Olá!
Já há algum tempo, pretendo colocar no papel algumas idéias que tenho com relação a uma sociologia dos grupos humanos agregados em torno de um símbolo, em especial as torcidas de times de futebol e escolas de samba. Acontece que, mais uma vez, a violência destas mesmas torcidas obscureceu o evento esportivo para colocar à tona o espetáculo da barbárie. Como todos nós temos acompanhado pela imprensa, dois torcedores morreram em um confronto entre Gaviões da Fiel e Mancha Alviverde, além de uma boa quantidade de feridos. Não é a primeira vez. Não deverá ser a última, principalmente por conta da burrice dos detentores do poder público. Acham que resolverá alguma coisa impedir as torcidas em questão de irem ao estádio. É simplesmente ridículo, ainda mais lembrando que a briga deste último domingo aconteceu a quilômetros do Pacaembu. Não sou adepto das organizadas, não pertenço a nenhuma nem pretendo pertencer, não deixei de torcer pela Vai-Vai por conta do surgimento da Gaviões. Não torço para a torcida, torço para o Corinthians. Mas com certeza não é isso que vai resolver a problema, nosso ordenamento jurídico e nossa gestão da segurança pública são frouxos demais.
De toda forma, as torcidas de São Paulo guardam mais semelhanças que diferenças, em especial as torcidas de Corinthians e Palmeiras. Em sua origem, dividiram a preferência do proletariado paulistano, constituídas que foram, em sua maioria, por operários das regiões fabris da cidade. O fato de que o nome original do Palmeiras fazia referência à Itália pode ter sido um atrativo à respectiva colônia na época, mas isso se desfez por conta da mudança de nome e da quantidade de títulos que foram sendo angariados. Bem é verdade também que a Itália não era um país exatamente unificado. Havia uma rivalidade bastante grande entre o norte industrializado e o sul agrário, o que fez com que não houvesse uma adesão total da colônia. A questão da preferência não se dava por uma questão de classe, esta se dava em um mesmo nicho. Talvez por esse motivo o Derby seja o principal clássico do estado, a despeito do fato de que a torcida palmeirense hoje seja em menor número que a do São Paulo.
Por que duas torcidas que em tanto se assemelham, que constituem complementos recíprocos, adotam atitudes que acabam por traspassar o próprio âmbito da animalidade?
Problemas complexos exigem análise profunda. O argumento de que a lei é frouxa e o aparato policial é insuficiente são válidos, mas só enquanto pensarmos em termos de aparelhamento coercitivo. Não serve para explicar as causas da violência, mas apenas para observar a deficiência na repressão.
Também o argumento de que os membros das torcidas são bandidos que agem premeditadamente, e que merecem se estapear até a morte é simplista e perigoso. Será que não estamos assistindo apenas a uma amostragem da predisposição dos espíritos em um sentido geral em nossa sociedade? Não teremos derivações ainda piores daqui a pouco? Portanto, não basta combater a violência escancarada: é preciso captar onde ela está latente, seus motivos e tentar compreendê-los, para, aí sim, ver o que podemos fazer.
Já discorri sobre a violência por estas plagas. Neste texto, comentei o fracasso do indivíduo em uma sociedade marcada pelo pessoal. Neste outro, usei Freud para tentar entender o laceamento da consciência e das repressões morais diante das reações instintivas. Agora, vou chamar dois outros figurões da psicanálise caros à Filosofia para formular uma teoria que explique o estado de coisas apresentado: Carl Jung e Jacques Lacan.
Jung era um discípulo de Freud, mas acabou se opondo ao mestre em alguns pontos fundamentais sobre a teoria psicanalítica. Sua principal inovação foi a seguinte: enquanto Freud via o inconsciente como um jogo contínuo entre o instinto e seus refreadores (Id x Superego) mediados pelo Ego, motorizados principalmente por pulsões de natureza sexual, Jung sinalizava com um componente inconsciente adicional. Para ele, a rede instintiva residente no Id explicava bem o inconsciente pessoal, próprio de cada contribuinte individualmente, mas também haveria um componente inconsciente comum a todos, o inconsciente coletivo.
