem
as vezes de platô, onde é possível tomar um bom solzinho para se secar. São
quedas pequenas, que agradam a visão e a pele ansiosa por refresco.
A última queda é expressivamente maior, e, aos seus pés, há
uma boa piscina natural. Estando em uma propriedade particular, cobra-se uma
pequena taxa para uso, com o lado bom de se haver uma estrutura mínima para se
livrar de certos aperreios.
À noite, o tempo virou e esfriou muito. O problema não é o
frio, mas a contínua garoa que produziu muita limitação à visita de espaços
naturais. Mas faz parte. Fomos passear pela cidade, que parece uma Campos do
Jordão em ponto menor, o que tem os seus aspectos positivos. Há fontes que
estão em reforma, como aquela que leva o nome do padroeiro, situada à beira de
um riacho. As ruas da margem dão um certo aspecto de Targa-Florio* a este canto
da cidade.
Também visitamos as igrejas da cidade, para não perder o
costume. Sempre se pode extrair dados históricos e arquitetônicos
interessantes. Em uma das pontas da região urbana, temos a igreja de São
Benedito. Aproveitando do relevo típico da região, dá para ter uma boa vista
dos arredores.
O mesmo se aplica ao morro do Cruzeiro, que possui a cruz
magna do município. Fizeram uma interessante arquitetura de praça, apesar de
estar bem no alto...
... como se pode observar pela vista da praça do Artesão, a
mesma de onde falei que se dava a Festa do Pinhão.
E também tem a igreja matriz, dedicada a (oh!) Santo
Antonio. Além dos habituais anteparos de igrejas do interior (adro com praça,
mastro do divino, etc.), temos aqui também uma fonte luminosa, que fica
festejando os fins de semana e outros dias de folga e de guarda.
No último dia de viagem, uma rápida passagem pela Bodega, um
dos lugares mais famosos de Santo Antonio do Pinhal. Trata-se de um pequeno
complexo que inclui vendas de roupas, artesanatos, plantas, algumas lagoinhas e
bancos para descanso...
... além de muita, mas muita cachaça, como era de se
esperar. São mais de quarenta tipos, incluindo as purinhas, misturas com
frutas, macerações com ervas e até mesmo com pimenta, devidamente advertidas
para uso como tempero. A patroa saiu zonza de lá; eu, motorista, não.
Na última noite antes do nosso regresso, tive um momento de
epifania. Minha esposa foi tomar um banho antes de dormir, como é seu hábito. De
saco cheio da televisão, e sem muita gana de navegar pela internet com o
celular (coisa que detesto), fui curtir um pouco do frio na varandinha do
apartamento que ocupávamos. A foto abaixo é dele, só que tirada durante o dia.
No silêncio da madrugada que se aproximava, e com o frio que
ameaçava rachar meu rosto, achei que deveria fechar tudo e esperar deitado. Mas
um véu de melancolia estranho me tomou antes que eu o fizesse, ao avistar a
iluminação distante do morro em frente a mim. Como se fosse possível naquele
pequeno lapso temporal, tive uma espécie de fuga da minha percepção e me senti
na mais bem-acabada sensação de solidão. Eu sentia-me absolutamente isolado do mundo, como se apenas eu e a aragem gelada estivessem presentes.
Não sei muito bem dizer o que foi isso. Já falei
anteriormente sobre a solidão como doença da linguagem, mas sob outro
viés. Desta vez, a coisa é mais metafísica, quase mística. Meio que lembrei de
tanta coisa que perdi nos últimos tempos: minha mãe, meus padrinhos, meu
compadre. Lembro dos amigos que não cuidei bem, e que sumiram do meu contato.
Lembro dos meus afilhados, como cresceram e como cada um se enveredou pela
vida, todos ao seu modo. Lembro também de quando minhas crianças ainda eram
pequenas, e eu tinha fôlego suficiente para correr atrás de uma bola, ensinar a
andar de bicicleta, jogar maçaneta, pular sela. Aos poucos tudo isso foi indo
parar na arca de minhas memórias. Algumas dessas coisas, evidentemente, nunca
mais sairão de lá; outras, não tenho dimensão exata de como e se poderão ser
revividas. A memória é isso mesmo: um grande baú de ossos, já diria Pedro Nava.
