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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Pequeno guia das grandes falácias - 33º tomo: a divisão

Olá!


A lei seca é algo controverso para muita gente, mas que não me causa nenhuma espécie de restrição. Tanta gente morreu ou ficou mutilada por conta dos excessos do álcool que não há como não defender uma fiscalização rigorosa em nossas ruas e estradas. Acho até mesmo que o poder público deu uma afrouxada nas cordas nos últimos tempos, principalmente se levarmos em conta que são sabedores dos locais e momentos onde a galera costuma dar uma esquiada fora da barra. Passons. Melhor ter a lei do que não a ter.

Em meu reduto, não somos abstêmios, mas não gostamos de encrencas. Isso não nos impede também de ter plena consciência de que o álcool prejudica os reflexos e torna-nos mais predispostos a fazer merda. Portanto, unindo o medo das cominações legais com a busca de tornar a obediência à lei um autêntico ato ético, adotamos em minha casa o famoso e desejável conceito de “motorista da vez”.

Tudo isso para dizer que, não sendo eu o motorista de uma determinada vez, estava sentado no banco de trás do carro, enquanto meu filho plenamente sóbrio conduzia la macchina. No rádio, músicas de décadas passadas, de uma dessas estações de rádio especialistas em determinados nichos, que eram pouco percebidas dada a animada tertúlia que se estabelecera. No entanto, a audição é uma coisa fina (efeito coquetel), e lá pelas tantas captei os acordes diáfanos da introdução de uma música conhecida: “Primeiros Erros”, do Kiko Zambianchi, sucesso nos anos 80. Relembro de quantas vezes ouvi e toquei essa música na juventude. É muito simples e bonita, com um dedilhado batidinho sem perder a delicadeza, uma construção de contrabaixo interessante e uma letra triste e desesperançada. Segue abaixo (mesmo que seja muito conhecida):

Meu caminho é cada manhã
Não procure saber onde estou
Meu destino não é de ninguém
E eu não deixo os meus passos no chão

Se você não entende não vê
Se não me vê, não entende
Não procure saber onde estou
Se o meu jeito te surpreende

Se o meu corpo virasse sol
Se a minha mente virasse sol
Mas só chove, chove
Chove, chove

Se um dia eu pudesse ver meu passado inteiro
E fizesse parar de chover nos primeiros erros
Meu corpo viraria sol, minha mente viraria ar
Mas só chove, chove, chove, chove

Depois de amadurecer e começar a ler Filosofia com mais frequência, pude enxergar nesta música uma certa síntese entre os dois principais filósofos voluntaristas, Schopenhauer e Nietzsche. Essa história de “meu caminho é cada manhã, não procure saber onde vou...” é uma visível transposição do amor fati nietszcheano (vide), enquanto a conclusão pessimista do “mas só chove” parece ser gritada por um bardo schopenhaueriano (vide mais este).

Fiquei nostálgico, e me pus a tentar relembrar das demais músicas do repertório do dito cantor. O esforço recordativo em uma mente razoavelmente inebriada não costuma gerar resultados muito prolíficos, mas eu não estava bêbado. Não consegui me lembrar de mais nenhuma, o que conduziu a alguma pesquisa, nestes tempos de mais Google e menos Barsa.

O resultado foi um pouco decepcionante. Grandes vácuos na carreira, algumas variações de estilo, mas, no corpus, repertório composto de popzinhos dançantes, letras menos consistentes, sonzinhos comerciais. Nada contra, mas também nada tão marcante. Músicas como “Rolam as Pedras” e “Choque” tocaram prá caramba, lembrei depois, mas o meu esquecimento é prova de que, ao menos para mim, eram mais do mesmo que se praticava na década de 80. No conjunto total da obra, a música aqui transcrita vira uma espécie de pequena pérola em meio às contas de plástico.

Resumindo a ópera: de um conjunto total não muito profundo, temos algo que reluz em seu meio. Visto no todo, não há como deduzir que há uma pequena parte muito relevante. E, se dissermos que, na obra de Kiko Zambianchi temos algo comum e corriqueiro, estaremos desprezando o fato de que, isoladamente, temos uma obra-prima.

Essa é a base da falácia da Divisão: acontece quando justificamos características para uma determinada parte tendo como base as características de um todo. Ou seja, quando se infere que aquilo que é verdade para o todo o é também para as partes, sem que haja uma justificativa válida para isso.

O exemplo de um quebra-cabeça é muito didático para entender a divisão. Estando todo montado, teremos uma figura bem constituída à nossa frente: um horizonte, uma paisagem, um carrão, uma pessoa bonita. Vistas isoladamente, cada uma das peças não guardam a beleza da figura montada. Podem até ser feias. Por isso, a qualidade do todo não reflete obrigatoriamente a qualidade da parte. É o exato oposto da premissa da composição, que diz que a excelência das partes assegura a excelência do conjunto.


