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segunda-feira, 15 de julho de 2019

Sobre um tipo de bicho que nada tem de inocente e o Pequeno guia das grandes falácias - 47º tomo: o argumentum ad nauseam

Olá!

Como eu já disse aqui e ali neste blog, moro em um prédio velho do centro de São Paulo. Isso já nos produz uma inferência direta – não há garagem. Sim, é fato. Todas estas construções erguidas antes da década de 70 desconsideravam a necessidade de um lugar para estacionar. Carro era um troço muito caro antes da produção dos Fuscas em terras tupiniquins, coisa para poucos. E o pessoal vinha povoar a “cidade” a pé mesmo. Também é fato que nós, poucos moradores da região, temos bastante facilidade com transporte. Metrô, trem, terminais de ônibus e táxi em qualquer esquina podem nos levar a qualquer lugar que for necessário, a todo momento. Além disso, em geral, temos estrutura suficiente para não precisar ir longe. Transporte individual não é, para o central, uma necessidade premente. Entretanto, picado pela mosca branca da burguesia, tenho um carro, a quem dei o carinhoso epônimo de Bedelho, e já é preciso ter um local onde guardá-lo. Sai bem mais em conta que tomar multas na impiedosa zona azul que fica fernandopessoamente defronte às janelas do meu quarto, de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (e se soubessem quem é, o que saberiam?).

Aproximadamente cem metros é a distância entre o prédio em que habito e a garagem que aluguei para o veículo. Neste percurso, um pequeno lapso espaço-temporal em minha vida, qualquer coisa factível em três minutos é possível. Posso ver alguém conhecido, tropeçar em um cachorro, achar uma nota de cem (falsa), sofrer um atentado, ter um ataque cardíaco, lembrar que não paguei a luz, cair um piano sobre minha cabeça. Tudo imprevisível, com uma única exceção – a de que passarei ao lado de um pequeno quiosque embutido na parede, onde mal cabe uma pessoa, e direi: Bom dia, Sônia!

O mocó da Sônia tem um propósito bem específico. Por detrás dos frascos de perfume e das capinhas de celulares, objetos sociais aparentes, desenrola-se outro tipo de atividade, mais lucrativa e menos lisonjeira, em voga há muito mais tempo nestas terras do seo Cabral: o jogo do bicho.



Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Eu sei que se trata de uma contravenção*, cominada com pena de multa para aquele que aposta, mas o fato é que se trata de um hábito enraizado, que já se encalacrou no inconsciente coletivo do brasileiro. Prova maior é a quantidade de expressões idiomáticas que lançam mão do seu exercício, como a não utilização do número 24 em times de futebol. Sendo um verdadeiro poço de homofobia, seria inadmissível a um jogador carregar às costas o grupo do veado neste meio. Em outros países, essa aversão ao numeral não faz o menor sentido. Outro exemplo vem da famosa motocicleta Honda CBX 750, unanimemente conhecida por “sete galo”. O vínculo se formou obscuramente, mas o motivo é simples: o número 50 pertence ao grupo do galo no jogo do bicho. Mais um. Quando um time mais fraco vence partida contra equipe mais bem fornida, dizemos que houve uma “zebra”. Isso vem do fato de que não há grupo da zebra no jogo do bicho e, portanto, o resultado imponderável é aquele em quem ninguém apostaria. Só mais unzinho, para finalizar. Em algumas regiões do país, utiliza-se a expressão “deu no poste” para dizer que um determinado resultado que se esperava foi divulgado. Geralmente associada ao viés de juízo retrospectivo, esta expressão serve para cantar vitória em um prognóstico: “ lá, deu no poste! A Aninha grávida de menina! Bem que eu vi que a barriga dela tava redonda!”. O termo nasceu porque, sendo ilegal desde o princípio, o jogo tinha a divulgação de seus resultados de maneira discreta, porém em praça pública. Os apontadores dissimuladamente grudavam os números sorteados em um poste, onde poderiam ser conferidos pelo povão.

