Boas festas, meus amigos! E, aproveitando desse espírito,
resolvi remexer em alguns apontamentos relacionados à religião vista sob o
ângulo da Filosofia. É bem certo que a Bíblia, verificada sob um prisma neutro,
é um livro preponderantemente teológico, é óbvio, mas dela é possível extrair
muito mais. Por exemplo, o mais bem acabado retrato da história de formação
judaica está contido em suas páginas, coligidas que são da tradição oral e
influenciada pelos acontecimentos de um povo que se viu, desde cedo, dominado e
sob interferência das mais variadas culturas impetradas pelos impérios que por
lá passaram. É também um compêndio legal, e nos mostra uma população que
imputou o sagrado em seu quotidiano de forma muito mais marcante do que faziam
gregos e romanos, para citar dois exemplos, porque o Deus dos judeus não era um
ser semelhante aos homens como os Júpiteres e Netunos da vida, mas havia ali
uma relação de hierarquia e sua correspondente reverência bem estabelecidas. Há
também a poética dos salmos e do Cântico dos Cânticos, além de esparsas
informações geográficas (embora significativas).
A Filosofia permeia, sim, toda a Bíblia, principalmente
quando observamos a área da ética e da política, mas isso ocorre de maneira
pulverizada e secundária, e é necessário que se interprete cada uma das
passagens para extrair esses princípios. Porém, existe um livro específico,
menos popular que os Evangelhos, as cartas paulinas ou os livros proféticos,
mas que tem seu foco especificamente voltado para um olhar filosófico. Trata-se
do Eclesiastes, ou Qohelet.Começando pelo nome: Eclesiastes é uma palavra grega que quer dizer algo como “pregador”. Em sua raiz, está a palavra “Ecclesia”, que significa “Igreja”. Ou seja, o Eclesiastes não é um livro necessariamente de um autor (a crítica não é favorável à indicação de que se trate do rei Salomão), mas de uma comunidade. Já o termo “Qohelet” (aportuguesando-se: Coélet) é a variação judaica para o termo descrito acima. Pertence ao grupo de livros denominados “sapienciais”, mas que possui um viés bastante diferenciado dos demais quando observado de perto.
O ponto principal do livro é a fugacidade e transitoriedade de tudo na vida. A palavra “vaidade” é utilizada inúmeras vezes para indicar o quanto o espírito humano é variável e falível, não possuindo aporte suficiente para perceber que o fluxo de mudanças captado pelos sentidos é ilusório. Neste ponto, é impossível não associar as ideias do Eclesiastes com Parmênides e a oposição ao panta rhei de Heráclito. Para compreender melhor, é preciso lembrar um pouco destes conceitos.
Os pensadores que vieram antes de Sócrates eram chamados de filósofos da physis. Eles procuravam um
elemento que fosse comum à constituição de todas as coisas, chamado de arché. Assim, Tales pensou na água,
Empédocles nos quatro elementos, Anaxímenes no ar; Anaximandro imaginou uma
substância intangível, que preenchesse não só os corpos físicos, mas também os
espaços vazios, o ápeiron. Heráclito muda
substancialmente o foco da pesquisa filosófica. A constituição cosmológica já
não se dá no campo físico, mas no devir,
na constante transformação. Desta forma, suplantamos as instâncias físicas e
inauguramos uma visão metafísica da realidade. Ele é autor de uma frase
famosíssima em filosofia que diz: “não se banha duas vezes no mesmo rio”. Isso
significa que, por trás de uma aparente imobilidade, encontra-se um universo
dinâmico, em constante transformação. Mesmo que o rio pareça sempre o mesmo,
suas águas já são outras quando me dirijo novamente para me lavar. E mesmo eu
já me mudei – de um dia para outro, milhões de células do meu corpo se
esvaíram, e outras nasceram; as minhas ideias e impressões já variaram, ainda
que minimamente. É exatamente isso o que quer dizer panta rhei: tudo flui, em inesgotável transformação. E isso se
traduz em um devir eterno, que tem até mesmo uma conotação física: o quente
esfria, o grande encolhe, o claro escurece. A mudança, portanto, se explica
pelo fluxo de contrários, que acabam por se harmonizar no cosmos.
Parmênides trabalha no polo oposto. Para ele, tudo é sempre
e permanentemente igual. O movimento pensado por Heráclito é, este sim,
ilusório. Isso porque ele pensa a realidade como a existência do Ser, nas
coisas que existem essencialmente. Se o Ser é o que o identifica no mundo, não
há a possibilidade de ele não ser. Confuso, não é mesmo?
É que Parmênides entende que não é possível que algo exista
e não exista ao mesmo tempo. Quando algo está em movimento, este algo se
desposiciona de seu próprio ser, não está mais onde deveria estar,
transforma-se em não-ser. E não é possível alguma coisa ser e não-ser ao mesmo
tempo. A explicação é que o universo não se movimenta em opostos: quente e
frio, grande e pequeno, escuro e claro, como gostaria Heráclito – são todos
aspectos de um mesmo Ser. Se o céu está escuro ou claro, ele não deixa de ser
céu. Se o tempo está frio ou quente, ele não deixa de ser tempo. Se um objeto
está presente ou ausente, ele não perde sua essência, a de ser um objeto bem
definido. Não importa que uma mosca esteja com asas, que seja preta, que voe
apenas à noite, ela é uma mosca, porque tem a essência da mosca, tem o Ser da
mosca. A impressão que temos de se tratar de coisas diferentes provém de nossa
incapacidade de perceber claramente a unidade universal, porque nossos sentidos
são frágeis. Eles não têm o potencial de observar diretamente o Ser em sua
essência, mas apenas os seus fenômenos (ser quente, frio, claro, escuro, alto,
baixo, etc).