O pensamento que engendra a falácia da divisão é perigoso, tão perigoso quanto o que ocorre com a composição. Enquanto na composição imaginamos que o hábito ruim de um componente do grupo é motivo suficiente para achar que há uma “contaminação” de todo o grupo, aqui temos o inverso, o que é igualmente pernicioso. Quando, por exemplo, Hitler ascendeu ao poder, foi com o apoio da população alemã. Em vista de seu governo inicialmente bem sucedido, este apoio aumentou cada vez mais, de forma que ações mais e mais absurdas foram sendo absorvidas e aceitas como legítimas, ao ponto de se chegar ao holocausto, a irracionalidade em seu estado de arte.

O povo alemão legitimou um governo tirânico e violento (mas democraticamente eleito), e, pela falácia da divisão, poderíamos dizer que cada alemão é igualmente violento. Mas a parte não é miniatura do todo. Mesmo dentro do governo, não havia consenso generalizado de que as ações de Hitler eram justificáveis, como podemos ver no excelente filme biográfico “A Lista de Schindler”, de Steven Spielberg. É a história de um industrial alemão, membro do partido nazista, que usa e abusa de influência e suborno para obter vantagens para seus negócios, mas que, por outro lado, é responsável pelo salvamento de mais de mil judeus do campo de concentração.

Isso é mais do que o suficiente para demonstrar que o povo alemão não é expressão suficiente para traduzir as ações de seus indivíduos. Mesmo que reduzamos o alcance inicial, e digamos que todos os membros do Partido Nazista são cruéis porque o Partido Nazista é cruel, ainda assim praticaremos a falácia da divisão, como bem resta demonstrado no exemplo acima. Mesmo que a tirania seja produtora de cegueira, sempre haverá quem pense fora da caixa a duras penas, como o Oskar Schindler do filme.

Tecnicamente, assim como a composição, a divisão também é um erro categorial, ou seja, a parte tomada pelo todo somente pode ser aceita como figura de linguagem, mais especificamente a sinédoque*. Caso isso não ocorra, a correlação não se aplica. Por exemplo, na frase “precisamos de braços para trabalhar”, se levada ao pé da letra, será absurda. Que faremos nós com um monte de braços à nossa disposição? Inaugurar um cemitério? O que precisamos, de fato, é de trabalhadores, e não somente a sua parte mais ativa no processo laboral. Falando em braços, pensamos em trabalho físico. Se fosse intelectual, falaríamos em cérebros, entendeu?

Mas é evidente que nem sempre a divisão é falaciosa. Se afirmarmos que uma determinada igreja tem estilo barroco, sendo que suas partes e componentes, como campanário, altar, pilastras são igualmente barrocas, poderemos tomar confortavelmente as partes pelo todo. Do contrário, teríamos uma igreja em estilo eclético. Bem evidente, neste caso, que há uma justificativa para dizer que tanto o todo quanto as partes compõem um mesmo estilo.

Através deste exemplo acima, podemos perceber que a falácia da divisão se aplica a dois tipos diferentes de escopos: um, voltado a algo que, uma vez dividido, perde suas características, mas que o argumento procura manter; outro, para um grupo de integrantes que, em união, possuem uma determinada característica, mas que, uma vez dissolvidos, não a mantém. Para o primeiro caso, digamos que uma ferramenta de aço tem a propriedade de furar concreto. O mesmo não é verdade se a tivermos toda rompida - as partes de uma ferramenta não conseguem atingir um objetivo se dissociadas. Para o segundo, podemos imaginar que um corpo de cientistas dá conta de explorar todas as áreas disponibilizadas em uma universidade. Se isso é verdade para o conjunto, não vale para cada um dos cientistas isoladamente, haja vista que um é da área de Física, outro de Química, e assim sucessivamente.

Recomendação de filme:

Como seria óbvio supor, recomendo o filme "A Lista De Schindler". É preciso um pouco de fôlego para assisti-lo, não só pelo seu tamanho (mais de três horas de duração), mas pela recordação de episódios históricos que, de tão cruentos, parecem irreais.

SPIELBERG, Steven. A Lista de Schindler. Filme. 1993. P&B e Colorido. 195 min.


*A sinédoque é um tipo especial de metonímia, que é uma figura de retórica onde a parte é tomada pelo todo em uma relação de contiguidade, como ocorre no exemplo dos braços (parte) substituindo os trabalhadores (todo).

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