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quinta-feira, 4 de julho de 2019

Pequeno guia das grandes falácias – 45º tomo: dois erros fazem um acerto (e meus pitacos automobilísticos)

Olá!


Para quebrar um pouco do hábito desta casa, este texto será mais curto, sem as consuetas cinco ou seis laudas. Isso não significa que não terá suas historinhas, já que contexto é tudo na vida de quem argumenta. Vamos lá?

Domingo passado pela manhã, fui dar asas mais uma vez à minha verve automobilística. Como já discorri recentemente, neste texto, desde bem jovem peguei o gosto pela coisa, e a ausência de um piloto brasileiro não me incomoda em nada. Afinal, não ligo a TV propriamente para torcer por alguém específico, mas para apreciar a sutil beleza do esporte. E esta última corrida, o GP da Áustria de Fórmula 1, foi um evento de gala, daqueles de presenciar de fraque e cartola. Uma atuação soberba do jovem piloto Max Verstappen, arrojado ao extremo, que, a bordo de sua improvável Red Bull, veio galgando posições e engolindo seus melhores munidos adversários, até chegar a uma apoteótica ultrapassagem sobre o novel Charles Leclerc, com direito a toque de rodas e saídas de pista. Uma saga de tirar o fôlego.

Literalmente. Sabe quando você tem a aplicação prática de uma expressão idiomática qualquer? No final da aventura, quando voltei a tomar consciência de mim mesmo, dei-me conta do pulso acelerado. Certa feita, fiz uma experiência pretensamente científica. No final do campeonato paulista de 2018, tivemos um Corinthians X Palmeiras decidido nos pênaltis (estou com uma camisa do Corinthians neste momento, coincidentemente aquele modelo Senna). O que a patroa fez? Meteu um esfigmomanômetro de pulso que tenho em casa e foi medindo minha pressão a cada par cobrado. O pico das medidas chegou a 20 por 12!!! Isso explica a frase “não é jogo para cardíaco”, tão em voga nas bocas de locutores e afins. É claro que não era o caso do último fim de semana... ou era, sei lá.

Mas sabe aqueles dias em que você está fazendo com a patroa aquilo que você mais gosta de fazer com a patroa, e o cachorro entra álacre e saltitante em sua alcova? Pois é. Surge na telinha o nauseabundo termo em inglês incident involving cars 16 and 33 under investigation, coisa assim. O resultado estava sub judice, e os comissários avaliariam se houve algum tipo de excesso do voluntarioso Max sobre o macambúzio Charles, e a decisão saiu somente três horas depois, quando eu já estava refestelado em decúbito dorsal sobre o sofá da sala, tentando digerir o baião-de-dois do almoço. É o broxante VAR aplicado às quatro rodas. Menos mal que a épica vitória foi confirmada.

Lá pelo fim da tarde, sem muita coisa para fazer na espera pela segunda-feira, que já se aproximava ameaçadoramente, fui “participar” das resenhas deste nosso mundão virtual (domingo sem futebol é uma merda), e percebi algo que realmente me chamou a atenção. Muita gente opinava que seria correto aplicar a punição pretendida, e que não o fazer seria um duplo prejuízo à equipe Ferrari, a squadra do ultrapassado monegasco.

Explico. Há duas corridas atrás, no GP do Canadá, tivemos uma disputa acirrada entre Sebastian Vettel, da equipe italiana, e o líder do campeonato, Lewis Hamilton. Bem perto do final da prova, Vettel escapou da pista em uma chicane, conseguindo retornar ainda na liderança. Abriu-se uma investigação igual à que citei, porque se achou que o alemão espremeu Hamilton contra o muro em seu retorno à pista, já que o pentacampeão aproveitou a brecha para emparelhar seu carro, e teve que recuar, ante a iminência do choque. Os homens de preto julgaram que a manobra foi imprudente, e acrescentaram cinco segundos ao tempo do nosso casmurro tedesco, que ficou puto da vida com o fato de ter ganhado, mas não levado: cruzou a linha em primeiro, mas o tempo adicionado o fez terminar a prova em segundo, fazendo com que Hamilton garantisse a mais sem graça de suas inúmeras vitórias.

Aqui cabe a discussão. É justo corrigir um erro com outro? Há uma tentação em se dizer que sim, mas é uma tendência falaz. No caso, humildemente eu penso que a punição a Vettel foi injusta, e a não-punição a Verstappen foi correta. Basta que se observe a dinâmica da ambos os incidentes. Vettel escapou para a grama, e precisava decidir em um átimo o que fazer. Corrigiu como pode o traçado de seu carro, e isso incluiu uma fechada de porta em Hamilton. No entanto, parece-me claro que não houve uma intenção em impedir a ultrapassagem com meios antidesportivos. Era o que havia a fazer, e nada mais. Há risco inerente na prática deste esporte, assim como em tantos outros. Esperar que o alemão se mantivesse aguardando o inglês sumir de sua lateral vai contra o que se espera de uma disputa por posições. Por estes mesmos motivos, achei adequada a homologação do resultado da corrida na Áustria, sem tirar nem por. Pelo curso natural da curva, Verstappen espalharia um pouco sua trajetória. Não se percebe uma intenção em jogar Leclerc para fora da pista. Se há algum tipo de forçação de barra, é deste último, que tentou enfiar o carro onde não cabia. Portanto, temos um erro no primeiro painel e um acerto no segundo.

