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quarta-feira, 11 de maio de 2016

Sobre a discrepância entre o que vemos e o que lembramos - e o quanto isso pode ser fruto de manipulação

Olá!

Muitas pessoas relatam certas experiências suas e de seus filhos que seguem a um padrão, digamos, diferente do esperado. Não é diferente com meus filhos. O moleque dizia com surpreendente precisão, aos dois anos, que lembrava como fazia para utilizar um boticão, ferramenta que ele nunca havia visto até então. Já a menina alegava aos prantos que não queria crescer, porque um homem havia roubado seus filhinhos. Bem, bem, bem... Há quem diga que sejam eventos místicos, de recordação de outras vidas; há quem diga que seja o inconsciente em plena operação, manifestando-se através das fantasias (que nem sempre são positivas); há quem diga que são uma associação entre coincidências e as interpretações imaturas que a criança faz confusamente, dada sua linguagem neófita; e há quem diga que são coisas do demônio. O fato é que, no meu caso particular, não tenho recordação de nada extraordinário, nenhuma espécie de contato transcendental ou experiência mística. Nada que fuja estritamente às leis da Física, a não ser uma. Vamos a ela.

Tenho uma boa parte da família de origem italiana. O ramal no qual está inserida a matrona prima Nellyd, do alto de seus quase novantanni, possui uma campa no cemitério da Quarta Parada, cercada por vários oriundi: Barrichelli, Franciosi, Garofali, Basile, Buono, Sigismondi, Chiarello, Arduini e até os insólitos Sacco. Para quem não conhece o cemitério, é um daqueles à moda antiga, repletos de capelinhas e com pouca terra à mostra, que um dia esteve na periferia mais extrema da cidade, às margens do córrego do Tatuapé (que está embaixo da avenida Salim Maluf). No alto da entrada de cada capela, há o nome do respectivo patriarca, e a dedicatória ao santo de preferência, sempre lembrando que estes cemitérios nasceram em uma época na qual quase todo mundo no Brasil se declarava católico. No caso específico da minha turma, o fundador e patriarca era o tio Antonio (mas quem estreou mesmo foi a tia Rosa) e o padroeiro era o xará Santo Antonio.

A capela da família fica bem na esquininha de uma das inúmeras ruelas, e na parte de trás fica encostada uma campa menor, hoje em dia completamente largada, daquelas que são fechadas por portinhas de 80 X 80, onde os defuntos são acomodados em gavetas visíveis.


Sobre as sepulturas, uma pequena laje com uma imagem azulejada do Bom Pastor ao fundo, se eu não me engano. Na frente deste painel, havia uma pequeníssima imagem de Nossa Senhora Aparecida, inserida em uma igualmente minúscula igrejinha de portas abertas. Abaixo, um desenho bem porco, só para vocês entenderem a dinâmica da coisa:


Pois então. Naqueles mesmos arredores, havia vários vasos com aquelas plantas resistentes ao sol, incluindo uma suculenta de cachos conhecida como dedinho-de-moça, incrivelmente comum naquelas cercanias. Enquanto minha mãe e minha madrinha davam um trato na capela e faziam suas rezas e cantilenas (hoje ambas estão em seu subterrâneo), eu e minha prima, então crianças, enchíamos a mão dos bagos da precitada e íamos infernizar a pobre santa, fazendo-a de alvo. Iconoclastas (direis)! Nada disso. Crianças, apenas crianças.

Até aí, nada além de uma brincadeira sacrílega praticada por dois perigosos hereges, mas belo dia aconteceu: cansada de ser alvejada, a santa FECHOU as portinhas de igreja. Saímos correndo assustados. Contamos o ocorrido, levaram-nos de volta, sob broncas: portas abertas, a santa em seu lugar. Nova operação de tiro, novo fechamento, nova fuga, nova carraspana e inédita desistência. Melhor deixar a santa quietinha no seu canto, velando por seus mortos.

Volta e meia eu regressava ao assunto. Para ser mais preciso, todas as vezes em que marcávamos de ir ao cemitério. Levava todo mundo para trás da capela, mostrava a campa e a capelinha de Nossa Senhora. Nem minha mãe, nem minha madrinha, nem minha prima lembravam-se de nada. Com relação às duas primeiras, tudo bem. Os adultos não se ligam muito nas baboseiras das crianças. Mas minha prima... ela é dois anos mais velha do que eu. Deveria ter uma memória ainda mais presente do acontecimento. Não adianta, só eu me lembro da história.

Seria um sonho vívido o suficiente para ser tomado como verdade? Seria alguma história ouvida por aí e maquinada na minha cabeça? Seria uma experiência mística real, que se apagou das demais memórias por ser destinada somente a mim? Serão falsas memórias?

Falsas memórias? Isso é possível?



Sim, a memória é uma caixinha de surpresas, e seu funcionamento ainda é um mistério que precisa ser desvendado. Vou começar fazendo um pequeno apelo à literatura para ajudar a ilustrar o caso. É da obra Tartarin de Tarascon, do francês Alphonse Daudet, uma obra que retrata um protagonista que funde o idealismo de Dom Quixote com o materialismo de Sancho Pança. Vamos ler.

