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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Arte, vida e arte (ou: sobre instintos e pianos que caem)

Olá!

Dei uma sumida por uns tempos. Sacumé, coisas da vida, apertos, dificuldades, blá, blá, blá. Mas chegou a hora de retomar meus escritos. Então, vamos lá!

A rua Maria Paula é um lugar que frequento diariamente. Na semana, encaro seu trânsito encalacrado, impaciente e sonolento dentro de uma Kombi, sentido Sé. No fim da semana, pego um solzinho em suas calçadas, sentido República. Por lá, já exerci alguns exercícios metafísicos, tratando de instinto, intuição e raciocínio. Não sou Aristóteles, mas dou minhas peripatetizadas. Penso no instinto e no piano que cai (lembra, Rê?).


Instinto... O quanto ele é significativo em nossas representações? O que a arte tem de vida e vice-versa?

Pensar em pianos, afilhados e instinto traz à minha cabeça Antonin Artaud, dramaturgo e teatrólogo francês, em especial sua obra O teatro e seu duplo (Lembra, Rê?)2.

Artaud é criador da corrente denominada O Teatro da Crueldade. Ele teoriza a existência de uma tirania da linguagem escrita e falada nas artes ocidentais. Para ele, a principal fonte de um ethos artístico legítimo é desprezado nesta enfatização da palavra: a transpiração visceral do instinto. Em seu teatro, utilizava surrealisticamente e abusivamente de recursos que, segundo ele, são os mais adequados para expressar uma linguagem mais autêntica - o grito, os tons alternados da voz, as glossolalias, os rictos faciais, a expressão corporal. Tudo o que fugisse das expressões convencionais, insuficientes para dar completude à tarefa de comunicar. Além disso, a representação no palco é indissociável da reação na plateia, que devem ser integrados e fazer parte do mesmo ato. O Teatro da Crueldade é um teatro do instinto e da intuição. A racionalidade não prepondera, porque ela não é o único componente das fontes mentais.

O que podemos tirar disso tudo?

O duplo do teatro é a própria vida. E, pelo que podemos compreender das teses de Artaud, aquele tem ascendência sobre esta. Isso porque o palco é o espaço originário para a representação, é lá que ela é perfeitamente lícita e esperada.

(Abro parênteses para um breve esclarecimento: o conceito de "representação" que utilizo aqui deve ser compreendido no sentido estético. Digo isso porque falei neste post e também neste sobre a representação vista sob o ângulo dos filósofos voluntaristas, em especial Schopenhauer. Representação, neste caso, tem a ver com o sentido da perspectiva individual que a vontade faz com que as coisas sejam enxergadas. Fecho parênteses).

Acontece que a vida obriga-nos a encenar ininterruptamente. Em cada local, um cenário; em cada situação, um script. As contingências produzem os improvisos, o fluxo da vida determina o gênero - há comédia, há drama, há tragédia, há pantomimas, há miscelâneas - e a plateia vaia ou aplaude, ainda que implicitamente. A vida é teatral, empurra-nos a isso. Mesmo os mais autênticos vestem suas personagens (que tal os ternos no verão? Será que as convenções também não são roteiros?).

Não será, contudo, a recíproca também verdadeira? O teatro ser imitação da vida, não é tão óbvio que parece impossível? Ora, invertamos a lógica: se o teatro é o espaço da invenção, da criação e da representação, a vida é o local por excelência da realidade, do quotidiano, das causas e efeitos. Quando o artista incorpora e interpreta o personagem, ele disponibiliza sua energia a tal nível que acaba por conceder realidade a este ser abstrato, e, desta forma, retransforma o teatro em duplo da vida, com prerrogativas desta vez invertidas.

Neste ponto, finalmente, temos o espelho diante do espelho. Teatro e vida introjetam-se mutuamente de um modo inexorável, ainda que a princípio imperceptível. Tolher a manifestação instintiva e intuitiva nesta relação significa empobrecê-la, desconstruí-la (não gosto deste termo). Afinal, se são duplos mutuamente, precisam refletir-se por completo. Sob a pena de não termos defesa contra os pianos que caem (lembra, Rê?)3.

Recomendação de leitura:

Os escritos de Artaud são tão surreais e tresloucados quanto suas atuações. De toda forma, sua escola influenciou e tem influenciado todo o teatro desde os anos 20 do século passado. Por isso, vale a pena tentar compreendê-lo.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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