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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (24 - Mitologia)

Olá!


De certa forma, somos eternas crianças. Desde que me conheço por gente, tenho curiosidade em entender como as coisas são, de onde vieram, para que existem. É claro que os petizes, com bilhões de neurônios arfando para receberem informações, estão naturalmente mais predispostos a perguntar por que, por que e por que. Mas nunca deixamos de ser curiosos. O que muda é a sofisticação com a qual trabalhamos nossas justificativas. É fácil perceber isso. Diga a uma criança pequena que ela nasceu de um repolho e ela engolirá facilmente o engodo. À medida que crescer e receber novos dados do mundo que a cerca, já não bastarão parlapatices desse naipe, e estorinhas do tipo “papai plantou uma sementinha na mamãe” vão surgir para aperfeiçoar a explicação, ainda evitando o terrível, diabólico e pecaminoso assunto do sexo, apesar de começar a tangenciá-lo. Até que a rua ou a internet ensinem as coisas como são.

No entanto, nem sempre o mundo tem um caminho simples, e as crianças têm estratagemas para complicar ad nauseam suas infinitas indagações: se eu vim do papai, o papai veio do vovô, o vovô do bisavô e assim por diante, quem foi o primeiro homem da família? Um honesto “não sei” não é opção (como já expliquei aqui), e, à falta de um elemento histórico mais bem embasado, cria-se uma narrativa paralela à realidade desconhecida. Se tudo encaixar direitinho, fica eternizada.

Levemos em conta outro fator. Quando falamos em termos individuais, tudo bem que certas histórias pareçam piadas internas, mas nós vivemos em sociedade. Para que isso seja possível, é de rigor que existam pensamentos comuns, que se espraiem coletivamente, sob um véu de concordância mais ou menos bem assentado. Isso significa que estes mesmos questionamentos brotados por indivíduos são a expressão dos anseios coletivos, e a comunidade, como um todo, crê em um conjunto de explicações que não são circunscritos à historicidade e à cientificidade, mas a interpretações livres que se transmitem entre as gerações. Isso é a Mitologia.



A ânsia da humanidade pelo conhecimento tem seus benefícios e seus efeitos colaterais. A busca se dá via nexo causal: se meu time perde, há motivo para isso – jogou mal, tem atletas piores, o técnico tomou um nó tático, o adversário subornou o juiz, sei lá. Há uma causa para o fato, e ela é perceptível. Mas o futebol é danado para causar surpresas, e muitas vezes nada disso acontece. Mesmo assim, nosso eterno rival nos prega peças, e aí, defronte de uma falha na causalidade, buscamos culpados que não fazem sentido. Sapos enterrados, caveiras de burro e outras macumbas são estratagemas comuns para trazer azar a um escrete, e mencionamos muito as vontades temperamentais de supostos deuses da bola. Essa atribuição de uma causa duvidosa a um objeto estranho na relação é o que chamamos de superstição. Junte-se à curiosidade já citada e temos as grandes usinas de força na Mitologia.

Por que é útil existir uma causa para tudo? De certa forma, para se conseguir medir consequências, ora bolas. Não deixa de ser uma forma de se preservar a espécie e a própria vida. Se a cada vez que eu perceber nuvens negras se formando, eu me recolher em local longínquo do alcance dos raios, estarei garantindo mais tempo de vida. E já que eu, homem primitivo, não compreendo coisas como condensação do vapor e carga elétrica das nuvens, mas sei muito bem do que é capaz uma pessoa furiosa, transfiro a ferocidade dos fenômenos meteorológicos para uma escala maior, que possa ser disparada por entidades sobre-humanas. Já falei bastante sobre isso.

Hoje, em um primeiro olhar, podemos encarar a Mitologia como uma coletânea de contos risíveis, mas essa é uma armadilha fácil de cair, principalmente porque desconsideramos duas questões básicas: a Mitologia não revela meras crendices, e a Religião tem a mesma base no seu nascedouro. Aliás, muitas das histórias que hodiernamente colocamos na prateleira da Mitologia, um belo dia foram fragmentos de uma Religião.