O ponto em que poderíamos concordar com a indignação dos tifosi é a questão do critério. Seria desejável que ele sempre fosse o mesmo, que os regulamentos fossem absolutamente claros para não gerar ambiguidades, como, de resto, deveria ser tudo na vida, especialmente na construção das leis. Mas, malícia dos legisladores à parte, é muito difícil de se prever toda e qualquer nuance que o curso dos acontecimentos venha a desenhar à nossa frente. Entendo que houve erro dos comissários no primeiro caso, o que não implica na necessidade de erro no segundo. A montanha de tempo que se levou para decidir a querela só prova que a questão foi colocada à baila, de modo que poderia ter contaminado a decisão.


E o principal: não se conserta um erro com outro. Um erro é um erro, e pronto. Não se torna acerto, por “consertar” outro. Geralmente, uma situação destas provoca cadeias longas de erros sucessivos, ao invés de se pôr um ponto final na questão. Lembro de uma vez, quando eu passava pelos perrengues de manter as barrigas das crianças minimamente preenchidas (e matriculados em uma escola que ficasse na linha mais próxima do limite da dignidade – isso era um ponto de honra para mim), que um problema permanente na minha casa ganhou contornos aflitivos. Eram as goteiras resultantes de uma laje mal enchida, que já estavam fazendo o reboco da cozinha ficar “barrigudo”. Por vezes, tentei corrigir o problema do modo que era possível. Passei piche, apliquei manta líquida, cimento bem aquoso, malha com vedapren, tudo em vão. Antes de ver as placas de massa cair na cabeça de alguém, juntei os mais mirrados cobres e peguei férias: iria eu mesmo fazer um telhado, com a ajuda do bem-disposto e sempre disponível sogrão. Telhas compradas, madeiramento todo medido, vamos começar la faena. Pensava em terminar, no máximo, em uma semana. Acabou com as férias inteiras, mais dois finais de semana. Uma trabalheira dos infernos... Mede, corta, fura, prega, apoia, nivela, faz, refaz, quebra, xinga... Para dois amadores, a coisa ficou até aceitável, mas havia o problema da caixa d’água a resolver. Desgraçadamente, eu havia optado por uma das redondas, e não dava para fazer o encaixe das telhas de maneira decente. Achei que arrematar com plástico resolveria a parada. A primeira chuva mais parruda provou que não. Fui remendar com cacos de telha; não funcionou. Tentei aplicar uma grossa camada de massa na região logo abaixo da laje; também não resolveu. Recobri de manta esse mesmo monturo – não. Tentei fazer uma “saia” com rufos ao redor da caixa, para fazer a água escorrer para as telhas. Só consegui uma longa cadeia de cortes nos braços, alguns deles merecedores de pontos (resolvi na base da atadura mesmo). Parti para a ignorância e entrei por baixo do telhado em um dia de chuva, para ver por onde diabos a água entrava. Não adiantava, escorria por todo o perímetro da caixa d’água. Eu tentava desesperadamente corrigir um erro com outro, e nada resolvia. Um torto para corrigir um curvado. O certo era fazer o que o pedreiro pago com sangue e lágrimas fez: suspender a caixa d’água com duas patéticas muretas, e fazer o telhado sob ela como manda o figurino. Pronto, sanado.

Dois erros não fazem um acerto. Dizer o contrário disso é uma falácia. Quando alguém aprova uma ação errônea, por exemplo, para “corrigir” outra, não está fazendo uso da lógica, mas de seu sentimento de vingança. Não dá para aplicar o raciocínio matemático de que menos vezes menos dá mais. Se não for razoável a questão do critério, então nada mais temos do que uma perpetuação da conduta que arrasta o erro pelo infinito. Vejam como a humanidade busca se afastar da premissa do “olho por olho, dente por dente”, ainda que por muitas vezes tenhamos vontade de torcer o pescoço de quem nos molesta. Não é um bom modo de se conviver no meio social. Nem de resolver resultados de corridas. Bons ventos a todos.

Recomendação de site:

O pessoal do Projeto Motor já foi recomendado neste espaço, mas apenas seu canal no YouTube. Quem gosta da área de automobilismo não deve se limitar aos seus vídeos e às suas lives. Há excelente material no site também, contendo artigos sobre história e análise de F1, com material adicional sendo disponibilizado por quantia módica. Estão de parabéns os jovens jornalistas Lucas Santochi e Bruno Ferreira, bem como seus convidados, por mostrar sangue novo e boas ideias neste ramo que, infelizmente, tende ao encolhimento nestes tempos de ausência de ídolos em terras tupiniquins.

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