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segunda-feira, 2 de abril de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (03 – Ontologia)

Olá!


No último texto desta intrépida série, refleti um pouco sobre a Metafísica, uma área da Filosofia que medita sobre os fundamentos últimos da realidade. Alguns leitores mais atentos, ou que já tenham alguma vivência no linguajar filosófico, devem ter estranhado o fato de eu ter omitido a questão do Ser, tão típica dos discursos metafísicos. Isso foi proposital. É que eu achei por bem ter cuidado em isolá-la da Ontologia, seu upgrade criado após a crise instaurada por Kant, ao estabelecer a intangibilidade das essências das coisas. Pois bem, estamos aqui e vamos tratar deste assunto.


A Ontologia, como eu falei, é um desmembramento tardio da Metafísica que estuda o Ser em si mesmo. Aliás, o termo grego onto significa ser, no mesmo sentido que a palavra latina esse dá sentido ao nosso léxico essência. Por isso, o nome Ontologia quer dizer, literalmente, o estudo do Ser. Mas que raio de ser é esse? O ser humano? O ser vivo? O ser bruto? O ser concreto? O ser abstrato? O ser extraterrestre? O ser transcendente?

A resposta é: todos esses seres. Cada um deles se apresenta a nós de uma determinada forma, mas também carrega em si uma espécie de substância que faz ser o que ele é. A palavra “ser” indica a nós quatro conceitos distintos e interligados:

Existência: quando dizemos que algo é um ser, definimos que ele existe. Portanto, quando falamos em “ser humano”, supomos de imediato que há uma espécie tal que tem uma série de características, o que, de pronto, nos leva ao segundo conceito, o de

Identidade: quando dizemos que algo é um ser, afirmamos que ele tem uma identidade própria que a distingue dos demais seres, que não possuem exatamente as mesmas propriedades, o que nos leva ao terceiro significado, o de

Predicação: que nos exprime o que são os termos da identidade mencionada anteriormente. De fato, ser não é apenas um substantivo, mas também um verbo, que tem o autopropósito de exprimir o que as coisas são: o Sol É distante, o peixe É escorregadio, os ovos SÃO quebradiços e così via. A construção da predicação se dá em função de um sujeito, ou seja, afirma-se algo a respeito de alguma coisa, o que nos leva ao último item, o de

Verificabilidade: que ocorre quando uma determinada predicação pode receber valor de verdade ou de falsidade. Neste caso, pertence ao Ser aquilo que se diz de real a respeito dele. Trocando em miúdos, se dizemos que o “Sol é distante”, podemos atribuir um valor a essa proposição. Se ela for verdadeira, haverá uma correspondência ao Ser Sol; do contrário, nada se falará sobre o Ser Sol, mas sobre seu não-ser, aquilo que o Sol não é.

A grande dificuldade na questão do Ser não está propriamente nos seus significados acima, já que eles parecem bem simples a uma primeira vista, o que pode fazer a discussão se tornar tola. Mas o buraco fica bem mais embaixo quando tentamos trazer o foco para nós mesmos: o que é o meu Ser? Qual é o meu elemento de distinção para o restante do universo? Com isso, percebo que há quesitos que me tornam único, e há quesitos que me torna um dos itens de conceitos maiores: ser humano, ser vivente, ser terrestre, ser concreto, ser imanente.

Quando procuramos o Ser em nós mesmos, tendemos a procurar um lugar no mundo, uma função que ao mesmo tempo nos caracterize e nos distinga, que nos agrupe e que nos separe, de forma a entender porque somos o que somos e fazemos o que fazemos. O negócio é contar uma historinha, para começar a conversa. Quando eu tinha meus cinco anos, os aperreios da vida me levaram para uma casa na Vila Ema, bairro operário da pauliceia desvairada, onde já moravam meu avô e minha madrinha. Havia uma casa de três cômodos no fundo do terreno dando sopa, e é para lá que eu fui. Na casa da frente, moravam meus primos, mais velhos que eu. Um deles era o Plinio, nome arcaico para alguém nem tanto, em época de Marcelos e Alexandres, designativos da moda de então. Era uma criança entre tantas, mas a cabeça dele era outra. Enquanto o pessoal curtia John Travolta e seus gestos e trejeitos discotéque, meu primo era dado a músicas mais estranhas, como o experimentalismo do krautrock do Can ou das doideiras do Frank Zappa, além de uma boa dose do tripé metálico (Sabbath, Purple e Zeppelin). Como toda criança, ele gostava de brinquedos, mas seu interesse maior não estava no manuseio da peça, e sim no seu funcionamento. Lembro dos carrinhos de fricção, que eram puxados para trás até dar um estalo, para ser solto e percorrer seu trajeto. Eu nunca me preocupei com o que fazia a propulsão, mas em dar asas à estorinha bolada na cabeça. Já o Plínio era o exato oposto. Às favas com a imaginação, ele queria mesmo era entender como se dava o impulso do carrinho, o que fazia com que ele corresse sozinho por aqueles poucos metros (uma mola, antes que me perguntem). Enquanto eu estava mais ligado ao sonho, ele queria compreender a realidade. Eu queria me desvincular do fato de que o carrinho era um simulacro, para que pudesse me sentir dentro da historinha; ele queria penetrar no âmago do carrinho, olhá-lo por dentro, aproximar-se ainda mais do carrinho em si. Eu queria me afastar da realidade última do carrinho, esquecer que era de mentirinha; ele queria o contrário, a realidade fundamental do carrinho, o seu Ser. Meu olhar era estético; o dele, ontológico. Deu para sacar? Não!?

