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segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Tim-tim! Sobre o efeito coquetel e a sofisticação dos mecanismos de atenção humanos

Olá!

Morar em prédio tem suas benesses, mas também tem suas complicações. Volta e meia vem uma galera que é ruidosa na minha casa, jovens que são. Eu, descendente de italianos e espanhóis, também não sou o que propriamente se pode chamar de silencioso. E o resultado é a reclamação dos vizinhos mais rabugentos. Bom, como minhas contas estão (ainda) em dia e não é de madrugada, deixo que digam, que pensem, que falem.



Eles não viram nada, os meus vizinhos. Hoje em dia minha família é pequenininha, e o máximo de gente que reúno, entre amigos e afilhados, são umas quinze pessoas. Mas nos tempos em que eu era rapaz, o número era bem maior e mais frequente. Na casa da minha madrinha, todo fim de semana se juntava uma pequena multidão, indefectivelmente. A tia Nena tinha uma mesa gigante, em que, se bem espremidos, cabiam quatorze viventes. Havia ainda uma mesinha de boteco que poderia servir de extensão, elevando o número para 18 contribuintes. E tinha também o pessoal que ficava fora da mesa, ajudando na manutenção da louça ou tentando inutilmente escapar um pouco dos resíduos do prato principal: o tabaco. Sim, era difícil reconhecer as pessoas circunstantes, tal a espessura da cortina de fumaça, devidamente aromatizada com café, feito aos decalitros. Estou mencionando apenas a plebe rude que se aglomerava na cozinha, deixando de lado os que procuravam a sala para ver futebol, o quintal para brincar ou os quartos para pestanejar.
 
Para chegar ao tema que quero discutir hoje, preciso pedir um pouquinho de paciência para explicar a dinâmica da ocupação dos lugares disponíveis na cozinha da extinta madrinha. O pessoal não chegava todo mundo de uma só vez. Quem chegava primeiro, ocupava as cadeiras mais ao fundo, deixando os lugares próximos à porta disponíveis. Vou fazer um rápido croqui:



Desta forma, temos a distribuição de 23 pessoas. Naturalmente, em tal amostra não é possível obter uniformidade de interesses, e estes variavam dentro das próprias famílias – os homens mais velhos gostavam de futebol, as mulheres de assuntos familiares, os jovens de tecnologia, as crianças de criancices. Vou melhorar o diagrama, distribuindo as pessoas de acordo com suas preferências temáticas:


Como não éramos dados a monólogos, e como eram extremamente raras as reuniões para tratar de assuntos específicos (acho que lembro apenas das combinações de Natal – você faz isso, eu aquilo, fulano traz bebida – que, aliás, nunca davam certo), geralmente a conversa começava em torno de um determinado assunto, mas tergiversava rapidamente para outros caminhos. Por exemplo, quando a coisa enveredava pelo pantanoso terreno da política, os ânimos se exaltavam e o volume subia. Só que nem todos queriam discutir se o Jânio foi forçado a renunciar ou se estava bêbado, e começava um certo paralelismo nas conversas. O fenômeno se intensificava com o correr do tempo, aumentando a quantidade de assuntos concorrentes. E a diversificação fazia com que o volume global dos debates subisse sem que ninguém se desse conta. Como o espaço acabava se tornando pouco, pela quantidade de gente, ninguém podia se mover muito de um lugar para o outro agrupando temas, o que seria mais racional. A rede de comunicações em sua intrincada diversidade e ficava mais ou menos assim:

O tom de voz, evidentemente, tinha que ser muito elevado, lembrando bastante a xepa da feira do Glicério. Se algum primo menos frequente aparecesse nesse momento (o que não era raro), teria como percepção uma maçaroca sonora indefinível, muito embora ele mesmo se integrasse em uma das redes em poucos minutos.

Impressionante! Apesar da emboleira acústica, todos conseguiam se compreender, cada um em sua rede particular. Por mais de uma vez, cheguei a pensar no fenômeno, mas nunca me aprofundei na coisa, até começar a estudar a teoria da Gestalt. Já comecei a lidar com o assunto no meu recente texto sobre a pareidolia, mas antes de tratar diretamente sobre ele, quero desenvolver o tema da atenção acústica, conhecido pelo simpático apelido de “efeito coquetel” (cocktail party effect).


Bem, é preciso, para compreender a seletividade auditiva, estabelecer alguns critérios. Em primeiro lugar, é preciso que os idiomas falados na tertúlia sejam compreensíveis por quem os ouve. Depois, é preciso que tenham um certo nivelamento no volume, porque é evidente que não se consegue conversar existindo uma britadeira na sala. Postas estas condições, prossigamos.