O inconsciente coletivo teria a propriedade de se constituir de uma unidade hereditária, transmissível de geração a geração, através de uma estrutura que Jung chamou de arquétipo. Este não se constitui propriamente de uma idéia inata, como adorariam os racionalistas, mas de uma predefinição de conceitos existentes no equipamento psíquico humano. Essas imagens são adquiridas e adicionadas ao patrimônio inconsciente através da repetição de experiências no decorrer de várias gerações, de forma a produzir um modelo primordial a qual nossa consciência se encaixaria.
Jung, ao menos no plano nominal, não foi um estruturalista (corrente que já espanei de leve aqui), mas é impossível não pensar em estruturas a partir da teoria dos arquétipos. E, com isso, podemos pensar em uma estrutura da violência arquetípica.
Atavicamente falando, o homem tem a violência dentro de si, contrariando o pensamento de Rousseau (infelizmente). Isso porque, para nossos ancestrais, a violência não era uma opção, mas uma necessidade. O homem precisava enfrentar feras muito melhor equipadas anatomicamente do que ele. Para fazê-lo, exigia-se um agir em grupo. Assim, conseguia-se maior eficiência na caça e na defesa. A constituição desses agrupamentos também levou a uma necessidade de ampliação de seus respectivos espaços vitais, e isso não era feito com trocas de flores ou com alguma forma primitiva de carteado, mas com ferramentas de guerra. Desta forma, ficou impresso no caráter da comunidade uma espécie de registro do uso do combate voltado à própria sobrevivência, e que podemos chamar de algo como arquétipo da guerra.
Ok, temos inscrito em nosso inconsciente uma predisposição para o combate, para o enfrentamento como meio de sobrevivência. Só que há um problema – o mundo moderno desfez a necessidade de que o homem se debata com bichos para se alimentar, e também a diplomacia vem procurando tomar o lugar das antigas rixas tribais, mas o arquétipo permanece e o homem precisa satisfazê-lo. Uma das soluções encontradas é fazer com que estas construções primordiais sejam preenchidas por conteúdos deslocados do concreto para o simbólico, e o esporte é uma das mais significativas simulações do confronto. O futebol, como esporte coletivo de fácil prática, presta-se ainda melhor a esta tarefa. Daí, o gosto pela conquista que o esporte proporciona: a satisfação de uma necessidade atávica.
Tudo seria lindo se parasse por aí. No entanto, as brigas de torcida mostram que há uma tendência em se retornar ao real palpável. Algo faz com que os ânimos se acirrem a tal ponto que o simbolismo da luta contido no esporte derive novamente no concreto, e aí o pau fecha. O rival esportivo vira ameaça real, um inimigo a ser derrotado. Esse seria o momento exato de entrar em ação o componente racional, que deveria fazer com que se impedisse a barbárie, mas nem sempre o faz. Se o arquétipo da guerra existe, funciona e se extravasa, não existiriam outros códigos igualmente inconscientes que poderiam refrear esses ímpetos? Vamos chegar agora em Lacan.
Nosso ilustre francês reconheceu no inconsciente uma estrutura que se forma através da linguagem. Isso equivale a dizer que a carga simbólica contida no inconsciente é praticamente seu componente primordial, já que a linguagem é formada de representações simbólicas. Para explicar como o símbolo se forma no ser humano, Lacan utiliza um ótimo exemplo, chamado de “estágios do espelho”, que decorrem na vida de uma criança de 6 a 18 meses. É assim: a criança ao tomar contato pela primeira vez em sua vida com um espelho, não se reconhece nele. Acha que está diante de um outro ser, concreto como ele, tanto que ao tentar tocá-lo, não tem a expectativa de tomar contato com algo liso e duro, mas com outro corpo humano. Em um segundo momento, a criança já parte para uma construção mental mais elaborada, já sabendo que o reflexo não representa o real, mas uma imagem. Neste instante, inicia-se uma migração do real para o simbólico, mas a criança ainda não reconhece a si própria no espelho, o que acontecerá no terceiro estágio, quando a criança saberá que a imagem refletida é dela. Desta forma, a criança consegue se enxergar fora de si, forma de si mesma uma imagem, e se reconhece não apenas no círculo das realidades, mas também no plano simbólico. Ela também pode ser simbolizada e estruturada como linguagem. Temos então três mundos: o concreto, o imaginário e o simbólico, sendo que o último é que caracteriza o ser humano como tal.