“Quase ter ido a Shangai ou ter ido lá, para Tarascon, era exatamente a mesma coisa. De tanto se falar na viagem de Tartarin, acabou-se por acreditar que dela voltava e à noite no clube todos aqueles senhores pediam-lhe informações sobre a vida em Shangai, os costumes, o clima, o apoio, o ‘Alto Comércio’. Tartarin, muito bem informado, dava prazerosamente os detalhes pedidos e, por fim, o bravo homem não estava muito certo, ele mesmo, de não ter ido a Shangai, de tal modo que, contando pela centésima vez o ataque dos tártaros, dizia muito naturalmente: ‘Então fiz armar meus empregados, hasteei a bandeira consular e pan! Pan! Das janelas sobre os tártaros’. Ouvindo isso, o clube estremecia. (...) Entretanto, ouçam bem isso. Já é tempo de entrarmos em acordo sobre essas reputações de mentirosos que a gente do Norte fez aos do Sul. Não existem mentirosos no Sul, não mais em Marselha do que em Nimes, do que em Toulouse, do que em Tarascon. Os homens do Sul não mentem, enganam-se. Nem sempre diz a verdade, porém acredita dizê-la. Sua mentira não é mentira, é uma espécie de miragem”.

Parece uma síntese da célebre frase atribuída a Goebbels, ministro da propaganda do III Reich: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Mas não se trata exatamente disso, já que não é necessário que exista deliberadamente uma intencionalidade para ocorrer um fenômeno desses. O que podemos ter então?

Uma das teses mais significativas surgidas nos fins do século XX é o paradigma reconstrutivista da memória. Os defensores desta escola imaginam o seguinte processo para gravação e resgate das memórias:

Primeiramente, temos uma fase de aquisição, que nada mais é que a observação do fato ou do objeto. Acontece quando lemos um livro, assistimos a um jogo, vemos uma briga na rua, encontramos um bicho na salada... Enfim, quando experienciamos um acontecimento qualquer. O próximo passo é fazer a retenção de todos estes elementos na memória, a memorização propriamente dita. É como se colocássemos todos os elementos observados em um armário. E, finalmente, temos a recuperação das lembranças, a recordação. Acontece, como podemos bem perceber, que o fato resgatado nunca é idêntico ao fato ocorrido. Isso porque a memorização tende a ser feita pela divisão de elementos mais ou menos significativos, fazendo com que a nossa metáfora do armário não seja apropriada se o virmos como um guarda-roupas, que abrimos as portas e enfiamos tudo lá dentro, inteirinho. É melhor pensarmos naqueles gaveteiros, onde guardamos os elementos de um fato de acordo com sua importância. Os elementos mais vivazes são guardados nas melhores gavetas, muito bem arrumados, lavados e passados, enquanto os secundários vão para aquelas gavetas mais rotas, com o fundo desmanchando, e lá não são postas – são arremessadas e amarfanhadas, como bem fazem nossos queridos juvenis.

No processo de recordação, nossa mente faz uma reconstrução dos elementos do fato. Busca a sua estrutura lógica e vai remexer nas gavetas da memória. As memórias vivazes são aquelas em que não há dúvidas. Pensando no bicho da salada, resgatamos que se tratava de acelga povoada por uma lagartinha, e tudo se deu no bar do seo Quinzinho. Já o dia da semana, a mesa em que sentávamos, que bebida acompanhava, tudo isso é meio incerto. Estava guardado nas gavetas estragadas. E sabemos mais de suas existências por conta da estrutura lógica do que pela recuperação do dado em si. Em nosso exemplo, se almoçamos no seo Quinzinho, certamente foi em algum dia da semana, porque não estávamos alijados do tempo; provavelmente bebemos alguma coisa, por ser uma habitualidade. E, finalmente, é pouco provável que tenhamos comido de pé; portanto, ocupamos uma mesa.

Pois muito bem. Elizabeth Loftus é uma psicóloga norte-americana aderente ao paradigma reconstrutivista, dando a ele uma característica intrigante: o processo de reconstrução pode ter falhas graves. Basta, por exemplo, que se abra a gaveta errada. E pior. A cada recuperação, há uma nova retenção, e, se os elementos vão para a gaveta errada, a nova memória se perpetua sem reflexo na realidade. O que aconteceu de fato é uma coisa, o que se recorda do fato é outra. É a síndrome da falsa memória.

Esse fenômeno é muito mais comum do que podemos supor. Qualquer memória que esteja enevoada pode ser influenciada por algum item externo. Prosseguindo no exemplo da lagarta, talvez tentemos lembrar o tal dia da semana do ocorrido. Um amigo nosso diz que o seo Quinzinho costumava servir acelga na terça-feira, sugestionando nossa memória. Antes embaciado, agora esse registro é nítido. Já não temos mais dúvidas: foi numa terça-feira. Percebam que não estamos mentindo, achamos mesmo que essa é a verdade, porque ela foi reconstruída dessa forma.