Qohelet alinha-se a Parmênides na questão da imobilidade do
Ser, pelo menos enquanto o mundo que se refere a aparências. O termo “vaidade”
ganha aqui seus contornos definitivos. De toda a sua poética, é possível
extrair que a subsistência da realidade se dá pela impossibilidade da
transformação:
“Uma
geração passa, outra vem; mas a terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol
se põe; apressa-se a voltar a seu lugar; em seguida, se levanta de novo. O
vento vai em direção ao sul, vai em direção ao norte, volteia e gira nos mesmos
circuitos. Todos os rios se dirigem para o mar, e o mar não transborda. Em
direção ao mar, para onde correm os rios, eles continuam a correr. Todas as
coisas se afadigam, mais do que se pode dizer. A vista não se farta de ver, o
ouvido nunca se sacia de ouvir. O que foi é o que será: o que acontece é o que
há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol. Se é encontrada alguma
coisa da qual se diz: Veja: isto é novo, ela já existia nos tempos passados.
Não há memória do que é antigo, e nossos descendentes não deixarão memória
junto daqueles que virão depois deles.”
Ao afirmar que “não há
nada de novo sob o Sol”, Qohelet constata e estabelece uma diferenciação
que, desta vez, leva-nos a uma referência platônica (que, diga-se de passagem,
é bem posterior à redação do livro ora dissecado). O cuidado de observar que
estas coisas se passam “debaixo do Sol” indica que o autor imagina existir um
lugar onde habite a essência das coisas. O que estaria acima do Sol? Deus, com
certeza. Eterno, imutável, onipresente, absoluto. O que torna possível identificá-lo
com o mundo das ideias de Platão, onde seria possível enxergar a essência das
coisas. Tanto Deus para Qohelet, quanto o Hiperurânio (significa supra-celeste,
o que está acima dos céus) para Platão, são o habitáculo de um mundo
inteligível, extra-sensório, que somente é perceptível pelo intelecto. Ambos os
autores se afastam radicalmente do materialismo para vislumbrar a questão do
Ser permanente de Parmênides.
Desta constatação metafísica, Qohelet obtém uma referência
ética, e que por vezes parece contraditória à lógica judaico-cristã. Se o mundo
é imutável (“Reconheci que tudo o que Deus fez
subsistirá sempre, sem que se possa ajuntar nada, nem nada suprimir. (...)
Aquilo que é, já existia, e aquilo que há de ser, já existiu; Deus chama de
novo o que passou.”), de nada vale ao ser
humano procurar antecipar ou postergar sua própria existência. A vida é feita
para ser vivida no momento, sem, no entanto, a absorção de princípios
materialistas. Essa característica aproxima Qohelet dos estoicos (leiam aqui)
e afasta dos epicuristas, porque essa vivência se dá sem uma busca desenfreada
de prazer, mas de resignação pelo que é possível alcançar. Outros livros
bíblicos estão revestidos de angústia, como é o caso das Lamentações de
Jeremias. Mas, neste caso, temos um motivador histórico muito forte, que é a
invasão e destruição da cidade de Jerusalém pelos babilônios. Eclesiastes não
tem esse pano de fundo. O que provoca sua marca de angústia é uma constatação
existencial, a própria vida é um mistério de difícil deslindamento e solução.
Esse é o grande diferencial desse livro com relação aos demais presentes na
Bíblia, que procuram oferecer como solução a vida futura, post-mortem. O Eclesiastes pensa o presente e a vida inserida no
tempo perceptível ao intelecto.
O livro de Eclesiastes toma, portanto, um aspecto
negativista e pessimista, e assim o é. Li em algum lugar que se trata do
Schopenhauer bíblico, principalmente pelas inúmeras referências que faz à
inexorabilidade do destino, que é a morte. Em Qohelet, temos a morte como
fundamento de igualdade ao ser humano: o rei e o plebeu, o sábio e o insensato,
o poderoso e o escravo, todos tem um final comum e um fardo a carregar – o
esquecimento. O sistema social parece apontar para um enaltecimento das
virtudes da riqueza, da exploração do trabalho, mas essa sensação é uma
derivação da arrogância humana e da crueldade dos tiranos.
Para concluir, podemos observar que o livro de Eclasiastes é, bem mais que um tratado de teologia ou uma obra de filosofia, um texto humano. É um livro que espelha as referências de seu tempo, escrito por uma comunidade que nunca conseguiu se constituir como nação. É, enfim, um livro um tanto quanto menosprezado pela Filosofia por estar circunscrito ao círculo teológico, mas ele vai muito além disso ao retratar, com precisão cirúrgica, toda a fragilidade das convicções dos seres humanos.
Recomendação de leitura:
O livro do Eclesiastes é
encontrável em qualquer versão da Bíblia. É uma leitura bastante gratificante,
principalmente por conta da poética e da forma diferente de tratar a questão da
existência. Para elaborar este texto, utilizei a seguinte versão:
BÍBLIA SAGRADA. Eclesiastes. São Paulo: Ave Maria, 2003.
(publiquei outro texto em que fala mais algumas coisas sobre o Eclesiastes, mais notadamente na questão do tempo contido neste escrito. Quem tiver vontade pode lê-lo neste link).
Muito bom seu texto
ResponderExcluirMuito obrigado!!! Sejam sempre bem vindos a este espaço.
ExcluirIncrível!!
ResponderExcluirMuito obrigado!!! Volte aqui sempre...
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