Vamos adiante. Essa interação entre os três mundos adquirida pela criança acaba por se ver refletida em toda a sua cadeia de relacionamentos, e suas necessidades e desejos também passam a possuir um plano simbólico. Para Lacan, a satisfação de necessidades, em especial na criança, se iniciam através de uma demanda. Porém, estas necessidades nem sempre são puramente fisiológicas, ou seja, concretas. Neste caso, a demanda vem em mão dupla. Ocorre, por exemplo, quando a criança começa a ficar birrenta, chatinha. Normalmente identificamos: “Tá com sono”. E temos de fato uma necessidade concreta e fisiológica – a de dormir. Mas aí também há uma carga afetiva: a necessidade de amor. A criança não quer só dormir, quer também carinho. Sua necessidade não é apenas física, é também simbólica: a proximidade com a mãe. Às vezes o fisiológico é apenas um subterfúgio para a realização do simbólico – a criança quer se alimentar apenas pela concessão do amor, e não por uma necessidade real de alimento.
Nem sempre é fácil perceber a demanda da criança. Suprir unicamente as necessidades afetivas não mata a fome, mas não abastecê-las é muito mais prejudicial. Isso porque este jogo simbólico é estrutural e indissociável da psique. A criança procura amor e encontra algo material, mais e mais. Insiste em sua demanda e continua a receber o que, no final das contas, não quer. De modo que, ao cabo de muitas recusas, acaba por entrar em um estado chamado por Lacan de “anorexia mental”, que redunda em efeitos extremamente graves, como a depressão e o suicídio. Sem chegar a extremos, se o indivíduo não encontra respostas às suas buscas no núcleo mais próximo, vai tentar achá-los em outro lugar. Só que o processo de troca propiciado pelas requisições feitas na infância é também de aprendizado. A criança não aprende apenas a receber afeto, mas também a concedê-lo. Se não recebe carinho, mas indiferença ou ódio, é isso também que terá a oferecer. Quando esse ser conseguir se identificar a um grupo, devolverá aquilo que recebeu. Portanto, em um grupo com afinidades ao confronto, estará arado, semeado e adubado o território onde essa violência se fará manifesta. O arquétipo de violência se faz prevalecer.
Desta forma, podemos concluir que a falta de limites nos confrontos entre torcidas está ligado a uma auto-estima destruída. Os membros destas organizações (aqueles que perdem a noção do limite) muito provavelmente têm seus equipamentos psíquicos danificados por anos de indiferença afetiva de seus pais e daqueles que os rodeiam, e encontram na violência um lugar para suprir carências que deveriam, em suma, ter sido mitigadas por um componente muito simples, mas muito altruísta: o amor. Este arquétipo da relação cordial é que teria força suficiente para se impor ao espírito guerreiro ancestral, e mantê-lo em seu devido lugar (em nosso caso, no âmbito esportivo): a dimensão simbólica.
Não quero aqui imputar a culpa pelas mortes decorrentes destes confrontos aos seus pais. A vida de uma pessoa não se limita ao convívio familiar, mas sim a toda sociedade. Em última instância, é ela que permite a existência de tais grupos, e estas ocorrências são sintomas de uma doença social formada por muitos componentes que não conseguem inibir a ação desta agressividade exacerbada arquetípica.
Para finalizar, um outro detalhe importante. A mãe de um dos torcedores falecidos não permitiu que nenhum símbolo do clube ou da torcida fosse utilizado no enterro de seu filho. Deveríamos pensar bastante seriamente diante desta atitude. Porque fiz, com este texto, rolar um papo meio louco sobre imagens e símbolos, mas o descuido que gerou a ocorrência, no final das contas, ocasionou um fato que pode ser interpretado de muitas formas à luz da Filosofia em sua simbologia, mas que para os pais do rapaz é real, palpável, observável e, infelizmente, muito trágico. O que temos de prático é isso.
Recomendações:
Jung é um dos mais conhecidos autores derivados da psicanálise freudiana. Sua obra é bastante interessante e, como não poderia deixar de ser, complexa. Indico o que segue:
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.
Lacan é um autor extremamente hermético, difícil de ler, que escreveu mais à base de artigos do que em livros propriamente ditos. Para os iniciados em Filosofia ou Psicologia, ou a quem quiser se aventurar:
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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