Vamos então pegar o exemplo dos cães, esses animais cada vez mais presentes em nossos compactos apartamentos. Pensemos no gigantesco dinamarquês, daqueles que dá para montar a cavalo, no peludo afgani, no macérrimo galgo, no musculoso rottweiller, no esperto fox terrier, no chato pequinês, no minúsculo chihuahua, no glamouroso poodle, no mal-encarado boxer ou nos diferentes pastores – alemão, belga, napolitano, bergamasco. E, principalmente, pensemos nas inúmeras versões de vira-latas, os mais privilegiados pela seleção natural.

São animais tão distintos entre si, na forma, no tamanho, na pelagem, na agressividade, no ambiente geográfico em que habitam, que parecem espécies diferentes. Mas são todos cães. Batemos o olho neles e falamos sem errar: são cães.

Mais: se olharmos um feto de cão, um filhote de cão, um cão jovem, um cão adulto, um cão velho, um cão morto ou a ossada de um cão, lá estará a nossa consciência afirmando se tratar de um cão, não importando a linha do tempo. Mais ainda: eu mostro a foto de um cão e pergunto: o que temos aqui? Você dirá: um cão. O mesmo se aplica a uma estátua, uma garatuja, uma pintura a óleo, um logotipo, uma estampa, um carimbo. Não importa a materialidade. São cães.

Desde que uma mutação do miacis, ancestral de uma série imensa de mamíferos carnívoros, deu origem ao tomarctus, o cão primordial que deu origem a todo o gênero canis*, há algo em comum a todos os cães do mundo, sejam reais ou imaginários, sejam vivos ou mortos, sejam raças antigas ou produzidas por seleção artificial, que os fazem dignos desse nome, e esse algo em comum é aquilo que nós chamamos de essência. O Ser é traduzido pela essência, que, em um estudinho rapidíssimo na etimologia, quer dizer aquilo que tem a propriedade de ser.

Acontece que temos um problema. Onde está essa essência? Onde está descrito que tal e tal coisa formam a essência de um cão? Há muitas respostas que foram tentadas, desde que Parmênides enunciou o princípio da identidade: o Ser é. Isso significa que o mundo das constantes mudanças de Heráclito (panta rhei) era uma ilusão. São aparências das quais não extraímos o Ser, mas as manifestações do Ser (mais tarde chamadas de fenômenos). Dessa forma, o cão de carne e osso que vemos à nossa frente não é o Ser cachorro em si mesmo, mas uma, e apenas uma, de suas concreções possíveis. É um ente, cujo principal atributo é a existência. Através do ente, o Ser existe.

Mas o pensamento de Heráclito é desprovido de valor? Não. Enquanto Parmênides apostava na permanência do Ser, a proposta heraclitiana enfatizava a dinâmica das transformações. Para ele, o Ser era aquilo que estava em constante mudança, era o próprio devir. Esta palavra significa o movimento que o Ser passa para transitar de um estado para o outro: do que ele era, para o que ele é e para o que virá a ser. A essência não é estática.

Platão pende para um ideário semelhante ao de Parmênides e acha que essas essências perfeitas só podiam estar localizadas em um local que vai além do mundo sensível, dominado pelas aparências e distorções dos sentidos. Era o Hiperurânio (acima dos céus), lugar onde residiam as ideias puras, atingíveis unicamente pelo intelecto. Portanto, para Platão o Ser era um ato intelectivo, que a mente contemplava antes de trazê-la ao corpo.

Já para Aristóteles, o Ser não se encontrava em um mundo à parte, mas na nossa própria Terra. Para ele, tudo o que existe no universo se dá por uma longa cadeia de causas e efeitos que partem de um Primeiro Motor Imóvel, a causa originária, e, a partir daí, inicia-se o fluxo incessante de mudanças no cosmos (para saber mais, leiam este texto), o que o aproxima da Ontologia de Heráclito. Essas causas eram quatro: formal, material, eficiente e final. Estas duas últimas são externas ao próprio Ser, e dizem respeito a quem fez e para que fez. Por exemplo, o pedreiro (causa eficiente) faz a casa para alguém morar (causa final), mas a casa em si é composta das causas formal e material – aquilo que é conformado de modo a constituí-la (causa formal) e as matérias usadas para tanto (causa material). Essas duas causas são o cerne do Ser, o que Aristóteles dava o nome de substância, ou ousía, como se diz em grego. Desta forma, a substância é constituída de uma parte concreta (material) e uma parte ideal (forma). De fato, sem materialidade, a casa é só um sonho na cabeça, e, sem forma, é um amontoado de pedra, areia e tijolos dispostos aleatoriamente. Da substância, portanto, emerge a essência.