Com relação à primeira questão, é fato que a grande massa das diferentes mitologias tem o objetivo de explicar origens, acontecimentos que se perderam no tempo e que não possuem nenhuma forma de registro concreto. É por isso que os mitos mais conhecidos são aqueles de criação – do universo, do mundo, do homem, dos povos, do bem e do mal. Mas eles não ficam circunscritos a isso, e são reveladores de como os homens formulam problemáticas universais e como uma determinada sociedade dá resposta a elas. Essa é matéria da maior relevância para a Filosofia e Ciências Humanas, que usam e abusam de narrativas míticas para ilustrar seus estudos. A psicanálise, por exemplo, busca o mito de Narciso para falar do amor-próprio, o de Édipo e de Electra para recompor a difícil relação entre pais e filhos e o de Eros para balizar o tema da sexualidade. Camus lança mão do mito de Sísifo para falar sobre queda e reerguimento eternos sem busca de sentidos. Nietzsche refere-se a Apolo e Dionísio para configurar o homem em seus aspectos racionais e caóticos, e, como estas, há inúmeras outras referências à Mitologia em conhecimento científico e filosófico, pelo simples fato de que estes pensamentos não são novidade, e já foram tratados em algum tempo pelo seu véu poético. O que Ciência e Filosofia fazem nada mais é do que racionalizar um pensamento que já surgiu pelo viés lírico.

Falado isso, podemos entender que a Mitologia de cada povo também coloca diante de nós todo um sistema de pensamentos, adaptado para cada terra e circunstância, de acordo com a familiaridade com o mundo que o cerca. De fato, mitos inuits falam de corvos e baleias, narrativas tupis mencionam serpentes, histórias nórdicas falam em freixos, que constituem os elementos que fazem parte do seu quotidiano, dos seus quintais e das suas realidades. Não mencionam, pela ordem, sabiás e botos, camelos ou ipês porque estes são elementos estranhos à sua cultura. Raramente se abandona a lógica de usar componentes familiares para dar síntese ao desconhecido. No entanto, os tais sistemas de pensamento também demonstram como os povos encaravam a vida, e como suas culturas tratavam as mais diferentes questões.  Eu mesmo já tratei um monte de vezes do tema neste espaço, como a sacralidade do corpo humano em Antígona, a intuição das ideias e o seu reflexo do divino em Hermes Trismegisto, das agruras do destino e da inatingibilidade comum a todo universo na lenda indígena da Mantiqueira, e há ainda muitas e muitas outras traduções de traços culturais em narrativas que fazem abundantes remissões ao cosmos como justificativa das ações humanas, como é o caso da Cabeleira de Berenice, uma das inúmeras constelações que adotam aspectos da mitologia grega.

Diz-se que a rainha Berenice do Egito era conhecida por sua beleza, representada sobretudo pelos seus longos cabelos. Seu marido, o Rei Ptolomeu III saiu em batalha contra a dinastia dos Selêucidas, um império poderoso e conhecido por sua violência. Em tempos de comunicação muito difícil, Berenice ofereceu sua vasta cabeleira à deusa Afrodite, para que seu amado voltasse são e salvo da empreitada, o que de fato se deu. Promessa feita, promessa paga: Berenice cortou seus cabelos e os levou ao templo, dados em sacrifício. Algum tempo depois, após o sumiço das madeixas reais, o astrônomo Cónon de Samos ligou esse fato à constelação que fica na beirada da abóbada celeste no hemisfério norte, dizendo que Afrodite aceitou de bom grado a oblação e a colocou no firmamento, por isso o seu desaparecimento do templo. Desta forma, chegamos à conclusão de como era importante para os gregos e sua esfera de influência (Egito incluso) o sacrifício de orgulhos pessoais em prol de significados mais importantes, como a permanência do rei em seu lugar. Percebem como o mito diz muito mais do que a mera história que ele conta?

Outro exemplo que podemos dar vem da epopeia de Gilgamesh, mito mesopotâmico muito antigo, que narra a procura do protagonista pela imortalidade, através de aventuras incríveis, inclusive sua guerra com Enkidu, inimigo que posteriormente veio a se tornar seu maior companheiro, até este ser abatido pela deusa Ishtar, através de uma doença. Desolado, Gilgamesh passa a errar pelas terras, até encontrar a taberneira Siduri, a quem conta sua demanda. Esta lhe esvazia a esperança: os deuses destinaram o homem à morte, e retiveram a eternidade apenas para si. Como a busca pela imortalidade é uma causa perdida, o que resta é se desvencilhar de algo tão vão, e a verdadeira captura é por uma vida venturosa e prazenteira – a comida, a bebida, a dança, o agrado com as mulheres e com as crianças, tornar-se feliz com a vida como ela é, na própria vida e enquanto ela durar. É uma antecipação de milênios ao amor fati de Nietzsche.