O efeito coquetel é uma bela amostra de como funcionam os processos atencionais do ser humano, e de como esses processos são importantes nos mecanismos de cognição. O nome do efeito é “coquetel” para fazer referência à possibilidade de conversar em um lugar com muitos sons paralelos, inclusive música e ruídos não vocálicos, como os copos que brindam, talheres que agridem os acepipes, cadeiras que se arrastam; e também o exemplo dos meus encontros familiares é bastante didático, mas temos esse efeito sendo usado em lugar muito mais importante: a sala de aula. O que explica a diferença de aprendizado entre os alunos? Por que determinado aluno consegue, no miolo de uma sala hiperativa, produzir resultados positivos?

Porque ele consegue fazer bom uso de seus mecanismos atencionais, e abstrair o ruído ao redor é uma dessas armas. Não há aqui heroísmo ou condenação – tem gente que consegue desligar o botãozinho e se concentrar em uma leitura em qualquer metrô Sé às seis da tarde (eu), e tem gente que precisa de um quarto fechado, um ambiente tranquilo, um chá de camomila adoçado com stévia. Mais sofisticado ainda é o modelo que se supõe que o cérebro use para resolver o problema do som entre sons.


A maneira como o cérebro providencia a diferenciação dos sons é surpreendente. Sabemos que toda a decodificação dos sinais sonoros é feita por ele, mas, ao contrário do que se pensava, o cérebro não recebe uma massa sonora informe e sintoniza apenas o que lhe interessa. Cientistas suíços tem pesquisado uma outra maneira de como se realiza esse processo, com conclusões parciais muito interessantes. Segundo essas pesquisas, a cóclea, que é a estrutura mais importante do ouvido, realiza a maior parte do serviço. É uma estrutura muito sensível, em forma espiral, que tem a característica arquitetural de captar e processar sons, amplificando os mais fracos e distinguindo uns dos outros. Quando estamos conversando em um ambiente tumultuado, o cérebro vasculha seus registros e envia para a cóclea os padrões sonoros familiares e esta devolve ao cérebro os impulsos sonoros já filtrados. Se a padronagem sonora não existe nos arquivos cerebrais, não há problema: o cérebro é extremamente rápido em gravar um novo padrão sonoro provisório. Bastam algumas palavras proferidas por um professor, por exemplo, para que o ouvido consiga dados suficientes para manter a audição, e a cada minuto que se passa ouvindo, melhor absorvido esse padrão fica. A descoberta foi obtida a partir do desenvolvimento de uma equação e de um algoritmo instalados em uma cóclea artificial, um aparelho eletrônico que busca simular, com máxima exatidão, o comportamento da cóclea humana, ou seja, através das reverberações do som no interior da concha e da captação dos mesmos pelas enervações auditivas.


Por que a coisa funciona assim? Fica até chato, mas tenho que citar mais uma vez a seleção natural para justificar o surgimento de uma determinada característica humana. Imagine dois homens sentados à sombra de uma árvore, no meio de uma selva, refletindo sobre o filé de gnu extremamente mal passado que acabaram de comer. Um deles tem percepção auditiva que lhe permite a distinção sonora, o outro não. Em um estado de letargia pós-prandial, alguns de seus sentidos afrouxam a corda, enquanto outros permanecem com a sentinela armada. Dentre os sons padronizados típicos de uma tarde modorrenta na floresta, como o som do vento, o pio das aves, o ruído das cigarras, surge um barulho leve, mas claramente perceptível: passos. O ouvido do primeiro homem distingue o som específico emaranhado no meio do ruído geral e dispara o sinal de alerta para o cérebro e os demais sentidos, pontificando que há algo de podre no meio da Dinamarca. Tanta coisa pode ser – alguém que se aproxima para condividir árvore e leseira, um simples passante, um bicho curioso dando bobeira ou uma fera babando para lhes fazer de fast-food. Qual dos homens teria melhor condição de se defender? A vantagem biológica de distinguir um som entre outros é mais do que óbvia.


Mas o processo de atenção é ainda mais sofisticado. No exemplo anterior, a distinção sonora se dá instintivamente – é a reação imediata do organismo a uma ameaça potencial e iminente – mas nem sempre o fenômeno ocorre involuntariamente. Eu consigo dirigir minha atenção intencionalmente, e, com isso, restringir a minha percepção a detalhes. Vamos primeiro para um exemplo visual. Imagine-se diante do seguinte quadro, de autoria do meu amigo e vizinho Zé Carlos Camargo:



É uma obra razoavelmente grande e detalhada. Observando o todo, temos uma feira popular em alguma aldeia perdida no passado. Mas podemos aproximar o foco e extrair algumas particularidades:


Em um plano médio, descartamos as informações paisagísticas e captamos o centro nervoso da feira: a movimentação das pessoas. Deslocando a atenção apenas para o primeiro plano...