Mas esse é um detalhezinho ilustrativo, de pouca importância. O que Loftus descobriu é que também as gavetas principais podem ser mexidas, especialmente nas experiências traumáticas, nas situações de pressão interna, em pacientes de psicoterapia e em experiências nas quais há alterações de percepção, como a hipnose, os transes místicos e o consumo de drogas. Buscou comprovar suas teses através de alguns experimentos, sendo o mais conhecido de todos um que consistia no seguinte: para um grupo de voluntários, foram levantados junto a pais e parentes próximos três acontecimentos moderadamente traumáticos ocorridos por ocasião da infância de cada um deles. Tais acontecimentos foram narrados aos participantes, mas com a adição de mais um evento, que nunca existiu – a experiência de se perder em um shopping. Para um melhor resultado, foi consultado aos parentes qual shopping era frequentado pelos voluntários, com alguns detalhes arquitetônicos e lojas normalmente visitadas – e se de fato não havia na história dos voluntários nenhum acontecimento semelhante, é óbvio. Inquiridos sobre os quatro acontecimentos, muitos dos voluntários disseram se recordar de todos, inclusive do susto do shopping. Mas o melhor estava por vir. Foi informado aos voluntários que um dos quatro eventos descritos era falso. Questionados sobre qual desses eventos seria de mentira, 12% dos entrevistados reputaram o evento do shopping como verdadeiro, indicando como falso um outro acontecimento que ocorreu de fato!

O grande problema levantado por Loftus foi a validade de provas obtidas por depoimentos, como as confissões, as acusações e os testemunhos. Se de fato a memória é uma reconstrução, e esta pode se dar com troca de elementos, isso implica em dizer que nenhum depoimento, visto isoladamente, pode ser confiável.

Além disso, há uma ferramenta relevante para adulterar a percepção que temos dos fatos: a maneira como a linguagem é utilizada na evocação dos mesmos. Voltando ao caso da lagarta, é muito diferente recordar alguém assim:

“Lembra de quando você encontrou aquele bichinho na salada? Coitado do seo Quinzinho! Tão trabalhador...”

Ou assim:

“Lembra aquele dia que você encontrou aquela nojeira toda na espelunca do porco do seo Quinzinho? Ave, ninguém merece...”

Ou ainda assim:

“Lembra daquele dia que o seo Quinzinho quis te sacanear? Você não acha que ele botou aquele bicho na salada de propósito?”

Percebam o potencial transformador que cada uma das colocações tem. A própria maneira de questionar já carrega consigo elementos que influenciam uma resposta. Na primeira pergunta, há um viés que leva o fato para o lado do acidente; já na segunda, para a negligência; e a terceira para a intencionalidade. Isso pode ser transposto para um tribunal? Claro que pode. A pergunta em si já pode carregar um juízo e indicar ao inquirido uma tendência, que pode, inclusive, ser lesiva para si mesmo. Olhem como, no nosso exemplo, a primeira pergunta aponta para a inocência, a segunda para a culpa e a terceira para o dolo.

Alguém por aí se lembrou do meu texto sobre leitura fria? Sim, incutir falsas memórias é mais uma técnica de engodar o cérebro humano, e Elizabeth Loftus mandou bem em detectar o fenômeno. É importante levar em conta que não é qualquer recordação que se conseguirá manipular, e nem sem o conto do vigário vai encaixar. Mas, como eu bem disse, a linguagem pode ajudar a distorcer as ligações entre os fatos e objetos, e alguém que domine bem a técnica pode perfeitamente trazer elementos distintos à mente de alguém e ligá-los de maneira a produzir a recordação que ele quer. Como o processo não é tão simples de entender, posteriormente vou retomar o assunto para tentar entender o que faz, a nível cerebral, ser possível as trocas de gavetas, mas vou parar este texto por aqui, antes que fique chato demais.

Recomendações de leitura:

Já que mencionei, segue a indicação do livro de Alphonse Daudet. Tartarin de Tarascon é um livro no estilo comédia, mas que carrega em si toda a angústia do ser humano diante da sua falta de coragem, e da dissonância entre o sonhado e o vivido.

DAUDET, Alphonse. Tartarin de Tarascon. Rio de Janeiro: Record, 1962.

Elizabeth Loftus é uma personagem polêmica, midiática e que deu de frente com uma instituição muito relevante: o Judiciário. De toda forma, é muito importante, é muito importante conhecer suas teses, porque o pensamento funciona por contraposição, e mesmo instituições sólidas podem ser perfeitamente contestadas. Como não há nada em português de sua autoria, vou indicar dois livros. O primeiro é da Dra. Lilian Stein e seus colaboradores, que abordam aspectos científicos e jurídicos da coisa:

STEIN, Lilian et al. Falsas Memórias. Fundamentos Científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010.

E o segundo é em inglês mesmo, fazer o quê?:

LOFTUS, Elizabeth; KETCHAM, Katherine. The myth of repressed memory. False memories and allegations of sexual abuse. New York: St. Martin, 1996.

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