Há algumas razões para o jogo do bicho continuar existindo, mesmo com a disponibilidade de tantas loterias oficiais. Apesar de prêmios mais modestos, é um jogo mais simples de entender, que não requer filas em lotéricas, e que envolve uma certa cumplicidade com o cambista; não sendo prática endossada pela lei, é preciso um mínimo de confiança para entabular a freguesia. Mas há outros fatores, não há dúvida. Um deles é místico, esotérico, metafísico. Trata-se da tradução de sonhos em prognósticos. Alguns deles são clássicos: sonhou com roubo, dá gato; com morte, elefante e, com bebedeira, peru na cabeça. Outros dependem de interpretação, cuja capacidade só se adquire com a experiência, dizem os entendidos. A vetusta tia Antonia tinha qualquer coisa com a borboleta 13. Ela amanhecia atiçada em procurar o cambista da padaria do seo Gaspar toda vez que ela sonhava de determinada forma, não sei bem com o quê. Já nonagenária, causava a aflição na minha madrinha, já que não havia avisos. De vez em quando, emplacava um trocado, o que significava sorvete no almoço. Eu gostava quando a tia Antonia jogava.

Em algumas destas passagens rumo à garagem, pego-me tentando lembrar alguma coisa relevante que eu tenha sonhado. Passo no mocó e lanço: “Sônia, sonhei que minha casa se encheu d’água, mas não chovia”. O diagnóstico vem seco: “Jacaré, que é bicho de banhado; cachorro, que toma conta da casa, e águia, porque o céu estava limpo”, coisas dessas. Eu cravo de volta – “59, 19 e 08, cinco no terno, cinco valendo grupo, cinco valendo duque”. Quinze reais para a algibeira do bicheiro da região. A Sônia leva 25% disso, e o resto vai para a banca. O prêmio eu já sei. Para cada real apostado, entra 3000 no terno de dezena. Se der, portanto, levo 15000 para casa. Nada mal, mas sou ruim de palpite. É mais realista pensar nos 1500 do duque ou nos 650 dos grupos.

Notem como todo o jogo tem suas regras bem conhecidas. Sabe-se o quanto vai para a banca, o percentual do cambista e o valor dos prêmios, que são pagos em dinheiro vivo. Essa clareza na estrutura faz com que a voz do povo soe em uníssono: o jogo do bicho é o mais honesto que existe. Pergunte a quem joga, e ele dirá: é honesto. Pergunte a quem vende: é honesto. Pergunte aos milhares de donos de boteco e padaria: é honesto. Pergunte ao comércio da redondeza: é honesto. Pergunte até mesmo às lotéricas, que deveriam vê-lo como o vampiro vê a cruz (mas que também o comercializa): é honesto. Pergunte aos autores de livros de interpretação de sonhos: é honesto. E também às editoras e livrarias que os vendem: é honesto. Pergunte também por que há tanta gente contrária à sua legalização: deixará de ser honesto, passará aos meandros governamentais, onde se perderá na triste lógica da corrupção. E, por fim, surge a pergunta que não quer calar: é mesmo honesto?

Para tentar a resposta, é preciso lançar mão de um pouco de experiência pessoal. Na minha família, tínhamos um parente afim cuja alcunha era Colorau, em razão de sua cabeleira ruiva. Quando era ainda um molecão, subiu no telhado de uma fábrica atrás de uma pipa. Ocorre que uma das telhas cedeu, fazendo o pobre se espatifar lá embaixo. A queda lhe rendeu uma lesão na coluna que nunca mais permitiu a ele andar sem o apoio de uma bengala. Nos momentos de maior crise, tinha de usar muletas. Essa condição, em época de pouca visibilidade a pessoas com deficiência, tornou-lhe impossível conseguir emprego formal. Foi se virar sendo cambista, circulando entre os botequins da estrada da Vila Ema, e essa foi sua ocupação até sua precoce morte, ocorrida há uns dez anos. Devia ter uns cinquenta, não sei bem.

No entanto, apesar da titularidade de sua ocupação, volta e meia o Colorau sumia. Esses desaparecimentos repentinos tinham a ver com sua atividade. A vida normal de um cambista consiste em anotar as apostas da plebe rude e repassar as verbas ao bicheiro local, antes do horário do sorteio. Esse ato chama-se "amarrar" a aposta. Qualquer valor que não estiver nesse pacote, não fará parte do certame. Até aí, ok.

Acontece que alguns cambistas fazem um truque antes de amarrar a aposta. Ao invés de repassar o dinheiro das pequenas apostas à banca, preferem retê-lo para si, assumindo o risco de que o palpite seja premiado. Neste caso, tiram o valor do próprio bolso, e vida que segue. Normalmente não se atrevem a fazer isso com apostas mais polpudas, que pagam prêmios maiores. As bancas detestam esse tipo de conduta de seus colaboradores, e a desencoraja com meios pouco republicanos. Só que a combinação de dinheiro na mão e aperto no bolso faz com que tenhamos uma tendência pouco saudável a fazer uso do que não é nosso, e era exatamente isso que o Colorau fazia. Pegava não somente as quirelinhas, mas também os valores mais parrudos dos palpites e não repassava ao bicheiro. Só que de vez em quando o bicho saía, e a casa caía, por conseguinte. O dono da banca, nestes casos, costuma pagar o prêmio para manter a honra, mas vai recuperar o prejuízo com o indigitado. Ah, se vai.

