Olá!
AACC's são maneiras interessantes de avaliar o conhecimento de um aluno. Gosto delas. Tá certo, dão muito trabalho. Precisei fazer uma série, que são exigências da minha facu. Claro, umas são mais interessantes do que as outras, mas algumas delas me chamaram especialmente a atenção, como a análise que fiz do filme "O fabuloso destino de Amélie Poulain".
A análise de obras de arte em Filosofia não é uma mera resenha. É preciso fazer ligações com as principais linhas de pensamento, citar autores e blá, blá, blá. No filme em questão, é possível ver dois focos principais: a personalidade construída sob um prisma educacional anti-convencional e os conflitos éticos estabelecidos para uma pessoa cuja formação foi delineada em um ambiente de isolamento.A narrativa é construída sobre a história de Amélie Poulain, uma menina tida como doente pelo pai, que resolve atribuir sua educação unicamente à responsabilidade da mãe. A metáfora do peixe suicida é uma referência ao ambiente neurótico que se forma de maneira sufocante. A progressão deste fato se dá até a morte prematura da mãe (ironicamente, atingida pelo salto mortal de um suicida). Os laços entre pai e filha, ao invés de se aprofundarem, tornam-se ainda mais superficiais. A tensão se alastra até culminar na saída de Amélie de casa, tão logo tenha atingido a maioridade.
O centro dramático da obra se dá no momento em que Amélie descobre escondidos em seu apartamento alguns objetos pertencentes a uma criança que por lá habitou antes dela. Nesse ponto, é possível discorrer sobre a função da memória e, principalmente, do que representa o tempo. O debate é sobre a existência tangível do tempo passado, ou seja, de que forma as recordações tornam o passado eternamente presente.
E aqui, é inevitável mencionar dois autores, donos de teses maravilhosas sobre o tempo: Santo Agostinho e Henri Bergson.
Demos preferência a Santo Agostinho, senhor mais idoso. Para ele, o tempo pode ser definido com a seguinte frase: "Se ninguém me perguntar o que é o tempo, eu sei; se eu precisar explicá-lo, já não sei". Poesia à parte, é na sua obra "Confissões" que será feita uma das mais belas definições sobre o tempo. Agostinho especula sobre onde se dá existência real do tempo, problema aparentemente insolúvel: o passado já se deu, o futuro ainda não veio e o presente é um ponto indefinível, que pode ser subdividido ao infinito. Portanto, não adianta procurar o tempo no universo imanente, ele é espiritual. Vejam: tanto a memória (passado) quanto a espera (futuro) são fenômenos intelectuais. Observar um álbum de fotografias, por exemplo, é um ato presente de reacender a memória, trazer o passado de volta. Fazer um orçamento é um ato presente de exercer uma previsão, de antecipar o futuro. Ambos são atos abstratos, psicológicos, espirituais, eminentemente humanos. A abstração se estende pela memória para resgatar o tempo passado e trazê-lo de volta ao presente. Também se estende para o futuro para trazê-lo ao presente e antecipá-lo. Esse movimento é elástico - há momentos em que se estica (extensão) e há momentos em que se condensa (distensão).
Santo Agostinho faz uma comparação muito bela para explicar sua teoria da interpenetração dos tempos: vê a interpretação de uma música como melhor exemplo. Para ele, tempo e música tem em comum a medida, o ritmo, o fluxo. Antes de se iniciar a música, todo ato temporal está no futuro. O tempo então dilata-se para a frente e começa a cumprir os compassos sonoros. A cada execução, a expectativa do que estava por vir tranforma-se em passado. Ao recordar-se da execução, o tempo muda de lado: estica-se todo para trás. Então o ciclo recomeça: começamos a cantarolar a música. A cada novo arranjo, uma nova extensão para o futuro; a cada nova execução, uma nova condensação no presente; a cada vez que se recordar da música, uma nova extensão para o passado. Este estica-e-encolhe é o próprio fluxo do tempo na consciência ou no espírito, onde passado, presente e futuro se entrelaçam e se apresentam ao sujeito.
Tá ficando comprido, e ainda tem bastante prá dizer. A complementação de Bergson e as ligações com a ética aplicada em Amélie Poulain vão ficar para o próximo post.
Recomendação de leitura:
Santo Agostinho é um doutor da Igreja. Como tal, a indicação que faço aqui é repleta de referências religiosas, mas seu fundo filosófico é bastante interessante. E, mesmo na composição doutrinária, nosso filósofo é brilhante.
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1977.
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