A partir dessas quatro ideias de Ser, criou-se toda uma tradição que veio navegando pelos tempos, que não vou detalhar muito, o que me faria fugir do escopo inicial do projeto. Basta dizer que a discussão sobre o Ser foi deslocada ao sabor das correntes filosóficas que foram se sucedendo. Na Filosofia teocêntrica que segue à época helênica, Santo Agostinho identifica o Hiperurânio platônico com o mundo das ideias divinas, e o Ser se desloca para Deus. São Tomás de Aquino, por sua vez, adapta as causas aristotélicas à sua Escolástica e atribui o Primeiro Motor Imóvel a Deus. Na medida em que novas ideias descolam a Filosofia da Teologia, também o conceito de Ser caminha para fora, e formulações como a monadologia de Leibniz e da causa sui de Espinoza trazem novidades que se afastam dos dogmas religiosos.

Até então, estávamos no âmbito da Metafísica, mas David Hume vem informar que esse papo de essências era uma mera habitualidade mental, que não existe essa coisa de Ser: apenas aprendemos a classificar os objetos por proximidade e ficamos procurando algo por trás deles. Nada disso – eles são o que são, e nada mais. A busca pelo Ser é pelo em ovo, na concepção de Hume. Kant vem com a questão epistemológica dos fenômenos e derruba de vez a Metafísica, incluindo seu cerne duro, a Ontologia.

Mas a Ontologia não morre, porque soube ser recriada pela Filosofia Contemporânea, que deslocou o foco da investigação filosófica do objeto para o sujeito. Distinguindo-se da Metafísica tradicional e apoiada pelas então recentes descobertas da Psicologia, a Ontologia passa a enveredar pelas sendas tortuosas da consciência, o principal sujeito do conhecimento. Tudo o que se apresenta a nós é apresentado para nossa consciência, e essa nunca é passiva. Ela introjeta seus conhecimentos, sua cultura, suas idiossincrasias e seus preconceitos em sua relação com o objeto, o que faz com que essa dialética não seja uma mera experimentação estática: a consciência do sujeito doa sentido ao objeto, que, por sua vez, transforma o modo de perceber à consciência do sujeito.

É nesse condão que a Fenomenologia de Husserl atua, ao considerar os efeitos da construção da consciência antes do contato com o objeto, o que faz com que a busca pela essência objetiva seja depurada de seus vieses. Partindo da premissa de que a consciência é ela mesma um fenômeno, um fenômeno mental, há a contraposição à materialidade do fenômeno propugnada por Kant. Há uma realidade ideal que vai além da realidade material; não como querem doutrinas misticistas, mas como podem provar as abstrações matemáticas, nem sempre concrescíveis, mas sempre portadoras de uma lógica inexcludente: se a matemática tem a capacidade de traduzir a natureza, também a tem para ir além dela, atuando abstratamente. É o eidos em ação.

Outros pensadores, como Heidegger e Sartre, levados pela novidade fenomenológica, passam a direcionar o foco para o Ser por excelência, aquele que sabe que é Ser e que se identifica como tal: o ser humano. Questões como liberdade, responsabilidade e livre-arbítrio ganham a tônica do discurso ontológico e lhe dão um novo e vasto campo investigativo. Afinal, não há sentido no mundo sem um Ser que lhe dê esse sentido: novamente o ser humano. A Ontologia passa a se ocupar daquilo que é a essência do homem antes do que é observável pela Ciência.

Para arrematar, dá para perceber como a Ontologia, lá no fundo, é a medula da Filosofia. Mesmo outras áreas basilares se questionam sobre o Ser. Quando a epistemologia pergunta o que é a verdade, a ética pergunta o que é o bem e a estética pergunta o que é o belo, fazem perguntas ontológicas: o que é. Daí a importância dessa área tão aparentemente hermética e pouco útil.

Recomendação de Leitura:

Mesmo não sendo diretamente um filósofo, é de Shakespeare, pela boca de seu personagem Hamlet, que temos uma das mais célebres frases ontológicas: o “ser ou não ser” que é proferido pelo personagem-título em sua angústia existencialista. Vale a pena ler.

SHAKESPEARE, William. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (Hamlet). São Paulo: Martin Claret, 2010.

* De acordo com a teoria filogenética mais bem aceita nos presentes dias.

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