O Colorau, nestes períodos, ia se foragir em lugar incerto e não sabido, até conseguir, diabo sabe como, o dinheiro para repor a perda. Não quero nem pensar quais eram os meios usados para angariar os fundos (para manter o respeito). Isso já mostra que há elos desta corrente que não são exatamente honestos. Mas esse ainda é o lado miúdo da teia. As aranhas maiores tem histórias muito cabeludas para contar, incluindo máfias altamente organizadas e violentas, bem como braços políticos e envolvimento com milícias, além da associação com outras organizações criminosas, como o tráfico de drogas. O modus operandi é muito semelhante, portanto, a qualquer outra gangue, maquiados pela inocência aparente de um joguinho inofensivo, que todo mundo reputa por "honesto".

Alguns nomes se tornaram célebres no meio, como Castor de Andrade e Emil Pinheiro no Rio de Janeiro, ou Ivo Noal em São Paulo. Eram envolvidos com o carnaval, times de futebol e várias empresas, onde lavavam a renda injustificada, e, principalmente, com o meio político e policial, de onde compravam e vendiam facilidades para a continuidade de suas lucrativas atividades. Muitas candidaturas eram bancadas por bicheiros, e milicianos eram frequentemente utilizados na contenção de avanços de adversários, igual-que-nem faz o pessoal do tráfico de drogas. Não há vida fácil nos meandros pouco visíveis – há luta pelas bancas, adversários são mortos e verdadeiras corporações são montadas para manter o sistema. Não, honesto o jogo do bicho não é. Nunca é legalizado, o que seria a solução mais simples, também não sei o porquê.

Mas a aura de “honestidade” se mantém. Quem lê o que eu escrevo aqui, pode ficar invocado. Se ler a minha recomendação logo abaixo, poderá até ficar chocado. Mas as pessoas continuam pugnando por sua honestidade, principalmente quando testemunham uma malversação de dinheiro público. E o discurso se repete... e se repete... e se repete... até dar um nó no estômago. Ele vence pelo cansaço, e se estabelece como se fosse legítimo.

Uma mentira falada mil vezes vira uma verdade, parafraseando o ditado atribuído a Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha nazista. Quando alguém afirma algo novo, o nosso cérebro passa por um momentâneo descompasso, mas, à medida em que a afirmação é reiterada, passamos a assimilá-la ao ponto de torná-la cômoda à lógica de nossos pensamentos. Essa “verdade”, então, fica registrada em nós como algo familiar.

Há um termo que, reconhecidamente como uma hipérbole, retrata a narrativa repetitiva como meio de conhecimento. É o argumentum ad nauseam, ou seja, uma repetição que causa enjoo. Sabe quando você é criança e come tanto um doce que chega a vomitar? Com o ad nauseam é a mesma coisa. O argumento repetido, principalmente quando vem de várias bocas, vai sendo absorvido e vencendo pelo cansaço, sendo consolidado no acervo inconsciente de uma sociedade.

É óbvio que esse tipo de argumento do papagaio parece tolo, mas não é, como bem pudemos observar no exemplo do jogo do bicho. Coisas como o nazismo de esquerda vão se arraigando com uma narrativa simplificada, fácil de entender. E, principalmente, ditas com insistência, ainda que não se disponham com verdadeiro sentido, mas com uma pequena familiaridade. Diga-se hoje, diga-se amanhã e depois, diga-se sempre, e o doce passará da fase da náusea para a da absorção. Aí, já estamos acostumados, já não nos aflige a inverdade que já não a é. Não me incluo fora dessa, ainda tenho muito a aprender. Principalmente a tornar o limite do meu “bom dia” a linha ética sobre a qual não devo saltar.

Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Leiam a recomendação abaixo para saber mais sobre que tipo de malha há por baixo do novelo aparentemente romântico do jogo do bicho.

JUPIARA, Aloy; OTÁVIO, Chico. Os porões da contravenção. Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado. Rio de Janeiro: Record, 2015

* Contravenção, na legislação penal, é uma espécie de crime menor, com penas proporcionalmente menores e cumpridas de maneira mais branda. Um contraventor, por exemplo, nunca vai parar numa penitenciária, junto com condenados por crimes mais graves, nem por um tempo muito longo.

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