Na verdade, acho que tive um breve encontro com a minha
existência, e, como costuma ocorrer com tanta gente, não consegui compreender
muito bem o sentido de tudo isso. O homem vive um grande drama, como já
postulava o psicólogo humanista norte-americano Rollo May: o de ser sujeito e
objeto ao mesmo tempo. Isso é um papel da autoconsciência, a capacidade humana
de se enxergar a partir de fora – algo como uma alma que sai do corpo para
observá-lo. Só que isso não é uma predisposição espiritual. É um trabalho de
decifrar a si mesmo, constantemente. E não é possível decifrar a própria
existência sem que se tenha a noção de que há um mundo que nos rodeia, no qual
temos um papel. Sim, somos sujeitos, porque é a partir de nossa visão que
conseguimos compreender o mundo; sim, somos objetos, porque NOSSO mundo só é
mundo porque fazemos parte dele.
Teimamos muito em nos reconhecer unicamente como sujeitos
todas as vezes em que projetamos o nosso futuro. É o que os educadores modernos
costumam chamar pelo pomposo nome de protagonismo. Mas quando as coisas não dão
certo como queríamos, temos a tendência de nos sentirmos objetos: do azar, das
maldições, da má vontade universal contra nós. De titeriteiros, passamos a
marionetes, como se não estivéssemos inseridos na mesma relação. Só que não é
nada disso – não há conspirações, apenas somos fadados a determinado destino, sem
que se necessite atribuir isso a uma divindade, mas apenas às contingências das
quais fazemos parte.
Pensando com a cabeça existencialista, temos a necessidade
de ser livres. Isso implica em fazer escolhas por si mesmos até quando não
queremos fazê-lo. Com um agravante: somos responsáveis por nossas escolhas,
pelo que trazem para nós mesmos e para o que isso terá de reflexos para a
família, a comunidade, o país, para o universo inteiro. A personalidade que se
conscientiza disso tem a dimensão chocante da importância de cada um de nossos
atos. E isso é uma máquina de fabricar angústia. Só que isso não é uma coisa de
visionário, maluco ou neurótico. É coisa que atinge a todos.
Ter angústia é, dessa forma, próprio do ser humano. E o
conforto que May nos traz é que não há porque se sentir menores quando
sofremos. O sofrimento faz parte do pacote que “compramos” quando nascemos, e,
se apesar de todas as dores ainda queremos viver, é preciso entender que não há
nenhuma contiguidade entre doença e fracasso. A doença é uma perturbação, uma
desordem, uma limitação em uma normalidade. Se dissabores são encarados como
algo normal, da qual todos somos passíveis, não podem ser equiparados a
moléstias. Nada se perde quando encaramos um problema, e muitas vezes é só no
aparente vazio do insulamento que podemos fazer um reconhecimento das coisas
que nos afligem e como podemos ser resilientes a elas. Ou mesmo reconhecer a
nossa incapacidade de continuar a buscar significado para um universo que não é
mais o nosso.
Ao final, pode-se perder a fé em Deus, a esperança na
humanidade e o amor ao próximo, e se chegar a uma completa e repleta solidão,
onde só estamos nós e nós mesmos. Uma oportunidade de reflexão como nunca
existiu, mas sempre ladeada pela companhia pouco visível de uma depressãozinha
marota, daquelas que tira o restante de significado da vida. Não deixa de ser
uma espécie de preparação para a morte, um tipo de autodefesa que vai nos
afastando da vida, de maneira contraditória... A própria angústia pela vida que
se esvai aos poucos é uma maneira de não encarar o fim com desespero, apenas
tristeza.
Parei de escutar o ruído do chuveiro. Fechei a janela e fui
preparar um chá para tomar com a patroa, acho que dessa vez de camomila.
Recomendações:
Rollo May é um dos principais profetas da psicologia
humanista-existencialista, abordagem que enfrentou o mecanicismo dos behavioristas
e o imperativo do inconsciente dos psicanalistas. Desta forma, é uma escola que
costuma dar muita voz ao próprio sujeito da análise, e, como o próprio May
dizia, o sofrimento não é doença, o que tira o aspecto patológico da análise. Recomendo
a obra abaixo:
MAY, Rollo. O homem a
procura de si mesmo. São Paulo: Vozes, 2002.
Também tem um vídeo. É um vídeo institucional. Portanto, só espere ver belezas e
guloseimas. Mas chamou-me atenção pela beleza e singeleza da música que lhe faz
fundo. Vale a pena fazer uma pequena audição.
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