Mais um, para fechar. O hidromel é uma bebida modinha entre os hipsters* do Brasil, mas que tem o estatuto de alcoolatura nacional dos povos nórdicos. Segundo eles, os deuses vikings, depois de muito tempo em guerra de duas facções, selam a paz misturando suas salivas, de onde emergiu um novo deus, Kvasir. Dois anões, Fjalar e Galar, maliciosamente desejosos de sua sabedoria, matam-no e recolhem seu sangue, que, no final das contas, contém a alma de todos os deuses de Asgard. Cozinham-no com mel e dão origem ao hidromel, que fica recolhido em barricas. Depois de se verem em apuros por outros assassinatos, os anões se veem obrigados a entregar o hidromel a Suttung, um filho de gigantes, que o exigiu para lhes poupar a vida. Odin, o famoso pai de Thor, por sua vez, queria para si a bebida mágica, capaz de soltar a poesia da língua de quem a consumisse. Transformado em serpente, o eterno símbolo da astúcia, ludibriou Suttung e tomou para si os toneis sagrados. Esta história toda dá dimensão do quanto os povos nórdicos davam importância para as artes poéticas. A capacidade lírica sai do mais íntimo de um deus que representa a fusão de toda Asgard, a terra dos deuses, e que passa por um processo de morte e traição, tão significativo é considerado esse dom. No fundo, é outra metáfora para a busca incessante pela realização dos desejos, além da assunção da poesia como tradutora da alma.

Já com relação à Religião, o buraco é bem mais embaixo. Talvez seja desagradável para muita gente fazer a comparação, especialmente porque o termo Mitologia já parece fazer remissão direta a mentiras, ou, mais tucanamente falando, a narrativas ilusórias que se fazem só para dar explicação a algo inexplanável, mas isso não é verdade. O grego mythos significa aproximadamente conversa, história contada, anúncio. Isso dá a ideia de acontecimentos transmitidos oralmente, de maneira mais pessoal e menos rigorosa, que é exatamente o mecanismo com o qual as religiões se constituem. Uma religião não brota da racionalidade colocada no papel, do cálculo, da comprovação, mas da intuição, do modo pessoal, como se a maneira de se perceber as coisas tivesse alguma coisa de revelação. Portanto, não deveria ser considerado ofensivo dizer que toda Religião possui seus mitos de criação, para dar um exemplo. Aliás, se pensarmos neste aspecto, veremos que toda Religião vê as demais como Mitologia, e é vista assim por elas. É por isso que, didaticamente, colocamos no âmbito da Mitologia as religiões que não tem mais praticantes. Assim, não se ofende ninguém.

E há mais uma coisa ainda. Nem toda narrativa mitológica desagua na esfera religiosa. Histórias que se contam de homens que de fato existiram podem engrandecer seus feitos ao ponto do lendário, de modo a se fazer assemelhá-los a entidades sobre-humanas, sem que, no entanto, coloquemo-las em um mundo fora do nosso. Um mito, portanto, não é automaticamente um elemento religioso. Para migrar para a Religião, é preciso que o mito ganhe aspecto ritual. Dessa maneira, o mito passa a carregar uma forma de concretização de seu aspecto simbólico, uma espécie de reavivamento de seu acontecimento, um memorial que o torna novamente presente, como acontece quando se nomeiam sacerdotes, pessoas apartadas do meio comum, para oferecer algum sacrifício a uma divindade, e aqui já não temos mais uma simples referência, mas uma reverência. O mito se concretiza pelo reconhecimento que se dá ao seu valor e pela necessidade de canalizar através de uma ação essa confiança que se atribui a ele, especialmente por intermédio de uma classe de doutos. Esse é o mito que se sacraliza e se transforma em Religião. O mito transformado já não é mais só uma história contada por um povo, mas uma maneira dessa história se presentificar a cada vez em que é ritualizada.

Mas, se a Mitologia não obrigatoriamente redunda em Religião, o contrário também é assim?

Não.

Recomendação de leitura:

É um livro simples, de um mitologista antigo e consagrado, que conta muitos episódios mitológicos, não só da Grécia, mas de toda a Europa. Não se trata de uma obra que sistematiza a Mitologia, mas de um elenco de vários mitos, o que lhe tira um caráter mais acadêmico, mas suaviza a leitura para quem só quer conhecer os mitos em si, e não a história de sua formação. Tem seu valor.

BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. Histórias de Deuses e Heróis. São Paulo: HarperCollins, 2015.

* Hipster é um termo que eu conheço a uns dois ou três anos, e que se refere a aqueles caras que gostam de ser diferentões. Aquelas barbas imensas são o exemplo mais flagrante deste tipo de moda. Justifica-se que hipster é uma atitude, e não uma moda. No fim das contas, é como o Ouroboros do punk, que lutou contra o mainstream até ele mesmo se tornar mainstream.

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