... e veremos o carroceiro, que arranja suas frutas de forma harmônica. Se apurarmos ainda mais o detalhe, começaremos a observar alguns aspectos técnicos, como a trama do tecido onde a pintura foi realizada e o manejo em estilo impressionista, com contornos pouco marcados:


Há uma sutileza: é muito mais fácil se apegar a um detalhe do que ao todo. Note como seus olhos não param de se deslocar sobre a tela para lhe captar o sentido, e como é mais fácil se deter em uma área pequena do quadro.

Com o processo auditivo, dá-se a mesma coisa. Pegue uma música qualquer, que você goste, com várias vozes e instrumentos. Para elaborar este exemplo, estou ouvindo Look at Yourself, do Uriah Heep. Ouça uma primeira vez, procure distinguir os sons mais aparentes, normalmente os agudos, como riffs e solos de guitarra; ouça novamente e perceba como os teclados tecem a cobertura da música, fazendo com que não haja vazios. Ouça mais uma vez e volte seu foco para a cozinha. Perceba como o baixo conjuga ritmo e melodia – é como se ele emprestasse sons determinados para a bateria. E, por falar nela, perceba a matemática por trás do seu compasso. Ouça como são alternadas ciclicamente as pancadas em bumbo, caixa e chimbal, e como o baterista quebra esse ciclo em suas viradas. Agora vamos escutar a parte vocal; perceba o estilo de voz do vocalista – se é contínua, se há trema, se é extensa, se é intimista, se é gutural. Perceba também os refrãos: eles não são cantados em uníssono – há cinco linhas diferentes. Vamos ouvir a música uma última vez, objetivando o todo harmônico. Não vamos mais afinar o ouvido para escutar algo específico, mas apenas a massa sonora.


Se você for atento, verá que conseguirá cumprir com eficiência todas as etapas, menos a última. Em um momento ou outro, indefectivelmente haverá fechamento de foco em algum dos sons que compõem a música. Você vai prestar atenção nas estrepolias dos solos, no ribombar das baquetadas, na linha de sustentação ou coisa semelhante. A realidade é grande demais para os nossos sentidos.


Até mesmo por isso, existe uma técnica de representação cênica que é bastante curiosa. Em cenas onde uma fala deve se destacar das demais, ou seja, quando há um murmúrio de fundo, os murmurantes não falam nada específico. Utilizam vogais fechadas e evitam consoantes fricativas e explosivas, pronunciando continuamente e assincronamente uma palavra inexistente, como “rumerrum”. Por que não utilizar palavras reais? Justamente por conta do efeito coquetel! Pode ser que alguém consiga focar as palavras dos circunstantes, deixando de lado o tema central. Falando algo “nada com nada”, este risco é mitigado.


A realidade é grande demais para os nossos sentidos, acabei de falar. Por isso, somos incapazes de dar resposta a vários estímulos concomitantes. E daí nasce a necessidade de sermos seletivos. Donald Broadbent, psicólogo britânico, fez um extenso trabalho experimental que o fez chegar à Teoria do Filtro. Em suas ideias, Broadbent destacava que as impressões eram tomadas pela consciência de acordo com sua relevância. O indivíduo tem uma primeira impressão do todo, como preconiza a teoria da Gestalt, e logo em seguida começa a se ater aos detalhes, em uma hierarquia de importância para a compreensão da totalidade, o que faz com que muitos aspectos sejam considerados irrelevantes. Também é estabelecida uma sequência da atenção, já que é muito difícil ao ser humano processar dois estímulos simultaneamente. Quando isso ocorre, a psique seleciona o foco mais significativo e coloca o segundo em estado de espera. Às vezes, essa espera se prolonga a ponto de não ser consumado o processo de cognição.


Veja como tudo isso conflui para o processo de cognição, e como tem influência, por exemplo, nos aspectos educacionais. É preciso levar em consideração curiosidades que parecem tão singelas, mas que podem significar um autêntico pulo do gato no momento de educar, como um simples tilintar de duas taças se chocando em brinde.

Santé!


Recomendações:


Aqui, o principal livro de Broadbent, para os fortes que manjam de inglês:


BROADBENT, Donald. Perception and Communication. Londres: Pergamon, 1958.


Já que mencionei o disco do Uriah Heep, vou referenciá-lo, porque vale muito a pena.


URIAH HEEP. Look at Yourself. Londres: Bronze Records, 1971. 41:14 min. 33 1/3 rotações.


E aconselho também uma visita à praça da República. Pegue um domingão de sol, vá passear pela feira de arte e procure pelo Zé Carlos Camargo. Aprecie sua arte e de seus colegas. Vale a pena.

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